CAPÍTULO 2

                                                              Maya Costa

         No dia seguinte, acordo com o meu despertador tocando em cima da cômoda. Depois de desligá-lo, checo Théo, que continuava dormindo tranquilamente, e sorrio. Era mais um dia que ele dormia a noite toda sem nenhuma crise, isso já está virando rotina. A cada dia meu menininho fica melhor e eu me torno cada vez mais confiante com a sua saúde. Eu sei que ele dependeria dos remédios para a vida toda, mas ver a sua melhora aos pouquinhos é suficiente para me deixar muito feliz.

         Levanto, tomo meu banho e, quando vou vestir o meu uniforme, as marcas do meu pescoço estão um pouco roxas por causa do aperto de Leandro ontem. Então, pego minha bolsinha com as maquiagens e tento amenizar a situação.

         - Droga! – reclamo ao perceber que não daria para esconder como eu esperava. Pelo menos os tapas não tinham ficado marcados.

         Volto ao meu guarda-roupas, visto uma blusa de gola alta por baixo da blusa do uniforme e prendo o meu cabelo em um rabo de cavalo. Como meu cabelo é cacheado, não tem como penteá-lo normalmente, senão vou parecer uma vassoura invertida, então, para que ele não fique bagunçado, passo um pouco de spray com água, creme e óleo de coco. Pronto, agora ele está comportado e apresentável.

         Vou até a cozinha para preparar o nosso café da manhã. Tenho que comprar mantimentos, a comida está acabando e as opções estão quase esgotadas. Pego o iogurte, coloco em dois potes, corto uns morangos e separo duas porções de cereal. Deixo tudo em cima do balcão e volto para o quarto para preparar Théo para a escola.

         - Bom dia meu príncipe – digo baixinho em seu ouvido depois de ter tirado sua coberta com calma.

         - Bum dia mamãe – diz esticando seus bracinhos para se espreguiçar.

         - Vamos? A mamãe não pode se atrasar.

         Ele levanta ainda sonolento e vem comigo até o banheiro. Dou-lhe um banho morno, visto seu uniforme e penteio seus cachinhos de anjo. Pentear os cabelos de Théo é uma das coisas que eu mais amo fazer no mundo. Seus cabelos, assim como os meus, eram ruivos com um toque aloirado e possui uns cachos grandes que lhe dão uma aparência angelical. Ainda bem que meu filho puxou mais a mim do que ao “pai”.

         - Tô cum fome – diz assim que coloco a escova na penteadeira.

         - Já preparei o nosso cereal. Vem, vamos alimentar essa barriguinha.

         Ele pega seu leãozinho de brinquedo e me segue até a cozinha. Quando chegamos na porta, a cena de Leandro sentado na bancada comendo um dos potes de cereal me desaponta. Ele quer provocar uma briga, mas eu não estou com paciência ou energia para isso agora.

         - O que você está fazendo? – pergunto séria e sinto Théo se esconder atrás de mim.

         - Estou tomando café da manhã, já ouviu falar que é a refeição mais importante do dia?

         - Leandro, você sabe que eu preparei isso para mim e para Théo. Você sabe a minha rotina inteira e, mesmo assim, gosta de ficar provocando – reviro os olhos chateada.

         - Mas eu deixei o seu café aqui meu amor – aponta para o outro pote ainda intocado.

         Respiro fundo irritada, não quero brigar agora cedo. Leandro tem dias que acorda disposto a tirar o restante de sanidade em meu corpo, mas hoje não.

         - Vem Théo – pego a mão do meu filho, o outro pote com o iogurte que tinha sobrado e coloco um pouco de cereal dando para ele comer. Coloco Théo sentado longe de Leandro para não correr nenhum risco e faço outro pote de cereal pra mim.

         Depois de Théo terminar de comer, puxo-o em direção ao quarto novamente, mas, antes que pudesse sair da cozinha, Leandro segura meu braço forte.

         - Onde pensa que vai com esse uniforme?

         - Eu vou deixar Théo na escola e depois vou correr para o trabalho, não quero chegar atrasada.

         - Você não vai se atrasar para uma coisa que você não tem mais que cumprir horário.

         - Eu vou...

         - Pedir demissão, como combinamos ontem.

         - Leandro, eu preciso do dinheiro...

         - Você precisa me obedecer para eu deixar esse rostinho lindo intacto, me provoca pra ver o que eu faço.

         - Por favor...

         - Se você não chegar em casa com a carta de demissão assinada, eu juro que não respondo por mim Maya. Não me desafie e nem me faça perder ainda mais a paciência.

         - Leandro, eu juro que nunca mais me atraso, por favor.

         - Acontece que você sempre faz essa promessa quando chega atrasada e, mesmo assim, continua a desobedecer.

         - Imprevistos acontecem! Eu não tenho como prever tudo o que acontece no meu dia. Se tivesse, acha mesmo que não tentaria evitar?

         Eu teria evitado tanta coisa na minha vida, se soubesse prever as coisas. Ter conhecido Leandro é uma delas, mas a vida aqui segue.

         - Maya, você já está avisada, não me faça perder mais a paciência.

         - Eu te odeio! – digo pegando Théo no colo e vou para o quarto.

         Não iria chorar na frente dele. Ele não teria o gostinho de me ver chorando e implorando ainda mais. Cansei de estar sempre me humilhando para Leandro, não posso deixar que ele roube o pouco de dignidade que ainda tenho.

         - Mamãe, o que é demixão?

         - É quando se pede para parar de trabalhar, meu amor.

         - Que legal então! Vuxê vai podê bincá cumigo todo dia!

         - Queria pensar do mesmo jeito que você meu amor – sorrio pra sua inocência.

         Escovo os dentes de Théo, peguei sua mochila e tirei meu uniforme, já que teria que devolvê-lo de qualquer forma. Coloco uma calça jeans e continuo com a blusa de gola alta de antes. Chamo Théo e saio em direção à escolinha. Era pertinho de casa, então sempre íamos andando e de lá eu pegava o meu ônibus para a lanchonete.

         - Tchau mamãe – diz me dando o abraço de todos os dias quando chegamos em frente a sala cheia de crianças.

         - Tchau meu amor – deixo um beijo em sua bochecha – Lembre-se de...

         - Se compotá e pestá atenxão na aula.

         - Isso mesmo – sorrio – Mais tarde a mamãe vem te buscar.

         Saio do prédio em direção ao ponto de ônibus mais próximo. Assim que meu ônibus chega, sinto o meu celular vibrar no bolso. Era uma mensagem de Leandro.

“Não se esqueça do combinado. Não me faça ter que acabar com o seu rostinho bonito ou então ter que cortar qualquer tratamento do seu tão amado Théo. A culpa será sua se eu precisar tomar qualquer uma dessas atitudes. Não demore!”

         - Idiota!

         Quase uma hora depois, chego em frente à lanchonete, que já apresentava o seu típico movimento matinal. Entro pela porta dos funcionários e vou direto para a sala do Sr. Suarez, bati três vezes na porta.

         - Entra – ele diz do outro lado.

         - Bom dia – digo colocando só a minha cabeça pela porta.

         - Bom dia Srta. Costa! A que devo a honra da presença da minha melhor funcionária em minha sala a essa hora da manhã?

         - Licença – digo finalmente entrando – Er... Eu preciso falar sobre um assunto sério com o senhor.

         - Alguma coisa aconteceu? Está tudo bem? – me olha preocupado apontando para a cadeia à sua frente.

         Eu gosto muito do Sr. Suarez, pois ele sempre tratou muito bem a todos os funcionários que trabalham aqui. Apesar de ser o “poderoso chefão” da lanchonete, ele não é um tirano exigente que cobra tarefas absurdas, mas sim um homem extremamente compreensível e respeitoso que só espera o melhor dos funcionários para manter a lanchonete funcionando harmonicamente, porém sempre acata com nossos pedidos quando necessário. Esse era um dos motivos de eu amar trabalhar aqui. Esse era um dos únicos ambientes que me faziam bem e onde não tenho que aturar gritos e brigas, é o meu refúgio.

         - Eu não sei como vou falar isso – digo nervosa.

         - Maya, se tem algo te incomodando, peço que me diga logo. Desde já prometo dar o meu máximo para corrigir.

         - Eu sinto muito – digo já sentindo minhas lágrimas descerem.

         Eu não quero fazer isso.

         - Sente muito pelo que?

         - E-Eu vim aqui pedir para o senhor assinar a minha carta de demissão – não consigo encará-lo nos olhos.

         Eu esperava alguma reação dele, mas somente obtive silêncio. Quando finalmente tomei coragem de tirar meus olhos do chão, vejo-o me encarando atônito.

         - Como é?

         - Eu preciso...

         - Eu não vou assinar carta de demissão nenhuma! O que está acontecendo Maya?

         - Aconteceram algumas coisas em minha vida e eu preciso escolher minhas prioridades.

         - Você vai me dizer, em detalhes, que coisas são essas porque eu não estou achando sentido no meio de um absurdo desses. Até ontem estava tudo bem!

         - Eu sei – digo triste – Eu sei que estava tudo bem. O senhor pode não estar entendendo agora, mas eu preciso disso.

         - Por favor, me deixa te ajudar – me encara com pena – Tenho certeza que existe um jeito para tudo. Não posso te perder agora, você é uma das minhas melhores funcionárias. Inclusive, é uma das únicas que sabe mexer naquela máquina de café de uma forma decente, quem vai fazer o café gostoso igual ao seu agora?

         - Eu sinto muito, mas eu preciso que o senhor acate a minha decisão.

         Odeio ter que mentir ao falar que um absurdo desses foi decisão minha.

         - É o salário? Porque se for isso, a gente pode tentar chegar a um acordo. Eu já estava pensando...

         - Não, não é isso.

         - Então o que é?

         Respiro fundo e resolvi contar meia verdade para convencê-lo. Eu sei que poderia contar tudo o que Leandro fazia comigo e tentar pedir ajuda, mas eu já sabia onde isso iria dar. Leandro era um dos principais policiais da delegacia da região e, mesmo não trabalhando formalmente há um tempo, seus contatos conseguiam acobertar todas as suas besteiras. Eu mesma já tinha tentado denunciá-lo várias vezes, porém nunca dava em nada. Quer dizer, só sobrava pra mim quando chegava em casa depois. Então, decidi que por amor a minha vida, e pelo amor que sinto por Théo, tenho que achar outra maneira de resolver isso.

         - Meu filho... Meu filho precisa de mim mais do que nunca agora – não deixa de ser uma mentira, o tratamento de Théo estava sendo ameaçado – Ele faz tratamento para bronquite e asma crônicas e precisa de mim por perto agora.

         - Desculpa me intrometer, mas como pretende conseguir dinheiro para esse tratamento sem emprego?

         - Eu já consegui dar um jeito nisso, a única coisa que preciso agora é que o senhor assine minha carta de demissão.

         - Bom, nesse caso, tudo bem – diz com uma expressão desapontada – Espero que você consiga fazer o que quer que tenha de fazer e mantenha o contato se precisar de ajuda.

         - Obrigada – levantei da cadeira e peguei o papel que ele me estende.

         - Eu poderia cobrar aviso prévio, mas, como você sempre se mostrou muito prestativa, vou deixar passar.

         - Muito obrigada Sr. Suarez.

         - Espero que dê tudo certo para você e seu filho. Quando estiver tudo mais calmo, pode voltar aqui e a sua vaga vai estar te esperando – ele sorri sem mostrar os dentes.

         - Desejo para o senhor a mesma coisa e agradeço por tudo de bom que fez por mim, o senhor é um anjo. Com licença – sorrio e saio da sala.

         Ok. Uma parte disso estava resolvida. Agora só falta um segundo furacão que eu teria de enfrentar em questão de minutos. Vou até o meu armário pegar as poucas coisas que deixei ali. Assim que fecho o armário, como nos filmes, vejo a figura da minha melhor amiga me encarando séria e confusa.

         - Posso saber o que a senhorita queria na sala do meu pai a essa hora da manhã? E cadê o seu uniforme? Que milagre é esse que você não está vestida?

         - Bom dia Sophie! Estou muito bem, obrigada por perguntar.

         - Não me venha com gracinhas Maya, o que está acontecendo? Por que diabos você está com uma gola alta no meio do verão?

         - Aconteceram algumas coisas e eu precisei pedir demissão.

         - O QUÊ?

         - Shhh... Isso mesmo que você ouviu.

         - Vem aqui – me puxa para o lado de fora da lanchonete – Vai, desembucha.

         - Eu já te falei, alguns imprevistos aconteceram com Théo e eu vou precisar ficar mais tempo em casa para dar mais atenção ao tratamento dele.

         - Hm... – me olha desconfiada – E esses imprevistos, por algum acaso, têm haver com um homem que mora na sua casa que é, não sei, o seu namorado? – me pergunta e eu paro a olhando com os olhos arregalados.

         Como ela sabia?

         - Não, c-claro que não – gaguejo.

         - Eu não sou lerda Maya! Posso até me fazer de inocente e fingir que não estou percebendo as coisas, mas não sou idiota.

         - Não sei do que está falando.

         - Então deixa eu esclarecer as coisas. Será que a minha amiga está sendo ameaçada por um cara para se demitir? Um cara que se demonstra ser um tanto abusivo e controlador e que mora na mesma casa que ela?

         - Como você...

         - Como eu sabia? Simples! Eu faço medicina Maya, eu lido com casos de agressão, eu estudo isso, estou em um grupo de estudos específicos pra isso e algumas coisas ficaram estranhas com o tempo. Primeiro, você sempre está correndo na hora da saída, nunca pode ficar nem cinco minutos a mais para conversar com o pessoal ou qualquer outra coisa, ou seja, tem horário pra chegar em casa, estou certa? – assinto – Segundo, já perdi a conta da quantidade de vezes que você recusou meus convites ou o convite do pessoal para sair, isso até seria explicável se você ainda morasse com sua mãe, mas não, ele quem não deixa. As suas desculpas são péssimas.

         - Mas...

         - Terceiro, já te vi chegar machucada aqui várias vezes, já te vi contorcer de dor quando se batia sem querer no balcão e não é a primeira vez que você vem de roupa de frio no verão – toca em minha blusa – Tenho certeza que ele te machuca em vários locais que não ficam visíveis por causa do uniforme, mas quando você usa roupas de frio no verão, quer dizer que as coisas saíram muito além dos limites.

         - Eu posso ter simplesmente me machucado – digo fazendo-a revirar os olhos.

         A quem eu queria enganar?

         Respiro fundo derrotada, ela era muito mais inteligente do que eu ou eu realmente não era uma boa atriz.

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