FALANGE _ Caminho das Estrelas I
FALANGE _ Caminho das Estrelas I
Por: Christyenne A.C.
ANTES| DESASTRE

P A R T E  I _ C H A M A S

"Para o frio existe o calor.

E essa chama até então desconhecida não permitirá

Que o frio permaneça".

_autor desconhecido.

A NOITE ESTAVA SILENCIOSA. A lua grande e brilhante no céu escuro e limpo era uma clara evidência do clima agradavelmente quente que a atmosfera continha. As estrelas formavam uma linha torta e deslumbrante nas entrelinhas manchadas de cinza acima das nuvens, lembrando ás pagina rabiscadas de um caderno. Desorganizado, mas incrível.

A cidade flutuava em um longo silêncio etéreo traduzido apenas pelo trânsito intenso e abafado que desembocava em todos os pontos da cidade. Pessoas voltavam-se para a atração central da cidade, onde o novo Parque de Atrações Vienna havia sido inaugurado, onde o núcleo de habitantes havia se reunido, o único ponto barulhento num raio de oitenta quilômetros. A diversão havia impressionado a todos numa constante nuvem de sorrisos e gritos. A música alta abafava qualquer sinal frustrado de comunicação. Os convites, avisos e folders da nova atração principal da cidade voavam em todas as direções, perdidos entre as pessoas que corriam de um lado para o outro entre os mecanismos vibrantes e luminosos espalhados por todos os cantos do enorme parque. O cheiro de algodão doce e pipoca com manteiga carregava o ambiente, transformando o aglomerado de pessoas em uma massa grudenta de açúcar e gargalhadas. A cidade estava completamente atraída pelo som da diversão.

A ponto de ninguém notar o que estava acontecendo.

Ninguém percebeu quando um clarão estranho fez com que as nuvens claras recuassem com um estrondo macio, como se uma tempestade estivesse se aproximando sorrateira e vingativa. Mas então, alguma coisa mais foi abalada. Os céus tremeram de uma forma estranha, como se blocos de gelo cristalizados estivessem se quebrando, e os rabiscos estrelados passaram a mudar de forma, como se estivessem sendo reescritos, e então... tudo aconteceu.

Todos começaram a notar quando as construções começaram a abalarem-se sob seus pés, como se um terremoto estivesse tomando formas e ruídos. Mas era tarde demais. Gritos começaram a soar quando a roda gigante começou a dançar de um lado para o outro, ameaçando se deslocar de suas engrenagens. Então a correria começou, quando todos tentavam escapar do desastre eminente. Mas não havia nada que pudesse impedir.

Ninguém pode perceber ao certo o quê ou como aconteceu, mas de um momento para o outro, era como se o parque inteiro estivesse desmoronando. As faíscas começaram a saltar em todas as direções, o barulho de engrenagens sendo esmagadas abalou o restante das estruturas, e aos poucos, as luzes começaram a se apagar, uma a uma.

O mundo se rompeu.

•••

Mas em outro lugar, havia alguém acompanhando a situação com os olhos vidrados.

― Droga, aconteceu!

A linda garota de cabelos brancos correu ao encontro de seus binóculos, que haviam caído em algum lugar do caminho que havia tracejado em cima de um dos maiores arranha-céus da cidade escura. Apesar da visão aguçada, a fumaça e a poeira acabaram impedindo-a de utilizar seu dom em toda sua magnitude. Mas quando o encontrou, não o mirou para a confusão ao longe que se seguia no novo Parque de Diversões da cidade, mas sim para cima, em direção aos céus. O que havia acontecido era mais do que óbvio. Suas mãos congeladas tremeram ao constar que a barreira que havia criado acima das nuvens havia se estraçalhado em milhões de pedaços. Neve e Fogo.

― E então, Dublemore? O que houve!? Vai me dizer ou não? ― outra voz feminina e hipoteticamente apreensiva soou ao seu lado.

A segunda garota usava uma roupa escura, e seus cabelos vermelhos estavam desgrenhados. Em meio ao vento impetuoso que uivava de um lado para o outro, ela parecia não ser atingida, mesmo que estivesse com seus braços brancos e marcados descobertos. Seus olhos profundamente azuis recriavam a cor dos céus durante uma tempestade.

― O que você acha? ― a garota congelada à sua frente cuspiu entre dentes, arremessando o binóculos a frente com todas as força ― Apenas não funcionou, ela passou! E aconteceu da forma mais estranha que poderia ter acontecido...

A segunda garota tremeu momentaneamente, cílios longos indo e vindo, dançando na sinfonia do medo.

― Como você tem tanta certeza?

― Dê uma olhada nas estrelas, Arbo! Elas estão completamente desalinhadas... Apontando em todas as direções erradas. E se essa breve constatação não bastar, observe a pequena confusão no Parque terreno.

Arbo chacoalhou a cabeça enquanto dava voltas ao redor de si mesma, como se não soubesse direito o que fazer ou como agir. De repente, sua presença ali apenas parecia meio inútil, meio insana, meio... nada.

― Isso não vai prestar. Isso não vai prestar mesmo. Qual foi a última vez que uma coisa dessas aconteceu? Droga. Isso nunca aconteceu. ― ela parou de repente, gritando enquanto olhava para cima ― Que confusão é essa agora?

― Não adianta ficar fora de mente agora... ― Dublemore xingou enquanto se levantava às pressas ― Temos que agir. Agora mesmo.

― E o que exatamente você pretende fazer?

― Encontrá-la. ― Dubb constatou o óbvio.

Arbo parou um segundo, e inesperadamente gargalhou alto, de uma maneira sinistra, fazendo com que o vento assoviasse ainda mais forte, desgrenhando ainda mais seus cabelos vermelhos. Mas não havia nenhum humor no riso. Como uma boneca eletrônica.

― Encontra-la? Você acha que vai ser tão simples assim?

― Não, é claro que não acho.

― Então... ?

Foi a vez de Dublemore parar por um instante, como se considerasse seriamente o que iria propor, como se ela mesma não acreditasse no que estava prestes a dizer. Pela primeira vez, estava prestes a ir contra O Punho. Contra sua natureza, contra tudo! Mas que outra saída havia, a não ser divergir na situação? Não havia nada em seus movimentos ou em sua expressão que pudesse delatar parte de seus pensamentos agora, e era assim que Dublemore geralmente era. Uma pedra de gelo sem emoções. Havia apenas o frio. Cortante e etéreo.

― Vamos ter que Despertá-lo.

Os olhos azuis de Arbo se abriram mais em direção a ela.

― Despertar quem?

Mas Dublemore já estava refazendo seu caminho, incomodada com a pergunta, por que Arbo provavelmente já sabia a resposta.

― O único que pode detê-la.

― Mas, Dublemore, você não pode...

― É claro que eu não posso... _ela sentenciou enquanto seus olhos cor de gelo miravam o Parque em plena destruição pela última vez ―, mas não tenho escolha. ― ela baixou o tom de voz ― nenhum de nós tem.

D E P O I S |1|  ATRIBUIÇÕES DE MEMÓRIA

  ME AJEITEI MELHOR DENTRO DO SUÉTER PESADO ENQUANTO sentia o frio penetrando através da lã e encontrando meus pulmões. A neblina fria se emaranhava em meus cabelos escuros, criando um aspecto ainda mais estranho do que eles costumavam ter.

Apertei mais o lápis entre os dedos congelados enquanto os obrigava a se moverem pelo papel de forma mais eficiente. Ainda faltava muito tempo para soar o sinal da entrada da aula, de forma que eu contemplava sentada e entediada o vai e vem dos alunos da minha escola com uma morbidez incipiente. Me debrucei mais sobre a mesa oval do refeitório do jardim, sentindo o frio ardendo em minhas orelhas, enquanto tentava me esconder das rajadas extremas num nível ainda mais baixo do que eu estava, onde a grande placa que anunciava ACADEMIA SECUNDÁRIA DE ASTRONOMIA GEORGES LEMAÎTRE bloqueando a maior parte do ar em movimento que desembocava completamente em minha direção, me obrigando a praticamente colar meu nariz congelado no papel rabiscado da agenda surrada que eu carregava por todos os lados.

Onde eu escrevia rabiscos que também carregava por todos os lados.

E todas as paredes que eu achava ter construído

Eram de vidro

E logo se...

Foi nesse instante que um outro nariz gelado cutucou minha orelha:

― YEAAH BOMBONZINHUU!!!

Devo ter pulado uns três metros no ar, mas a única ação que meu cérebro registrou, foi minha agenda se fechando tão rápido, que o lápis que eu segurava voou tantos metros à frente, que totalmente o perdi de vista. Levantei os olhos furiosos para a minha melhor amiga.

― DESASTRE. Sabe como eu odeio quando você e seu nariz fazem isso!

― ECO. Por que você não está por aí gritando e pulando para aquecer como pessoas normais, ao invés de ficar com o seu nariz enfiado numa agenda surrada e escrevendo baboseiras?

― Por que eu não quero.

― É sério, eu estou dizendo. Daqui alguns meses você começar a incinerar insetos, sua nerd-sem-noção.

É claro que só uma nerd fala assim da outra, por isso apenas dei de ombros quando Ivi descarregou sua mochila cheia de chaveiros em cima do tampo da mesa, se enrolando um pouco com as luvas grossas de crochê e mal conseguindo se movimentar direito pelo peso das blusas rosa cashmere. Mesmo assim, Ivi continuava sendo uma das meninas mais bonitas da escola, e seu cabelo ruivo cem por cento em rolinhos com certeza estava divinamente algumas vezes melhor que o meu. Cem por cento por que era legalmente ruivo, tipo, cor de cenoura, e não avermelhado. Ivi estava oficialmente dentro do grupo terrestre que representava os 2% de civilização ruiva do planeta.

Eu meio que me senti naquele momento em que você inveja sua melhor amiga com todas as forças do seu ser por ela ser tão bonita e graciosa.

Mesmo quando ela espirra mais do que sua avó doente.

― Fala sério. ― ela grunhiu limpando o nariz num lencinho amarrotado que arrancou de um dos cem bolsos da jaqueta ― eu ainda não acredito que estou resfriada em plena Califórnia... esse tipo de coisa não costumava acontecer nem quando... bem, isso simplesmente não acontece. Ponto.

Rolei os olhos enquanto enfiava minha agenda na mochila.

― Não exagere, Ivi, é só uma frente fria.

― Frente fria? É o apocalipse! ― ela arregalou os olhos castanhos para mim, se deixando cair ao meu lado no banco ― Helooooou Srta. Nerd; não temos Frentes Frias, apenas muito calor e sorvete. A propósito, vamos continuar com os sorvetes, eu acho, por que em exatamente dois minutos, eu vou congelar. Quero dizer, você está sentindo o seu nariz?

Tá, era esquisito, mas e daí? Hawthorne parecia estar registrando o primeiro fenômeno climático de tempo da história. Eu meio que me sentia esquisita ao olhar a pele bronzeada de Ivi e seus cabelos ruivos queimados do sol completamente cobertos com tanta lã rosa, quero dizer, levando em conta que ela era o tipo de garota que costumava usar apenas uns poucos fiapos de roupa. E era ainda mais esquisito olhar para ser nariz fino e bronzeado agora vermelho de resfriado. Nenhum de nós estava preparado para aquilo. Por que uma cidade que vive abaixo de um sol escaldante de 37°, de repente pode estranhar um pouco quando começa a viver abaixo de uma grossa crosta pegajosa de chuva, umidade e frio. Era meio que passar da fritadeira direto para o freezer. Havia chovido tanto nos últimos dias, que já se estava cogitando os possíveis riscos de uma enchente. E de uma intensidade bastante questionável.

Tanto, que os alunos comunitários do ASAGL organizaram o CÔMITÊ CONTRA A POLUIÇÃO DAS BOCAS DE LOBO, o CCPDBDL, que vinha tomando todas as páginas do jornal oficial da escola, o GEORGE'S COMETA, no qual minha melhor amiga gênia era a colunista principal.

― Eu não acho que o Apocalipse vá ser tão frio assim, Ivi... ― a corrigi instantaneamente.

― Viu só? Até o Apocalipse é melhor que isso.

Meu cenho se franziu.

― Eu não disse exatamente isso.

― Tanto faz... eu apenas sei que não consigo me acostumar com toda essa roupa. Nem consigo caminhar direito, sabe, aquela história de um passo atrás do outro... já era. E como é que eu vou mover os dedos para escrever dentro dessa luva horrorosa que a minha mãe me fez colocar? A lã fica raspando nas pontas das minhas unhas, aí um arrepio completamente desagradável cutuca tudo é um completo HORROR. Simplesmente não dá pra vir à escola com toda essa umidade e frio. Devíamos fazer uma paralisação para cancelarem as aulas até que nosso querido sol aponte nos céus novamente... aquele cretino fujão!

― Vai sonhando... ― eu ri entre dentes, por que abrir a boca para rir completamente, significava ter que expelir ar gelado ― Eu não acho que esse é um total motivo de paralisação. Vai ter que tentar um argumento mais sólido que esse na próxima vez que for tentar implorar por umas férias adiantadas.

Ivi deu de ombros enquanto tirava um Pop-Tart de morango de dentro da sua mochila.

― Talvez eu devesse explodir o ginásio ou algo assim. Que seja, acontece que nós estamos em Hawthorne, a Terra do Sol... e da Space X. Talvez a Space Exploration Technologies Corporation tenha alguma maldita explicação sobre tudo isso, o que me dá uma ideia para a próxima matéria, se o gato do Elon Reeve Musk aceitar me dar uma coletiva. ― ela piscou, dando uma mordida no seu Pop-Tart ― Mas tanto faz... anda todo mundo meio abobado mesmo... nunca vi tanta confusão desde... ― sua voz sumiu quando seu rosto avermelhou, e eu sabia que não tinha nada a ver com o frio dessa vez. Ela me olhou sem jeito antes de dar mais uma bocada na bolacha açucarada de morango ― Bem, você sabe...

É claro que eu sabia.

Mas Ivi também sabia que eu não gostava muito de ter que tocar no assunto. Tipo, em momento nenhum. Na forma como tudo aconteceu no maior desastre da cidade. O famoso Vienna, mas conhecido como Coisas que Flutuam. A cidade toda sabia do acontecido, porque todos estavam lá no dia da inauguração, o mesmo dia em que ele teve de ser fechado, e toda a área do Parque foi rodeada com uma fita zebrada amarela e preta... porque ele desmoronou em nossas cabeças. Mas não era exatamente isso que me incomodava, nem o fato de o Túnel do Medo ter desabado todinho em cima de mim_e só de mim por que eu havia sido a última a sair, por culpa dos cadarços idiotas dos meus tênis que desamarrados, se embrenharam em alguma coisa no escuro e não consegui desenroscá-los a tempo.

Também não me incomodava tanto o fato de eu estar viva mesmo depois de provavelmente não ter de estar, ou de as cicatrizes milagrosamente terem se curado na mesma semana, exceto por aquela mancha estranha que permanecia marcando presença no meu pulso direito.

Não, não era nada disso.

O que realmente me apavorava, era o fato de não me lembrar de nada do que havia acontecido meio segundo depois de conseguir desenroscar os malditos cadarços do que seja lá no quê eles tivessem se enroscado. Eu nem mesmo sabia como havia chegado ao hospital ou o que se passara naquela semana, por que na próxima, eu havia despertado como que de um sono corriqueiro, me sentindo completamente normal, exceto por duas pequenas alfinetadas que ninguém conseguia entender: eu estava viva, e eu não lembrava.

E é completamente horrível não conseguir lembrar. É horrível quando sua mãe chacoalha você pelos ombros exigindo saber o que aconteceu e você não consegue responder por que não lembra.

Bom. O Túnel do Medo havia desabado sobre mim. Isso era tudo que minhas memórias perdidas me permitiam explicar.

Até os personagens que tentavam infligir medo no escuro haviam sido mais espertos e corrido mais rápidos.

― Ei, Eve! ― as mãos enluvadas e cheias de migalhas dos flocos de açúcar de Ivi dançaram em frente aos meus olhos, me chamando novamente à realidade. ― Ei, eu estou perguntando se está tudo bem. É sério, foi só um comentário besta, você não precisa ficar se lembrando daquilo novamente.

Chacoalhei a cabeça da maneira mais desajeitada possível.

― Ah, desculpe... eu só estava...

Ok. Ela sabia o que eu estava fazendo. Se não soubesse, ela não seria Ivi.

― Estava se torturando mentalmente, eu sei. Acho que os seus neurônios já estão entrando em curto circuito por causa disso. ― Ivi também cruzou os braços ao meu lado, e só agora eu percebia que havia cruzado os meus de uma maneira tão suicida, que o zíper do casaco estava se afundando na pele. Ivi também estava incomodada, por que não havia como aquele assunto não incomodar. ― Você ainda não se lembrou de nada?

Suspirei, ― Não.

― Você sabe, é completamente normal. Levou uma pancada na cabeça. Não é desumano você ter perdido parte da memória.

Dessa vez eu abri a boca completamente para rir, sem me importar com o frio que entrou para dentro dos pulmões de uma vez só, criando redomas de sensações cruas pela garganta.

― Certo, talvez desumano tenha sido apenas todo o resto. E pancada na cabeça? Um Túnel de matéria prima e humanamente machucável meio desabou em cima de mim. Nem era para eu estar viva aqui e tentando explicar isso a você, você entende isso?

― O que eu entendo, é que essa sua psique já está na zona dos polinômios negativos. ―ela esfregou as mãos para aquecê-las ― Apenas houve um acidente besta e você se livrou. Não sei por que isso te incomoda tanto.

Eu também não sabia.

Coisas que quase acontecem, são mais difíceis de serem compreendidas. Era complicada essa coisa de seguir em frente, mas também, nunca ninguém disse que ia ser fácil.

O que mais me chateou, foi Ivi ter a ideia inegavelmente mais idiota de todos os tempos de escrever uma matéria sobre meu acidente no jornal da escola com o título inacreditável TERROR NO TÚNEL DO MEDO, achando que isso iria me ajudar. Isso apenas ajudou para que Hanna Winchestter ― que tinha como missão oficial TORTURAR EVELINE GRINGER ATÉ O ÚLTIMO DIA DE SUA MÍSERÁVEL VIDA ― colhesse mais informações da minha quase-morte, e pudesse me ferir de forma mais íntima e direta, como ela geralmente adorava fazer porque... porque sim. Eu não sabia por que, exatamente, líderes de torcidas tinham essa psique maluca em torturar garotas como eu, mas enfim. E minha melhor amiga-gênio chamada Ivileine Metodins havia cooperado amavelmente pela primeira vez na vida com aquele espantalho loiro.

Ah, Parabéns Ivi.

*

 Meu sortudo e congelado dia realmente começou quando Hanna me viu entrar no corredor estreito que nos levava à primeira aula do dia, que eu compartilhava com Ivi e infelizmente Hanna também. Ela estava usando aquela "microminisainha" que ela sempre usava por cima de uma meia calça peluda rosa choque. Fala sério. O detalhe destoante da cena meio que envolvia Hanna em todos os aspectos. Ela não dava um desconto nem que chovessem flocos de linguiça assada com gosto de caramelo. Seus cabelos lisos que chegavam até a cintura num corte V pareciam brilhar com gliter dourado, e sua sombra azul forte ficava desastrosa no rosto coberto de maquiagem. As luvas exageradas de pelúcia e os brincos enormes de argola completavam seu visual de Barbie do mal. Especialmente quando ela semicerrou seus enormes olhos azuis em minha direção. E dai? Ivi não tinha olhos azuis e era mais bonita que ela.

A Líder de Torcida loira e mais odiada do colégio ― assim como eram todas as Líderes de Torcida por tradição Mundial, chancelado por algum Decreto Secreto escondido na gaveta da CIA, em Langley ― estava rinchando com suas outras amigas perfeitinhas numa rodinha perto da porta da sala 20 do primeiro ano, onde a aula de Geografia Introdutória nos aguardava, e onde os caras geralmente costumavam ficar babando enquanto olhavam as Barbies e Suzis. Porque por um incrível azar do destino, todas dividiam o primeiro tempo comigo.

Ah sim... Ivi era mais bonita em caráter... toda uma vida que sim.

Mesmo quando tropeçava do meu lado por estar olhando demais um cara bonito:

― Estou dizendo, isso é coisa maligna. Todos esses caras bonitos por aqui e nenhum deles me chama pra sair. Quando é que eu vou me acostumar de vez com o Ensino Médio? Meninos bonitos não deveriam ser mais cavalheiros?

Tentei desaparecer fisicamente, criando uma resposta para a pergunta de Ivi enquanto acelerava o passo, ― Talvez quando...

― Droga, Gringer, você ainda não morreu?

... não adiantou.

Deixei o ar sair de vagar, me perguntando se eu realmente ia conseguir conter a vontade de bater com a cabeça em alguma coisa. Talvez até na própria cabeça de Hanna, se ela não estivesse atrás de mim ao invés de na frente e ao alcance da testa. Respirei fundo ao invés disso.

Calma, Eve. Encare a situação como uma pessoa madura.

Abri meu nada-melhor-sorriso-forçado ao girar sobre os calcanhares.

― Olá, Hanna... ― ... cabeça de fuinha.

― Se um Túnel não é suficiente, o que precisamos jogar em cima você para fazer o trabalho sujo? ― Hanna rolou um smartphone cor de rosa em uma mão, porque a outra segurava sua bolsa de duzentos dólares.

― Talvez você só precise sentar em cima de mim, porque do jeito que você anda engordando essa sua bunda, provavelmente não vou conseguir resistir ao peso, principalmente se você juntar o resto da massa muscular que parece estar acumulando com tanta vontade.

Tá, é claro que era uma mentira, mas só garotas torturadas como eu sabiam que o pior insulto à uma líder de torcida perfeitinha era chamá-la de gorda. E deu certo. Os olhos azuis de Hanna se inflaram, injetados, e enquanto suas amigas abafavam os risinhos, ela ameaçou jogar sua bolsa de duzentos dólares em cima de mim.

― Sua esquisita! Por que você não fez outra coisa ainda mais chata ao invés de nascer? ― ela cuspiu enquanto passava por mim como uma versão loira do Super Sonic, e eu me sentia enjoada por causa do perfume doce que ela fazia questão de mostrar que usava.

Eu realmente tentava fingir que nada do que ela dizia me atingia, mas Hanna era demais para uma garota de apenas dezesseis anos. Principalmente quando ela te chamava de esquisita daquele jeito que só ela sabia chamar. Hoje nosso diálogo diário não havia sido longo, mas havia sido um tanto inesquecível. Não que ela não me chamasse de esquisita toda vez que me abordasse, mas porque naquela ocasião ela havia se referido a minha quase-morte em particular.

Aquele maldito assunto.

Então Ivi me deu um leve cutucão nas costelas para me amparar.

― Esqueça isso. Essa garota simplesmente não pode ser metodista.

Suspirei enquanto o sinal soava, tentando aceitar que as coisas apenas eram assim e que não havia muito que eu pudesse fazer. Isso me impulsionou a seguir o caminho até a sala com Ivi tentando me animar.

― Tive uma ideia, ― ela sorriu me mostrando seu talento de jornalista ― tipo, e se nós fizéssemos um comitê chamado TAADTTQM _ "todas as animadoras de torcida tem que morrer", como aquela música dos Switchblade Kittens? Eu posso imaginar toda a escola aderindo à paralisação.

― Você quer dizer, menos os caras.

― Certo, mas como a Califórnia é um país de predominância feminina, temos certeza que teremos bastante simpatizantes e patrocinadoras.

Eu quase ri. Quase.

― Que psicose é essa que você tem com paralisações?

― Eu sou jornalista.

― Então você devia ter psicoses com papel reciclável e coisas mais assim... ― murmurei daquele jeito enjoado que eu murmurava quando ficava irritada ― Sabe, ás vezes eu acho que queria ter o poder de fazer um asteroide cair em cima dela.

Foi mais o menos nesse momento, que aquele som completamente reconhecível de chuva caindo no telhado nos acordou para a realidade. Os vidros da janela da sala começaram a ficar respingados, e toda a classe soltou uma exclamação abafada.

― O quê? ― Ivi parou para ouvir melhor ― De novo?

Eu apenas dei de ombros enquanto rumava para a carteira número doze, porque já tinha problemas demais para ficar me preocupando com o tempo.

― Encare isso pelo lado bom...

― Que lado? Aquele em que nós poderíamos evoluir rapidamente para criaturas aquáticas?

― Não. Aquele em que nós estamos aqui dentro e não lá fora.

Ivi se sentou em silêncio na carteira número vinte, bem ao lado da minha, com a cara amarrada, porque todo mundo ficava meio assim na aula de Geografia.

Talvez apenas porque o Professor Encharpe fosse o objeto mais imoral que havia alguma vez pisado na GL. Ele era um careca de meia idade que usava óculos com aro redondo e escrevia tudo errado no quadro. E costumava fazer perguntas apenas aos alunos que usavam corrigi-lo. Por isso, o quadro negro era uma bagunça só, e ninguém entendia muita coisa da matéria, também dificilmente alguém passava com uma média razoável na sua aula, de forma que não eram novidade no fim do semestre as notas em vermelho no boletim, quase todas abaixo de três. Pelo menos eu tinha um ponto sobre isso, conseguindo mais que 85 em todas as provas. Encharpe também dificilmente podia ser confundido com alguém que gostasse de trabalhar. A julgar pela forma que ele se conduzia dentro da sala; de vagar, sem vontade, e como se estivesse o tempo todo com sono ou viajando mentalmente em algum lugar próximo de Marte, dando um rolé na galáxia e admirando a Ursa Maior. Não havia como não ser contaminado por seu ar distante enquanto se estava próximo a ele, e isso sempre me fazia ficar desenhando rabiscos no caderno para evitar a cena angustiante. Até na hora da chamada ele desenhava a bolinha à caneta.

Mas hoje foi diferente.

Logo percebi que havia algo errado quando Sr. Encharpe entrou quase correndo na sala, segurando um punhado de folhas num braço e a pasta no outro, e jogando a cabeça para o lado direito de forma rápida e ritmada, ao invés de entrar na sala contando os passos, lustrando os óculos ou fazendo uma clara careta de desânimo.

Ivi me jogou aquele olhar que dizia algo como Eu estou vendo coisas, ou o Sr. Encharpe REALMENTE se parece com vontade de trabalhar hoje? Respondi com aquele olhar que mais o menos dizia Tanto faz...

Não que fosse anormal ver o Sr. Encharpe escrevendo perfeitamente rápido PROVA SURPRESA de forma absolutamente enquadrada à língua portuguesa, o que era anormal era ele dar uma prova surpresa. Sr. Encharpe geralmente editava suas provas uma vez por mês e as aplicava no fim do conteúdo, e sua meta geralmente eram trabalhos que lhe poupassem de eventuais dores de cabeça, por isso, quando seu giz parou de guinchar no quadro, uma fileira de bocas abertas se seguiu entre a sala. Até Hanna teve o amor próprio de guardar o celular dentro do estojo, percebendo que talvez, hoje houvessem possibilidades sólidas de ele ser confiscado pelo Sr. Encharpe. Ignorei a forma como um aluno olhava para o outro, como se a sentença de morte de cada um tivesse sido redigida no quadro ao invés de prova surpresa.

Bom, para a maioria podia ser exatamente isso.

― Parece que nós já terminamos nosso assunto inicial de Introdução à Astronomia e Corpos Celestes, o que me leva a fortemente pensar que se sujeitos que estão com seu caderno em branco ou todo preenchido com palavras erradas e claramente não condizentes à matéria já podem ter apreendido tanto a ponto de não ter absolutamente nenhuma dúvida sobre o conteúdo. ― Encharpe tagarelou da forma mais acadêmica possível, e quando ele chegou ao fim de sua explicação nada razoável, percebi que meu queixo havia caído escancarado. Quero dizer, desde quando ele havia apreendido a falar melhor do que a professora Howard, de língua portuguesa? E de onde haviam surgido tantas palavras polissílabas? E de onde diabos surgira toda a coisa da coerência verbal, afinal?

Encharpe estava também gaguejando como um altista maluco e desequilibrado, e ás vezes rolava os olhos castanhos como se eles fossem vitrificados.

― Nossa mais recente aula nos mostrou o talento de alguns alunos em ficar moscando na sala de aula ao invés de procurar possíveis erros de lógica nas explicações, e já que não houve nenhum, estou bastante convencido que todos podemos fazer hoje uma auto-avaliação sobre nosso conhecimento precário sobre Astronomia. ― ele coçou a testa como se estivesse tendo tiques nervosos, espalhando as folhas pela mesa de maneira simétrica ― Então, primeiro, diga-nos Srta. Yohanna Winchester: Quem foi GEORGES LEMAÎTRE, o ilustre nome de nossa escola?

Todos os pescoços entortaram para Hanna, que não expressou o menor sentimento ao murmurar:

― Eu não faço ideia.

Enquanto a turma inteira ria, eu tentava me recompor no assento, tentada a fazer alguma piada da Cabeça de Fuinha. Ela podia ser melhor que garotas como eu e Ivi em termos de ser sexy numa quadra de basquete, mas com certeza não era lá muito impressionante em uma aula de geografia.

Encharpe expressou isso em uma careta de desânimo.

― Será que existe algum cérebro com a quantidade suficiente de matéria cinzenta nesta classe a ponto de conseguir me dar a resposta correta para esta pergunta?

Mordi o lábio para segurar a vontade de rir quando Ivi levantou a mão:

― Foi um famoso Astrônomo teísta belga.

― Deve ser o mesmo que perdeu as botas dele lá na sua casa. ― Hanna completou, meio segundo antes da turma cair na gargalhada novamente.

― Ou aquele que espiou debaixo dessa sua minissaia ridícula semana passada. Ah não, espere, não foi ele. Foi a equipe de basquete inteira. ― Ivi cuspiu entre dentes, alto o suficiente para que apenas eu ouvisse, e tivesse que tapar a boca para esconder o riso.

― Isso está completamente certo, Srta. Ivileine. Imagino que saiba também me dizer o que são cometas e quais as constelações mais famosas do hemisfério boreal?

Fechei minha agenda enquanto observava o maneirismo estranho de Encharpe enquanto ele ouvia Ivi falando sobre Taurus e suas estrelas. Havia um modo estranho no jeito como ele olhava, como se seus olhos fossem dois buracos negros que absorviam tudo e não devolviam nada, e foi exatamente isso essa sensação intempérie que me ocorreu quando ele perguntou o que era um buraco negro a mim.

― Ele aparece quando uma estrela desaparece ― expliquei de forma rápida, pois odiava falar na frente da classe toda. Eu provavelmente iria baixar a cabeça enquanto falava, como normalmente fazia, encarando o tampo da mesa... mas houve algo no modo como os olhos negros de Encharpe pararam em mim, que me impediu terminantemente de desviar os olhos ou baixar a cabeça.

― E qual a maior estrela conhecida? ― havia algo de especial na maneira como ele dirigiu a pergunta, como se a tivesse usado apenas para saber outra resposta, e isso me fez gaguejar enquanto tentava me lembrar da próxima resposta, porque eu não me lembrava de saber alguma coisa sobre estrelas enormes, porque ainda não havíamos nos aprofundado no tema o suficiente.

Mas então por que... porque eu sabia?

― Ahn... a Epsilon Aurigo, eu acho. ― espera, de onde exatamente havia saído aquele nome esquisito?

― E em que constelação ela está localizada? ― ele levantou uma sobrancelha, como se estivesse me desafiando a saber a resposta, e eu não devia mesmo saber, mas...

― A... uriga. ― minha resposta foi imediata ― a 465 anos-luz de distância. É mil duzentos e setenta e oito vezes maior que o Sol. ― ainda completei, piscando de maneira idiota enquanto ainda tentava entender como eu havia tido acesso àquela informação. ― Ahn... é isso.

Encharpe assentiu de maneira satisfeita, e se eu não o conhecesse, poderia mesmo dizer que ele estava sorrindo.

― Perfeito, Srta. Gringer.

Ivi ainda me enviou um olhar esquisito antes de ter que responder ás outras perguntas que a maioria dos alunos não conseguia responder, e eu tentava ignorar os olhos subitamente esquisitos de Encharpe, que a toda hora pareciam varrer toda a sala, como se realmente fossem dois buracos negros famintos por matéria e tempo. O que havia de errado com a aula de Geografia de hoje? Será que o Sr. Encharpe havia caído da Roda Gigante no Dia do Desastre? Ou batido a cabeça nas portas de vidro antes de entrar na escola? Era muito fácil esquecer que existiam duas portas na entrada, por que elas eram de um vidro tão transparente, a ponto de realmente convencer que não existiam.

Eu havia aprendido isso da pior forma.

Apenas gostaria que Hanna se esquecesse lá de vez em quando.

Encharpe estava notavelmente satisfeito com Ivi, que obviamente respondeu tudo de forma categórica, enviando olhares superiores à Hanna a cada piada.

Mas quando tudo estava indo bem, um celular começou a tocar.

E Ivi não teria ficado estática se fosse uma aula de Geografia normal, mas como não era, ela me enviou um daqueles olhares que claramente resumia um desespero súbito e completamente mudo.

Isso porque nós duas só conhecíamos um celular que tocava Ones and Zeros do Steven Klarc.

                                   

              

*

― Droga, por que esse tipo de coisa só acontece comigo? Quero dizer, como é que eu vou explicar à mamãe que o Sr. Encharpe resolveu de repente confiscar meu telefone?

― De repente? ― perguntei enquanto subia na frente de Ivi na arquibancada poeirenta e decadente do ginásio ― Eu não tenho certeza que esse seu argumento vai ser lá muito convincente.

― Ah, claro, como se eu fosse contar que ele tocou na sala.

Ao perceber que eu não conseguiria achar um lugar livre da poeira e das marcas de tênis All Star, joguei minha mochila numa vaga, a usando para me sentar em cima. O treino do jogo de basquete estava quase começando, e havia chegado a hora de Ivi cobri-lo para descrever em sua coluna como os Tigres do GL estavam se saindo e quais as esperanças de troféus da temporada. Abri minha agenda surrada com a capa rabiscada com um EU ♡ EVOLUÇÃO, enquanto Ivi também jogava sua mochila na vaga ao meu lado e abria seu bloco de anotações.

― Não acho justo que ele tenha resolvido confiscar celulares... quero dizer, parece que de repente ele resolveu virar professor, mas, ainda assim, ele não poderia ter esperado para virar professor num dia em que meu celular não tocasse dentro da sala? Você vai ver, quando eu casar com Elon Musk essa humilhação vai acabar...

― Até a última vez em que verifiquei, Elon já era casado.

― Que seja... eu totalmente seria uma esposa melhor que sua atual cérebro de pudim.

Recostei as costas no cimento frio do próximo degrau, retirando a lapiseira da espiral da agenda.

― Pois é, você tem razão, sua mãe vai te matar.

Um segundo depois, os guinchos de borracha na quadra anunciaram a chegada dos Tigres, o time de basquete da escola. Ivi revirou os olhos enquanto rabiscava uma resenha de Boas Vindas no seu bloco, mas levantou sua cabeça no mesmo instante que eu ao ouvir também outros guinchos: os das animadoras de torcida.

― Que beleza! Elas vão ensaiar hoje também?

― Fala sério, Ivi. Hanna não perderia a oportunidade de ver Itham sem camisa nem que um cometa caísse em cima da cabeça dela. ― a lembrei enquanto observava Hanna e as outras animadoras entrarem também na quadra correndo.

Algo naquilo meio que lembrava a uma manada de búfalos usando lacinhos.

― Ah, certo. Acho que Itham prefere beijar uma lagosta infectada do que beijar Hanna Winchester.

― E qual é a diferença?

Ivi jogou a cabeça para trás para gargalhar.

― Me lembre de adicionar isso a minha matéria.

Itham era o irmão mais velho de Ivi, e também a estrela no time de basquete. Fora o cabelo apenas alguns tons mais claros que o dela, ele não se parecia muito com Ivi. Itham não era nenhum gênio, mas jogava bem, e seu físico também botava inveja em todos os outros caras do time. O problema era que seus ombros largos e todos seus braços musculosos apenas o deixavam meio deslocado no meio da quadra, por que Itham era tão grande, que parecia não saber direito o que fazer com tantos músculos. Nem com todas as garotas que viviam no seu pé, especialmente Hanna.

Ele apontou nas barras de proteção das arquibancadas assim que saiu do vestiário, usando a regata e o calção preto, vermelho e branco dos Tigres

― Ei, meninas. ― ele sorriu pulando as grades e se aproximando em dois passos, meio que como um Louva Deus...

― Hei, Itham. ― cumprimentei enquanto procurava pelo meu último rabisco inacabado.

― Eu não acredito que vocês deixaram essas Barbies pularem como marionetes aqui logo hoje, Itham. Era para ser o treino oficial do time, não das bonequinhas de pano ali... ― Ivi apontou a caneta para seu nariz quando ele se sentou um degrau abaixo.

Seus olhos castanho esverdeados se abriram chocados, e sua boca pequena também se entortou em um leve sorriso sarcástico.

― Como se fosse possível controlar Hanna Winchester. Ela tem vontade própria muito própria. Não é como se alguém pudesse dizer não.

Dava para entender porque Hanna era tão ridiculamente apaixonada por Itham. Ele era muito bonito, tanto que as garotas falavam aquelas coisas desavergonhadas quando ele passava por elas. Mas mais que isso, Itham era um bom amigo, um cara legal, realmente uma boa espécie de irmão mais velho. Eu já tinha perdido as contas de quantas vezes ele havia feito minha lição de casa, ou de quantas vezes ele guardou lugar para mim e Ivi na hora do intervalo ou num jogo dos Tigres, ou mesmo de quantas vezes ele deu uma má notícia à mamãe em meu lugar quando eu me sentia incapaz... tipo na vez em que eu descobri ser uma decepção em química, e a professora também descobriu, mandando uma advertência a minha mãe por escrito para comparecer na escola e tratar de assuntos acadêmicos, e eu quis jogá-la na privada e puxar a descarga. Mas Itham entregou o bilhete por mim.

Itham e Ivi vinham constantemente salvando a minha vida, e isso era suficiente para que eu lutasse com todas as minhas forças para conseguir alguém melhor que Hanna Winchester para ele. Por que ele merecia. Não porque ele usasse uma corrente no pescoço com dois espelhos intitulados IVI E EVE, AS GAROTAS DA MINHA VIDA, mas porque ele era o Itham, o irmão que nunca tive. Meu melhor amigo e irmão de Ivi, não o bichinho de estimação de alguma animadora de torcida.

― Tanto faz, só quero terminar isso e ir para casa antes que eu vomite. ― Ivi fez uma careta enquanto rabiscava algo de maneira furiosa em seu bloco.

― Podem me esperar e assim podemos ir juntos. ― Itham sugeriu enquanto amarrava os cadarços ―, vamos todos ter um dia feliz e molhado na lotação mesmo...

― E já que temos só um guarda-chuva mesmo... ― Ivi deu de ombros ― só queria fingir que não tem só água por toda a parte que a gente vá apenas por um momento, mas não tem como com esse barulho de chuva no teto, então...

― Ei, Itham! Vamos lá, cara! ― o treinador Armim Preston gritou da quadra balançando seu apito e acenando seu boné com as cores dos Tigres.

― Estou indo, Sr. Preston! ― ele gritou de volta antes de se dirigir a Ivi, ― e nem pense que dessa vez eu vou contar à mamãe que o professor Encharpe confiscou seu celular na aula de Geografia hoje... ― e saiu correndo em direção à quadra, coçando a cabeça e vermelhando terrivelmente enquanto Hanna acenava pra ele.

Ivi abriu a boca surpresa ao meu lado, parando de escrever enquanto o fulminava pelas costas. Eu tinha a forte impressão de que ela ia conseguir fazê-lo ter um derrame apenas com a força do pensamento.

― Ei! Não era pra você estar sabendo disso.

Os olhos de Ivi encontraram os meus quase que no mesmo instante enquanto nós duas chegávamos à mesma conclusão:

― Hanna!

Ivi apertou a caneta de maneira assassina enquanto fulminava Hanna com o mesmo olhar que incitava derrames mentais, só que duplicado.

― Eu juro, Eve. Vou descer lá e fazer ela engolir aquele maldito pompom! E não vai ser pela boca.

― Esqueça isso, Ivi, ela não vale a pena. ― falei observando as animadoras de torcida treinarem sua Pirâmide Das Galinhas, enquanto Hanna gritava frases absurdas como "Me deem um "I", Me deem um "T", me deem um "H", me deem um "A", me deem um "M". ― Tá, tudo bem, quem sabe eu concorde com você, mas nós somos mais espertas, lembra? Por que você só não escreve alguma coisa na sua coluna HCDF?

A HCDF era a coluna mais recente de Ivi, em homenagem a líder de torcida da nossa escola. Claro que Hanna não precisava saber que HCDF significava Hanna Cabeça de Fuinha, mas pelo menos, ela meio que se achava uma celebridade por ter uma coluna só sua no jornal da escola, e isso era o suficiente para que Ivi pudesse manter agilizado seu malvado plano malvado contra Hanna Winchester. Afinal de contas, Ivi era um gênio.

― Você acha que isso realmente a afetaria?

― É... não. Mas eu faria da mesma forma. ― dei de ombros.

Ivi se debruçou sobre seu bloco de anotações, fazendo seu cabelo cor de cenoura cair sobre seu rosto, e isso demonstrava o quanto ela estava concentrada em seu trabalho. Sorri enquanto voltava minha atenção ao meu mundo. Dentro da minha agenda. Era mais que um diário, pelo menos, era isso que eu costumava achar. Não era só um lugar onde eu contava o que acontecia, mas onde eu tentava explicar o que eu sentia. Era por isso que eu era a única pessoa com livre acesso a ela. Naquelas páginas puídas estava registrado tudo que Eveline Gringer era. Seria mortal que algum dia minha agenda chegasse a cair nas mãos de alguém como Hanna. Apenas cogitar a ideia me deixava assombrada num nível gritante.

Parei de folhear quando as páginas se abriram meio sem querer em alguns rabiscos do dia nove de setembro.

O que eu me lembro da minha quase morte: nada.

O que eu me lembro de mais alguma coisa: nada.

Era esquisito ficar patinando nisso constantemente sem sair do lugar em nenhum momento, mas eu simplesmente não conseguia digerir a coisa toda da forma correta. Meus olhos correram para meu pulso direito, onde a manga da blusa havia subido, revelando a única cicatriz que não queria se curar. Aquela cicatriz horrível em forma de... bom, se parecia com uma renda feia. Veios escurecidos estavam tomando as bordas, criando estranhas ramificações que subiam em direção ao lado interno do braço. Isso me fazia perguntar onde eu havia machucado o pulso e de que forma, se talvez eu não o havia esfolado de forma intensa em alguma superfície áspera, mas era inútil, porque eu não me lembrava.

Folhei novamente as páginas até achar uma em branco e passei a escrever.

Hoje, 21 de novembro.

"Silêncios imensos se respondem"

A frase de Raul Bopp... eu tinha uma séria coisa com poetas brasileiros e portugueses, mas não dispensava remanescentes do meu país. Aquela frase resumia exatamente tudo que eu sentia, porque haviam silêncios dentro de mim respondendo a outros. Os ruídos continuavam, mas eram impossíveis de serem compreendidos. Não havia nada para responder as perguntas silenciosas que sempre escapavam de momentos em momentos. Ás vezes eu pensava que só queria saber o que havia acontecido, mas outra coisa dentro de minha mente perguntava se era exatamente isso que eu queria, e eu voltava no começo novamente, deixando que um silêncio respondesse ou outro mais uma vez, e mais outra, e mais outra... a constante retórica era variável e fracionada. Tudo era nada, nada era tudo... um quase me separando de minha verdadeira essência.

Pensar nisso me deixou enjoada, e uma sensação esquisita de frio ao redor do umbigo me fez ajeitar melhor em cima da minha mochila.

Droga. Será que eu estava ficando doente? Eu não podia pensar em algo pior. Talvez estivesse pegando o resfriado de Ivi. Ou talvez... apenas fosse tudo idiota mesmo, por que nada fazia sentido.

Parágrafos isolados de uma existência vazia

Vivendo de coisas sombrias, uma mente tão fria

Que não consegue se lembrar...

― Você está bem, Eve?

Voltei-me para Ivi e seus olhos imensos sobre mim.

― Ahn, estou. ― sibilei― Por quê?

― Porque eu sei que você não está bem quando começa mover essa lapiseira como uma maníaca pela folha... ― ela levantou uma sobrancelha ruiva ― e por que você mente muito mal. Sabe disso, não sabe?

Suspirei de forma derrotada. Ivi seria sempre a mesma.

― Eu só... estou meio mal. Só isso.

― Você precisa de um namorado.

― Eu não preciso de um namorado. Pessoas que amam sofrem demais. ― murmurei ao pensar em mamãe, que havia perdido meu pai antes mesmo que o tivesse ganhado.

Apenas um mês juntos, e o destino resolveu separá-los de forma cruel. Meu pai havia se perdido em alguma vala funda enquanto trabalhava numa missão de Resgate em alguma parte do Óregon, em minhas subterrâneas, já que segundo mamãe, ele era um eficiente policial urbano. Mamãe o perdeu e ficou sofrendo para sempre. Como costumava acontecer nas histórias de amor mais belas. Ferida e sozinha. Qual a graça em gostar de alguém assim?

― Amar é sofrer, querida Eve. Mas isso não quer dizer que não valha a pena. ― Ivi deu de ombros ― Você só precisa estar disposta a ganhar, mesmo que seu destino seja perder. Que tal, "Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que seria nosso pelo simples medo de tentar.".

Eu quase ri, semicerrando os olhos em sua direção. Ivi não costumava citar.

― Eu nem sabia que você conhecia William Shakespeare. ― ironizei ―Mas ainda acho que vou deixar essa luta para você. Sabe, entrar em um relacionamento com certeza não está nos meus planos, e eu não faço o tipo de guerreira.

Ivi apenas deu de ombros antes de voltar ao seu trabalho.

― Você é quem perde.

Mas eu já não pensava mais nisso quando sentia a sensação esquisita de frio ao redor do umbigo novamente.

No silêncio latente, pensei sobre a verdade do amor. Gostar tanto de alguém a ponto de sentir o peito se rasgando era algo que realmente existia ou um ínterim perspicaz que o subconsciente imaginava? Pensei sobre a variação de beleza da Califórnia. Itham era um super cara bonito, com todo seu jeito de surfista, mas... nada a ver.

Pensei sobre os outros caras, mas nenhum cara que eu conhecia parecia despertar qualquer fagulha que fosse lá naquele ponto esquecido do peito.

Pensando nisso, passei a rabiscar meu conceito de Beleza Masculina na próxima página em branco, deixando que meus pensamentos vagueassem soltos pelo nada de meus pensamentos enquanto o bico da caneta trabalhava livre.

Quando terminei, um par de olhos imaginávelmente verdes me encaravam por baixo de grossas sobrancelhas escuras, lábios grossos ensaiando um riso sarcástico e revoltos fios escuros caindo sobre a testa.

Apreensão desceu por minha garganta, me incitando a fechar o diário com força.

Meu coração era um tambor violento.

E queimava.

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