O sexagésimo quinto ano do século dezenove chegara a seu termo em meio a um inverno ameno. Havia muita neve, como sempre, mas naquele ano não sofremos com as violentas tempestades que eram bastante comuns na época do Natal. Contrariando a opinião da maioria das pessoas vivas que estão sujeitas à manutenção de sua temperatura corporal, o inverno era sempre bem vindo para nós, imortais, fazendo-nos as noites consideravelmente mais longas. Para mim, as noites brancas significavam mais trabalho que de costume: sempre havia damas que caíam doentes e, como esse nunca era o meu caso, acabava substituindo-as. Isso me desgostava um pouco, pois frequentemente eram chamados de última hora, fazendo-me ter de desmarcar compromissos assumidos. Otto, nessas ocasiões, sempre reiterava sua oferta para me ajudar financeiramente se eu quisesse abandonar o serviço da imperatriz, mas, de qualquer forma, eu
Não mais de um mês se passara desde a assinatura do tratado de paz com a Prússia, quando, estando eu organizando os vestidos da imperatriz, fui interrompida por uma jovem criada que vinha esbaforida e um pouco alarmada me avisar que minha senhora desejava ver-me com urgência. Diante da expressão daquela pequena criatura, julguei apropriado deixar o que estava fazendo e me dirigi rapidamente ao escritório de Elizabeth.Hesitei um instante antes de bater à porta. Havia vozes um tanto quanto exaltadas lá dentro."Entre!"Não estranhei a falta da criada que me abriria a porta. Estavam apenas minha senhora e Andrássy e ela parecia bastante agitada. Mais do que agitada, ela parecia... Ou melhor, ela estava... Bem..."Aí está! A senhorita van der Heyden vai lhe dar todo o apoio que necessita... Ela pode ensinar-lhe...""Como assim?!"Ela voltou-se para mim indignada,
Todo o meu temor e minha ansiedade pela volta a Viena, porém, eram vãos. Os motivos pelos quais Elizabeth me chamava não guardavam qualquer relação com o constrangedor desfecho do tal noivado.Os imbróglios na capital austríaca flertavam com consequências bem mais profundas. À época que Ludwig partira para a França com seu bem amado e eu pela primeira vez adentrava o castelo de Possenhofen, Sisi fora coroada Rainha Apostólica da Hungria.Não era algo que se estranhasse, mas certamente não era esperado: os húngaros não estavam contentes com a política de Francisco José. O imperador via-se forçado a fazer-lhes cada vez mais concessões e, então, acabara por adotar um regime dualista, no qual a Hungria não seria mais tratada como um Estado submisso à Áustria, mas como uma nação igual, governada
Ainda hoje, mal consigo lembrar-me do caminho de volta a Gödöllő. Lembro-me de ter tomado um banho muito demorado no palácio e de Andrássy ter me trazido um jovem muito simpático para que eu me alimentasse. Aquela foi a primeira vez que me deitei com um mortal.Passei várias noites perdida em meus pensamentos, buscando a solidão como uma planta busca a luz. Em uma delas, porém, deparei-me, logo ao despertar, com uma carta de Otto sobre minha escrivaninha. Meu estômago se comprimiu dolorosamente: eu não precisava abrir para saber do que se tratava.Segurei-a na mão por longos momentos, examinando cada detalhe do selo, cada traço da fina caligrafia, como se aquilo pudesse me mostrar, de uma maneira mais eufêmica, como o remetente estaria se sentindo. Não tive coragem de abri-la naquela noite.Quando acordei na seguinte, porém, a carta parecia me encarar desafiadorame
A brisa do verão estava pontilhada pelo ciciar dos insetos em alvoroço. A lua era apenas uma lâmina prateada no céu e, ao seu redor, podíamos ver as estrelas claramente - as próximas como pequenos diamantes incrustados no manto negro e as mais distantes formando nuvens de mil pontos prateados. Eu gosto de observar o firmamento em noites como aquela. Ele parece maior, o universo mais profundo e mais real... Me faz sentir indizivelmente pequena e sem importância, mas, ainda assim, parte de algo tão grande que minha imaginação não consegue alcançar seus limites. Ou melhor: a ausência de qualquer limite. Pensar no infinito é como estar à beira de um abismo de mistérios ao qual eu me sentia impelida, atraída por aquela fantástica enormidade. Naquela noite em particular, porém, meus pensamentos se concentravam em algo que me muito mais interessante: eu veria pe
Minha casa em Munique agora já não era mais o meu "esconderijo". Angelika, como era de se esperar, foi se deixando ficar noite após noite e eu fui me afeiçoando à sua companhia, que em poucos meses se tornou indispensável. Talvez eu sentisse falta de uma amiga, uma confidente que me ouvisse e a quem eu pudesse ouvir. Talvez fosse uma espécie de instinto maternal que ela despertava em mim, com sua ingenuidade e dependência...De início, Angi estava com os ânimos frágeis devido a tudo que passara já há dois anos: o homem em que mais confiava de repente lhe trouxera uma maldição, de donzela indefesa passara a predadora noturna, tivera de tomar as rédeas da casa e cuidar do pai, que agora era insano e, quando estava aprendendo a lidar com a situação, é submetida à terrível cena da morte de seu progenitor e à culpa de ter extermina
Logo que o sol se pôs, dando início à noite seguinte, eu rumei para um pequeno bosque à beira do lago. Munida de minha fiel adaga e de uma pistola que adquirira recentemente, me aproximei com cautela dos jardins do castelo, andando de um arbusto para outro quando os poucos guardas que o protegiam desviavam seus olhares. Uma chuva fraca, mas ininterrupta caía, deixando tudo incomodamente úmido.Não posso precisar quanto tempo fiquei acocorada, escondida por detrás de um deles. A tensão e a ansiedade faziam cada minuto parecer horas, especialmente porque eu não tinha certeza de que Ludwig realmente apareceria. Eu não podia ter certeza sequer de que ele havia recebido o bilhete. Talvez não encontrasse oportunidade de sair naquela noite...E foi então que eu escutei vozes distantes. Dois homens caminhavam em minha direção, protegidos por guarda-chuvas. Meu coraç&a
Imagine nascer em uma cabana rústica, o vento gélido dos Alpes entrando dia após dia pelo telhado tosco, a comida escasseando no inverno e a família crescendo a cada ano.Imagine ainda, que seu corpo é coberto de pelos. Sedosas cerdas de mais de cinco centímetros em um tom caramelo escuro cobrem quase todo o seu corpo, exceto as palmas das mãos e a planta dos pés. Você é uma criança gorda e saudável, sobreviveu ao inverno mais rigoroso em três décadas, recuperou-se rápido de uma virose que levou-lhe um irmão mais velho e, sem dúvida, é a criança mais ativa da família.Agora imagine que, depois de seis anos questionando-se porque Deus faria uma piada assim com pobres camponeses que nunca saíram do estreito e difícil caminho traçado por Seu filho, seus pais abrem a porta da cabana e encontram um homem bem vestido q
Não houve nada de especial naquela tarde em Bruxelas. Fizemos a nossa apresentação normal: um breve desfile das estrelas do show com papai apresentando-os e contando suas supostas histórias de vida - sempre muito fantasiosas e cheias de exotismo, claro! - um número de dança, um número de música e uma pequena peça cômica. Não costumávamos andar pela cidade ou sair de perto da nossa pequena caravana, especialmente aqueles que tinham alguma peculiaridade física - se as pessoas estavam dispostas a pagar para vê-los, porque se mostrariam de graça? Eu e Ivan brincávamos bastante ao ar livre, mas sempre onde não havia ninguém. Meu pai e Madame Louise eram os responsáveis por trazer-nos as coisas que precisávamos do mercado e eu às vezes os acompanhava.Naquele dia, enquanto comprávamos alguns víveres, um senhor de meia idade,