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                             Data: 12/01

Moro em um país lindo 

E preconceituoso por natureza.

Moro em um país conceituado

Por escolhas erradas.

Moro onde não existe

Igualdade e democracia de fato.

Sim, moro no Brasil!

       

                                        🌻

Minha casa é muito elegante, diga-se de passagem, com uma piscina gigantesca, dois andares, duas salas grandes, pisos de madeira e a frente cheia de plantas e flores. Bem clichê! A minha cara.

Meu quarto tem uma cama que cabem quatro pessoas, uma escrivaninha e cadeira, uma estante cheia de livros, tapete grande e felpudo nas cores branco e violeta, nunca gostei do modelo dele, mas minha mãe diz que é chique ‒‒ sonho em ter um quarto de princesa com as cores rosa e branco, mas é só sonho mesmo, minha mãe nunca iria permitir isso.

Como é evidente, financeiramente sou bem amparada. Meus pais têm muito dinheiro e, consequentemente, me fazem usufruir sempre do bom e do melhor, mas isso não me faz melhor do que ninguém, nem me achar superior, isso meu pai me ensinou desde cedo.

Meu pai, senhor Ricardo Andrews, tem 37 anos e é um médico renomado em todo país. Alto, carismático, corpo de atleta, branco, mas bronzeado devido ao sol, com barba sempre bem feita, cabelos loiros regularmente cortados e olhos pretos.

Minha mãe, Catarina Petrova de Alcântara, é uma jovem alta e magra de 35 anos, branca, com cabelos pretos, curtos e lisos, e olhos pretos. 

Totalmente digna dos padrões que o mundo propõe, os mesmos, que ela exigiu que eu seguisse. Ela é formada e respeitada na área de direito pois é advogada criminalista. Os dois são ótimos profissionais.

No entanto, eu mal os vejo durante o dia e tentando reparar essa ausência eles nos enchem de presentes quase toda semana.

Em questão de bens materiais eu e meu irmão, Valentim Andrews, não temos nada a reclamar pois temos tudo que queremos, por isso, sempre fomos considerados mimados por todos. Entretanto, o que mais desejamos não temos: amor, carinho, companheirismo, passeios em família, coisas que bens materiais não preenchem.

Vamos, querida, você vai perder o primeiro tempo de aula! — Era meu pai pedindo para me adiantar.

Já estou indo! — Respondi pegando minha bolsa preta com meu chaveiro de ursinho, ganhei dos meus avós antes de falecerem, também meu moletom branco para esconder as marcas. 

Quando cheguei na cozinha, peguei um pedaço de torrada com geleia de morango e saí voando para garagem adentrando rápido no carro do meu pai.

Seguimos pelo trajeto conversando um pouco e logo chegamos na frente da minha escola e meu pai resolveu abrir a porta do carro causando assim suspiros nas mulheres que observavam a cena. Sinceramente, acredito que não herdei essa beleza dele mesmo que os outros digam o contrário. 

 — Até mais, pai. — dou um beijo em sua bochecha e me afasto.

— Boa aula, princesa. — ele se despede com um aceno e um sorriso.

Entrei seguindo pelos corredores e fui para a sala indicada. As aulas transcorreram bem, tudo normal para o primeiro dia exceto por uma novidade: eu fui convidada para participar do grupo de dança da escola. Esse grupo faz apresentações nos eventos e participa de concursos, durante todo esse tempo que estão em ativa, só perderam uma vez.

Logo que cheguei em casa fiz questão de contar para minha mãe.

— Não sei o porquê de você estar tão eufórica, afinal, você não vai. Isso não é coisa para meninas da sua classe social. — diz ríspida como sempre.

— Por que nunca me apoia mãe? A senhora não sabe como é difícil conseguir uma vaga. Devia se orgulhar de mim! 

— Não estou nem aí, Maya! Não te criei para estar em grupinho de dança pois para mim isso é uma total perda de tempo! — Sinto as lágrimas surgindo nos meus olhos.

Como fazer o que gosta é perda de tempo? Eu amo a dança e a quero como profissão.

Meu pai tinha acabado de chegar, mas eu já não conseguia me conter, então saí correndo dali, não queria chorar na frente deles e acabar demonstrando minha fraqueza.     Nem me surpreendo mais. Ela sempre foi mais ligada ao meu irmão do que a mim. Sempre a vejo discutindo com meu pai por minha causa. Não sei o porquê dessa queixa comigo. Ela me odeia! 

Não é exagero. Ela mesma falou isso. De tanto repetir, estou acreditando cada dia mais. Ela sempre criticava a minha cor ‒‒ isso é uma das coisas que não consigo entender, meus pais são brancos e eu nasci negra ‒‒ sempre que tocava nesse assunto eles me reprimiam, então, resolvi não falar mais. Ela vivia dizendo que meu cabelo era feio, que eu era suja, que meu corpo nunca iria ser desejado por homem algum e quem disse que preciso de um homem para ser feliz, ou para me sentir realizada e amada? A sociedade tem que rever esse conceito ridículo. 

Ela me fez alisar meu cabelo, só para não ouvir críticas das amigas dela, fiquei quatro meses com química no meu cabelo e isso só fez eu me odiar mais. Juro que tento seguir os padrões, mas não consigo, mesmo não me sentindo bem, eu me forço só para não ouvir reclamações dela.

Lá estavam eles discutindo de novo. Sinto raiva de mim por estar mais uma vez causando brigas entre eles.

                                     🍦

A discussão não demorou muito como das últimas vezes. Droga, por que tem que ser sempre assim?

Meu pai saiu logo após quando minha mãe soltou a seguinte frase:

Preferia nunca ter tido ela!

Vocês devem estar se perguntando como eu me senti diante disso e eu os respondo: Normal, nem liguei, afinal ela é uma surtada. Puff! 

Queria que isso fosse verdade, que eu não ligasse, mas o problema é que eu ligo e muito! Sempre tento agradá-la, mas nunca consigo. Eu perdi a minha autoestima por conta das críticas das amigas dela e principalmente dela.

Minha mãe me destruía com tanta vontade que eu comecei a acreditar em todas aquelas ofensas dirigidas a mim. Ela me proibiu de sair com ela e de ir a eventos famosos. Não conseguia olhar no espelho e me achar linda, não conseguia sentir atração por mim mesma, entende? Quando alguma pessoa vem me elogiar, eu juro, que é por pura pena. Nunca consegui ficar com alguém e nem conseguia chegar perto de alguém para tentar. Eu sou ridícula, eu sei!

                               

Data: 15/02


Querido diário, por que ela me detesta? O que eu fiz para ela? Se ela não me queria por que me teve? Era só me abortar ou me entregar para adoção. Ela não percebe o mal que me causa? Ela não percebe que eu não vou ser feliz assim? Eu me odeio, graças a ela. 

Meu pai, coitado, vive a submissão dela. Eu odeio discutir com ela e sempre vim me mutilar. Já virou rotina e eu não consigo evitar. 

Essas perguntas e pensamento rondavam a minha mente enquanto deixava a dor ser o meu alívio. Me agredir  em partes diferentes do corpo e as lágrimas rolavam enquanto eu estava largada no chão do banheiro do meu quarto, exausta. Levantei, abri a gaveta e peguei a lâmina que tinha guardado. Os pensamentos não paravam…

Aquilo me aliviava. Droga! E como aliviava! Mas não devia. Eu sei que não devia, só que era bem mais forte do que eu e eu estava... Gostando! Eu fui permitindo ser sufocada pelos meus diversos pensamentos.

Droga, minha mãe não me queria por perto, isso já era nítido há muito tempo só que agora eu tive a confirmação. 

Eu não conseguia raciocinar direito.

Não conseguia pensar em nada, apenas queria um alívio, nem que fosse momentâneo. Respirei fundo e fiz um corte na coxa esquerda, não muito profundo. Pensamentos, perguntas e medos  giravam na minha cabeça. Eu estava exausta de seguir sempre o mesmo caminho. O problema é que eu não conseguia evitar. 

Lembranças de frases que escutei durante a minha vida, se fazia presente nesse momento, então, fiz outro. As lágrimas já caiam em grande quantidade, assim como o sangue. 

Tudo isso, tinha virado uma rotina, que particularmente não desejo para ninguém. Só eu sei o que passei e passo e essa foi uma solução que arrumei, uma horrível solução, eu sei.  

Respirei fundo, aliviada quando alguém bateu na porta. Levantei-me, lavei as manchas de sangue do meu corpo, fechei a porta do banheiro para ninguém ver e me sentei na minha cama.

— Maya venha almoçar, sua mãe mandou te lembrar que você tem aula de inglês e espanhol hoje à tarde! — era Cecília, a “faz-tudo” daqui de casa, inclusive até ser a nossa mãe.

Dona Catarina, vulgo minha mãe, não me deixa esquecer os meus compromissos. Na verdade, ela quer me ver fora de casa, já até falou isso para o meu pai.

— Cecília, traga o meu aqui, por favor. ‒ falei deitada na minha cama com travesseiro na minha cara, sem abrir a porta.

— Okay, querida, está tudo bem?

— Está sim. ‒ respondi fingindo-me apenas para não deixar ela preocupada.

 — Okay. ‒ respondeu e escutei seus passos indo para longe.

                                         🌻

Acabei de almoçar e agora vou me arrumar, preciso também lavar o chão do banheiro, irei para o curso e logo após para a aula de dança, meu pai me levará pois é no caminho do hospital. Hoje é dia dele madrugar fazendo atendimento voluntário.

No carro, ele não falou nem uma única palavra comigo. Seus pensamentos estavam distantes e a letra da música de Caetano Veloso fazia moradia no ambiente.

 — O senhor está bem? — Questionei tentando acabar com o silêncio olhando para ele.

Ele deu o seu melhor sorriso, mas dava para perceber que era falso.

— Estou sim, meu amor e, olha, o que aconteceu hoje... não ligue, ignore tudo! Sua mãe não está em um bom dia. Apoio a fazer as aulas de dança, okay?

Como é que vou ignorar tudo que minha mãe vem falando para mim durante todos esses anos?

Meu pai sempre foi muito grudado a mim,, íamos para tantos lugares juntos: para as minhas apresentações, para o hospital quando era preciso e fazia todas as minhas vontades e claro, sempre me defendia. Em um resumo mais amplo, ele fazia o papel de pai e de mãe.

— Obrigada. Tenho muito orgulho de você. — falei sincera e vi um sorriso verdadeiro brotar no seu rosto.

— Eu que tenho orgulho de você, meu amor. — ergueu-se e deu um beijo na minha testa enquanto o sinal estava vermelho. Dei um sorriso e seguimos o nosso caminho em silêncio.

                                      🌻   

Querido Diário, cheguei do meu primeiro dia de aula de dança, conheci várias pessoas e aprendi muito mais da história do balé e da dança contemporânea. O professor passou um exercício: montar uma coreografia contemporânea. E quem for bem será colocado na lista para disputar em um concurso estadual. 

Temos três dias para fazer a coreografia, a única regra é colocar uma música que represente a nossa história. Ainda estou em dúvida sobre qual irei escolher, porém, estou muito animada. O meu professor é ótimo, gentil e diferente de outros professores de balé, já que ele não me olhou diferente, e sim, com um sorriso sincero mesmo eu sendo a única garota negra ali.

Até então, o meu dia tinha sido maravilhoso tirando algumas meninas que não paravam de me olhar e outras que estavam criticando a cor da minha pele, apontando, como se eu fosse uma aberração ou algo para se desprezar. Eu me senti constrangida, mas tentei fingir que estava tudo bem.

 Até quando isso? Digo, até quando vou ter que me constranger? 

                                    🍦


Já sabem: 

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                              Matheus Silva❤


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