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CAPITULO III

                               CAPITULO III

M

uitas léguas dali, uma grande fogueira mantinha a carne de uma “Tapira”[1], assando lentamente, enquanto alguns guerreiros Guaicurus dançavam ao redor dela. Pintados e carregando seus colares no pescoço, entoavam canções nativas enquanto em seus tornozelos, as maracas de pequi soavam numa compassada melodia. A harmonia daquele momento trazia conforto a toda tribo. Alegremente cantavam e dançavam despreocupados com a vida. Kaluanã, sentado a frente da grande fogueira, tinha ao seu lado o cacique Apoema, que placidamente observava feliz, seus aldeões dançando.

        Kaluanã lembrou-se dos tempos em que os Panarás faziam suas festividades, assim como aquela, e sentiu saudades dos pais. Poucas vezes isso ocorrera na sua vida. De lembrar-se de sua infância assim tão emotivamente. Mas nesta noite de verão, ele estava ali, ao lado dos amigos, sentindo saudade de seus familiares.

 Nutria em seu coração uma sede insaciável de vingar-se dos karaíbas, principalmente de Raposo, e isso lhe corroía a alma. Combatia a dor do ódio em seu coração quando pensava na possibilidade de sua mãe ainda estar viva. Procurava atenuar seus sentimentos enfrentando os karaíbas com bravura e sem piedade. Considerava-os inimigos da vida... Da floresta e de seus irmãos da terra. Sentia que eles não tinham a alma dos ancestrais.

Eram seres desprovidos de qualquer sentimento humano e que representavam perigo a qualquer ser vivo da terra. Simplesmente precisavam ser aniquilados para o bem comum, como se fossem alguma praga, doença maldita enviada pelos maus espíritos ou alguma fera assassina.

Não temia os mosquetes e nem as grandes bandeiras. Havia dentro de si a certeza de que o criador dos Panarás lhe dava salvaguarda, e assim podia enfrentá-los corajosamente. Aprendera com seu mentor Yemandú a usar as forças da floresta. Cresceu numa tribo guerreira e temida, enfrentou tribos de grandes guerreiros como os Tapajós, os terríveis Goytacás, os Txucarramães e tantas outras. De todas as batalhas saiu-se vencedor. Só queria uma coisa na vida agora... Expulsar os Karaíbas além do grande rio e mantê-los distante. Faria tudo para que isso acontecesse, nem que precisasse aniquilar a todos, tanto aos mestiços quanto seus irmãos da terra. Queria uma terra livre onde pudessem viver em paz.

 O cacique percebendo sua ausência ali lhe perguntou:

— Onde está teu pensamento agora Kaluanã? Vejo que seus olhos estão vidrados no fogo!

— Longe daqui Apoema... Muito longe daqui.

— Sabe Kaluanã, o coração de um guerreiro muitas vezes, anda por toda a floresta em busca de paz...

— Apoema tem razão... Mas a paz não é tão fácil assim de ser encontrada.      

— Você ainda é jovem, e forte como o jequitibá... Vai encontrar sua paz um dia...

— Talvez Apoema, mas por enquanto não quero encontrá-la até que tudo esteja acabado...

— O ódio é coisa que adoece a alma Kaluanã... Você precisa derrotar este inimigo dentro de si.

— Às vezes ele é como a grande sucuri Apoema... Sufoca-me por dentro!

— Até a grande sucuri tem seu ponto fraco... Você precisa descobrir qual é ele...

— Talvez na verdade eu não queira me desvencilhar dela agora...

— Neste caso ela poderá ser o seu fim...

— Entendo... Talvez possa conseguir isso um dia...

— A sabedoria vem com a idade, Kaluanã... E um dia você vai ter o prazer de conhecê-la!

— A sabedoria traz paz à alma Apoema?

— Sim... Ela clareia nosso coração, como o sol do meio dia.

— E onde ela se esconde?

— Dentro de você Kaluanã... Terá de procurar a sabedoria dentro de seu coração...

As danças enfim cessaram e todos agora compartilhavam da carne que já estava pronta. Kaluanã continuava ali, sentado ao lado do cacique Apoema, admirando as fagulhas que subiam rapidamente ao céu. A lua, esplendidamente clareava toda a aldeia, deixando ver as construções de palha e barro que circundavam a grande oca central. Ali no terreiro, as crianças brincavam, mexendo com os gravetos incandescentes sob os olhares de suas mães que, às vezes, precisavam intervir ao ver que a brincadeira estava ficando um pouco perigosa.

 Kaluanã via tudo aquilo e tinha na memoria as coisas que fazia quando menino. Tivera muitos amigos que gostavam de nadar nos pequenos rios que afluíam ao grande Paraguai e nos poções que se formavam neles. Passavam tardes inteiras na mata a caça de pequenos roedores e procurando mel. E foi numa dessas tardes, não muito longe da aldeia, que ouviu pela primeira vez o som dos mosquetes.

Uma fumaça rapidamente subiu além das copas das árvores. Assustados, ele e os amigos correram de volta para a aldeia. Antes, porém, de alcançarem a entrada, se depararam com a visão de centenas de nativos, mestiços e brancos avançando sobre a tribo acuada.

Era a primeira vez que Kaluanã via um Karaíba. Era a bandeira de Raposo Tavares e Manoel Preto. Composta de dezenas de homens brancos e mestiços armados, destituídos de qualquer tipo de compaixão e misericórdia. Criaturas covardes e de terrível habilidade em matar. Atiravam a esmo, não poupando quem estivesse à frente. Certamente estes eram os “Demônios da floresta” que tanto Yemandú falava. Agora acreditava nele.

 No chão, muitos corpos estavam estirados, entre eles, Yemandú. Os meninos ficaram ali estáticos, sem saber o que fazer. Kaluanã pediu que ficassem em silêncio. Foi quando viram que acorrentavam a todos.

 Aquelas que ainda possuíam crianças de colo tinham seus filhos retirados dos braços, que depois eram mortos a golpes de facões, espadas e machadinhas. As crianças menores tinham o mesmo fim. Os karaíbas não queriam nada que pudesse atrapalhar a viagem de volta a Villa e assim também faziam aos velhos e aos mais arredios.

Todos eram mortos violentamente sob os olhares de seus filhos, pais e esposas. Kaluanã via tudo aquilo atônito e terrivelmente assustado. Viu quando levaram seus pais e a todos os outros que sobraram. Ficaram cerca de duas horas na aldeia e colocaram fogo em tudo o que havia ali. Depois disso, saíram se embrenhando na mata. Kaluanã e seus amigos ficaram escondidos até o dia seguinte.

Não dormiram, não comeram, apenas choraram... A dor mais profunda que jamais imaginaram que poderiam sentir um dia... Tudo o que tinham tudo o que eram, estava agora destruído pelo fogo e morto pela pólvora assassina dos Karaíbas. Já tinham ouvido sobre eles, mas nunca imaginaram que estariam um dia, além do grande rio.

 Logo que raiou o dia, eles, silenciosa e cuidadosamente, se aproximaram do que sobrou da aldeia. Andaram por todo o lugar na esperança de encontrar ainda algum sobrevivente. Nada. Não havia mais ninguém. Kaluanã se aproximou então de Yemandú e ajoelhou-se ao seu lado. As lágrimas quentes e pesadas vertiam de seus olhos e eram recolhidas suavemente pela terra.  

Ficou ali por alguns minutos e então retirou do pescoço do amigo o colar de dentes de jaguar que Yemandú tanto gostava. Colocou-o em seu pescoço e saiu. Agora eram somente eles e a grande floresta. Precisavam neste momento botar em prática tudo o que aprenderam sobre sobrevivência. Teriam principalmente que ficar a distância dos Txucarramães, ferozes inimigos dos Panarás. Resolveram atravessar o grande rio e seguirem os rastros da bandeira de Raposo Tavares. A esperança era de que os karaíbas pudessem desistir de levar seus pais.

Dois ou três dias era a distância que os separavam deles. Pelo caminho das antigas trilhas, iam se deparando com sinais de que realmente fora por ali que passaram.

 Restos de comida, roupas e utensílios eram encontrados abandonados pela trilha. Infelizmente dias depois, começaram a encontrar também os cadáveres daqueles que iam sucumbindo pela jornada. Muitos parcialmente devorados pelos jaguares e outros pareciam ter sucumbido doentes ou feridos.

       Por vinte dias seguiram pelas trilhas até que avistaram uma grande clareira que parecia estar sendo habitada. Cuidadosamente observaram que nela havia algumas pessoas. Escondidos na mata ao redor, ficaram somente observando por um dia inteiro. Perceberam que poucos estavam ali. Entre eles, vários membros da tribo que foram reconhecidos.

       Na manhã seguinte, vendo que não havia perigo, se aproximaram daquelas pessoas. A maioria delas apresentava alguma dificuldade em se locomover e acabaram ficando ali sentados ou recostados nos troncos das árvores. Ao notarem a presença dos meninos, muitos se alegraram. Entre eles havia uma pessoa em especial, era Piatã, pai de Kaluanã. Ao vê-lo ali recostado sob o tronco, ele largou seu pequeno arco que trazia consigo e foi correndo aos seus braços. Abraçaram-se demoradamente e choraram juntos.

 Piatã parecia fraco e cansado. Estava ferido e o sangramento a bala havia infeccionado tanto que a febre não o deixou ir com os outros. Por isso, fora largado ali. Ele, como os demais, estava de certa forma impossibilitado de acompanhar a marcha e acabaram sendo abandonados à própria sorte.

      Kaluanã então perguntou da mãe. Piatã lhe disse que ela estava viva, e não havia sido ferida. Certamente estava agora bem longe dali, já a caminho da aldeia dos Karaíbas.

— Vejo que está com o colar de Yemandú!  — Disse-lhe o pai sorrindo.

— Sim meu pai... Mas...

— Eu sei filho... Era um grande amigo... Fico feliz que esteja aqui, sabia que estava seguro longe da aldeia. Sua mãe ficaria feliz em saber que está salvo.

— O que posso fazer para que o senhor se recupere logo? Tem alguma planta que possa trazer?

Piatã percebia pela voz do filho que ele estava completamente abalado e tentou de certa forma amenizar a sua situação.

— Filho... Preciso que seja forte e corajoso... Não acredito que consiga algum remédio para este tipo de ferimento... Nunca vimos isso...

— Entendo meu pai... Mas quero ao menos tentar!

— Sim filho... Compreendo... Yemandú sempre me ensinou sobre a cura das plantas... Acho que o “Urucum”[2] seria a mais apropriada... Talvez você o encontre a beira da trilha, você conhece?

— Sim... Yemandú me ensinou muitas coisas...

— Realmente ele gostava muito de você... Agora vá! Aproveite enquanto é dia e volte antes do entardecer... E Kaluanã... Eu e sua mãe te amamos muito... Nunca se esqueça disso!

— Sim meu pai... Logo estarei de volta... E dando-lhe um longo abraço saiu correndo pela trilha.

Piatã acompanhou-o com os olhos até que ele sumiu entre a mata. Sabia que não tinha chances de sobreviver, mas quis aliviar a dor daquele filho amado. Deixaria que ele tentasse ajudar. Já estava um menino crescido, pensou. Certamente se tornará um grande guerreiro.

 Os outros meninos ficaram ali, ajudando no que podiam aquelas pessoas. Kaluanã caminhou por algumas horas até se deparar com um pequeno charco, onde pode identificar a planta. Rapidamente arrancou-a com as raízes e pôs-se a voltar rapidamente à clareira.

 No caminho pensava no pai e agora também em sua mãe. Pelo menos sabia que ela estava viva, a caminho da cidade dos karaíbas. Uma grande vontade de chorar veio de repente, mas ele afastou-a rapidamente. Precisava agora cuidar de seu pai. Ao perceber que já estava se aproximando da clareira, ouviu os gritos dos amigos. Seu coração disparou. Será que os karaíbas voltaram e agora aprisionavam também seus amigos? Correu mais depressa que pode e viu ao longe que dois jaguares rondavam aqueles que estavam ali. Um era negro como a noite e outro, todo pintado, que desaparecia entre as folhagens.

     Os amigos com seus arcos tesos esperavam o ataque iminente. O jaguar negro, um macho, parecia ser o mais feroz, não demonstrava estar amedrontado e andava ao redor rugindo e mostrando os dentes. A pintada saia e entrava na clareira, esperando que algo acontecesse para assim também poder atacar. Por alguns minutos todos ficaram em silêncio.

Somente escutavam o som da respiração e o coração que parecia estar batendo no pescoço intensamente. O medo lhes percorria todo o corpo.  Kaluanã, que se aproximava agora mais cuidadosamente, retesou o mais que pode seu arco e fez pontaria. Estava a cerca de uns dez metros do jaguar negro, que não percebeu sua aproximação. Esperou mais alguns segundos, prendeu a respiração e deixou a flecha zunir velozmente em direção à fera.

Num estrepitoso grito, assustado, ela deu um grande salto e saiu pela mata adentro, levando cravado no dorso, a seta certeira de Kaluanã. A pintada que a acompanhava também saiu dali rapidamente, assustada com o urro de dor de seu companheiro. Kaluanã então entrou na clareira e foi em direção ao pai. Piatã já respirava sofregamente com muitas dificuldades.

 Kaluanã então amassou a planta e fez uma pasta com barro que colocou sobre o ferimento. Agora era aguardar o efeito do remédio. Sentou-se ao lado do pai e debruçou a cabeça sobre seu colo. Escutava nitidamente que as batidas enfraquecidas do coração do grande chefe Piatã, da tribo dos Panarás, ia se esvaindo aos poucos, abrindo caminho para a entrada na “Floresta Mágica”. Floresta que um dia Yemandú lhe contou existir, e para onde iam os Panarás, quando paravam de respirar. Um lugar onde os bichos falavam como os homens e as plantas serviam de alimento.   

 Não se comia carne e as feras eram como a Cutia e os Saguis, vivendo em harmonia com a mãe terra e com os rios.

Lugar onde moravam os sonhos. Não havia guerras e nem mesmo o Karaíba chegaria nela. Todas as tribos eram irmãs e a floresta era a grande Mãe que os protegia. As lágrimas quentes desciam vagarosamente dos olhos daquele menino. O grande cacique Panará havia finalmente dado seu último suspiro. Estava agora indo em direção a grande Floresta, encontrar-se com Yemandú e seus ancestrais.

[1] - Anta- Maior Mamífero do Brasil

[2] -Planta Medicinal Indígena contra hemorragias

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