|3| Q U E N T E

 PROCUREI POR RESQUÍCIOS DE ALGUMA ANOMALIA no mais profundo de meus olhos enquanto encarava meu reflexo no espelho quadrado de meu banheiro, todo envolvido em ladrilhos brancos com cristânios arroxeados.

Vamos lá, aconteça! Seja lá o que for que possa acontecer... se é que realmente está acontecendo de fato alguma coisa...

Talvez, se eu balançasse as mãos para cima e para baixo...

Oh, idiota...

Mas minha imagem pálida parecia apenas a mesma imagem pálida de sempre. Meus cabelos cor de chocolate se emaranhavam em ondas até minhas costas, as sardas que salpicavam meu rosto estavam bem pronunciadas como de costume, o que me garantia aquele ar de criança ridiculamente petulante que Havana vivia dizendo que eu tinha. Só que reparando bem agora, examinando cada pedaço do meu rosto, eu não conseguia encontrar essa garotinha enquanto sondava meu reflexo, procurando por qualquer rastro naquele rosto que me desse uma explicação razoável para o que estava acontecendo, mordendo meus lábios grandes demais enquanto deixava que meus olhos escuros percorressem minhas linhas tensas.

Mas eu me parecia normal. Pelo menos, até o ponto que sempre havia sido. Não sei por que, exatamente, eu acordara tão disposta a encontrar as respostas em meu rosto — talvez porque algo insistisse em me dizer que eu tinha as respostas que queria —, mas claramente não havia funcionado. Suspirei com força, ajeitando a toalha ao redor do corpo enquanto saía do banheiro e ia procurar por algo para vestir. Não que eu fosse o tipo de garota que passava horas na frente do roupeiro. Eu sempre acabava optando por minha calça escura de agasalho e minha camisa de malha branca, folgada o suficiente para não me fazer sentir estrangulada, como eu geralmente me sentia dentro de roupas muito... coladas. Ás vezes eu me perguntava como Hanna conseguia se enfiar dentro daqueles espartilhos suicidas apenas para mostrar uma cintura mais fina e consequentemente mais sexy. Ser sexy não tinha nada a ver comigo, e por isso eu preferia apenas me sentir confortável à bonita.

Mas depois de me arrumar vagarosamente, percebi que havia alguma coisa subitamente errada.

Estava... abafado.

Não estava exatamente quente, mas também, já não estava mais tão frio como antes...

Caminhei até a janela, afastando as cortinas rosa pálido e observando o jardim por um instante. Uma névoa fina de outono ainda se desprendia teimosamente do chão, mas o indício de um sol fraco e sem graça tentava se mostrar atrás das nuvens carregadas no céu já não tão escuro. Arqueei as sobrancelhas. Bem, já era um começo...

Arrebatei meu casaco de cima do encosto de minha cadeira, à frente da escrivaninha, o chacoalhando por um instante e me perguntando se talvez eu não precisasse de algo mais leve para vestir, mas então, um quicado leve chamou minha atenção para meus pés, onde o colar que Tia Peg me dera havia caído, provavelmente se soltando de um dos bolsos onde eu o havia guardado. O peguei entre os dedos, pensando no que fazer com aquilo... eu não podia simplesmente ficar escondendo-o nos bolsos pela vida inteira...

Indecisa, caminhei até meu espelho de corpo inteiro, que ficava preso atrás da porta fechada do quarto e joguei o casaco de lado. Tudo bem, vamos lá. Eu estava mesmo precisando de um pouco de sorte e proteção, e não importava o quão idiota isso parecesse. Pensando que simplesmente não custava nada, atei o cordão em meu pescoço, percebendo que o pingente em forma de gota dourada ficava suspenso entre a curva dos seios.

Esconderijo sarcasticamente perfeito.

Havana havia saído cedo novamente para cumprir seu turno Heart Center, e tia Peg me recebeu na cozinha com um enorme prato de omelete com queijo. A última coisa que eu queria, era ela me forçando a engolir tudo aquilo de uma vez só, de forma que disciplinadamente me sentei e comi tudo como uma boa menina. Isso antes de Ivi invadir a cozinha e comer mais uma porção de omelete e bolinho de cenoura antes de podermos nos ver livres da influência de tia Peg de nos fazer querer enfiar coisas garganta abaixo apenas para fazê-la feliz. Ivi também havia suavizado um pouco nas roupas pesadas, preferindo, assim como eu, apenas um suéter confortavelmente macio. Itham nos encontrou a caminho do ponto de ônibus, e eu ainda me sentia incomodada pelo que Ivi insinuara ontem na biblioteca.

A plena noção de suas esperanças foi... perturbadora.

Quero dizer... eu tinha noção que Itham era infinitamente bonito... mas cara, ele era Itham... e não apenas um cara bonitão por quem eu pudesse vir a sentir qualquer tipo de atração...

Na próxima vez, eu perguntaria a Ivi como seria se ela pensasse em beijar o próprio irmão, calculando que era mais o menos assim que eu me sentia em relação à Itham. Mas não disse nada, apenas aguentei a tagarelice de Ivi por todo o caminho até a escola e até chegarmos nela, de fato. Ás vezes eu me perguntava como Ivi conseguia expelir tantas palavras em uma única frase. Quero dizer, não me parecia humanamente possível... mas pelos padrões de Ivi, bem...

Pela primeira vez em semanas, quem sabe até em meses, o pátio cheio de mesas ovais do ASAGL parecia quase normal, sem tantas blusas e coisas que seres humanos usam quando estão com muito frio. Para um lugar que costumava estar sempre coberto de restos de casquinha de sorvete e latas de coca-cola gelada, ele havia se tornado meio assombrado quando os alunos passaram a simplesmente passar direto por ele para ir procurar o abrigo quente das paredes internas da Academia. Mas agora, com aquele requisício esperançoso de sol, o pátio já estava mais cheio.

Era quase como se a escola tivesse voltado ao normal novamente.

— E você, por acaso não andou tendo mais chiliques estranhos de ontem pra hoje?

— Ivi! — a repreendi, percebendo estar terrivelmente irritada com ela de repente.

Quem é que trata essas coisas como se elas fossem brincadeira? Ivi, é claro.

— Eu juro que não entendo qual o motivo dessa sua irritação repentina com coisas tão banais... — ela me mostrou a língua enquanto nos acotovelávamos entre as mesas — estou dizendo, Eveline, se eu não te conhecesse bem, poderia jurar que você está fumando maconha...

Seu tom de censura não fez maravilhas para minha irritação, até por que me irritava saber que ela podia detectar facilmente qualquer mudança minha de humor. Ivi me fazia sentir... previsível demais.

Translúcida. Ivi era tão perspicaz que enxergaria até um fantasma tentando se esconder.

— Eu não estou irritada! — chiei para ela, tendo a leve sensação que eu parecia mais idiota que o habitual.

— Ah, claro... — ela bateu em meu peito de leve, me parando a caminho da entrada — Então porque você anda surtando comigo por qualquer coisa? Você tem agido como se fosse me estrangular a qualquer instante...

— Eu não...-

— Não, — ela me interrompeu sem parar de falar enquanto gesticulava — me deixe falar, garota. Você precisa de um namorado...

Uma explosão súbita de vermelho incandescente flagelou meu rosto, brasas acesas queimando em minhas bochechas. Droga. A ASAGL inteira não precisava necessariamente saber da minha habilidade nata de não ir nada bem com garotos...

— Ivi!

— Não discorde! Me diga: qual foi a última vez que você deu uns amassos?

Ela praticamente gritou, e isso meio que instigou meus instintos assassinos.

Meus olhos se arregalaram dessa vez, e enchi os pulmões para insultar Ivi com a pior palavra que me viesse à cabeça, mas no exato momento em que abri a boca para lhe xingar, os olhos de Ivi se focalizaram em algum ponto além de minha cabeça, e sua boca se abriu de vagar.

— Oh, céus... falando em amassos...

Mas eu não cairia naquela dessa vez.

— Ivi, — comecei, pronta a defender meus valores, mas então ela virou meus ombros, me forçando a olhar para trás. — Não me venha com essa Ivileine! Eu sei exatamente que você só faz essa cara de peixe morto quando...

Ainmeudeus.

Minha boca se fechou, porque de repente, meus olhos também se focalizaram em algum ponto perto das escadarias da Academia.

  • •  •

 Ele estava encostado nas barras de proteção acima do corrimão, com as mãos enfiadas nos bolsos.

Como se o frio não fosse um grande problema, usava uma regata branca, que fazia um duro contraste com as tatuagens escuras que saíam por baixo do tecido, descendo por seu braço direito em forma de tribal negro. A forma de três garras escuras também estava tatuada dos dois lados de seu pescoço, começando na clavícula e terminando em sua mandíbula. A pele levemente bronzeada, cor de âmbar quente, cruzava sintonia perfeita com seus cabelos escuros e desgrenhados, e seus olhos... eram tão verdes, que chegavam a faiscar com um brilho terrível. Grossas sobrancelhas escuras como tisna contornando pálpebras de longos cílios enegrecidos.

Duas argolas em sua orelha lhe davam um ar pecaminoso de príncipe indiano pagão, e o modo como cruzava as pernas longas e olhava com desdém para aquilo tudo, sugeria que ele definitivamente não queria estar ali.

Honestamente. Ele era uma visão.

Ah, meu querido céu... era como se meu desenho secreto estivesse criando formas sólidas... Totalmente musculosas, linhas precisas aperfeiçoando todos os traços tortos e criando a mais atraente das auras atraentes.

— Veja bem... — Ivi ronronou, rompendo o silêncio — Não parece um pirata sexy? Um pirata muito, muito sexy...

Tá. Ele era bonito.

Ok. Ele era muito, muito bonito... mas não foi exatamente a constatação desse fato que fez com que meu queixo caísse pesado, me fazendo abrir a boca escancarada. E quem sabe também não tivesse muito a ver com a forma com que seus músculos se moldavam ao tecido hiper flexível da regata... mas seus olhos. Havia alguma coisa neles terrivelmente desagradável e... errada. Era... a mesma sensação de estar olhando para os olhos do Sr. Encharpe.

A mesma sensação de frio ao redor do umbigo.

A mesma sensação de estranheza.

A mesma sensação de estar perdida em algum momento desconhecido do tempo.

A mesma sensação de não saber.

A mesma sensação de perigo.

A mesma sensação de fique o mais longe possível.

Como que intrigado de repente, ele ergueu o queixo bem talhado e desenhado, semicerrando os olhos enquanto encurvava as sobrancelhas escuras. Um segundo depois, sem que eu tivesse notado o momento em que ele virou o rosto, seus olhos encontraram diretamente os meus em meio à multidão, e perceber que eles eram ainda mais verdes e elétricos do que eu tinha imaginado não fez maravilhas com minha apreensão.

Subi o queixo, girando sobre os calcanhares novamente e sentindo que havia perdido um espaço significante de tempo. Como se eu tivesse... tentando me libertar da influência de um buraco negro. Isso.

— Nossa... — Ivi lambeu os lábios, claramente nada afetada por aqueles olhos, a não ser pelo óbvio problema da beleza — Será que de onde ele veio tem mais?

— Não seja idiota... — de repente eu a estava puxando para o lado inverso do garoto — Aquilo não é nada para se admirar. Viu só aquelas tatuagens? Que tipo de pessoa usa o corpo tatuado e... e... argola nas orelhas... ? ― “... e esfrega tão descaradamente sua prepotente masculinidade na cara das outras pessoas desse jeito? Ser humano horroroso! Horroroso!”.

— Não seja estraga prazeres... merda, Eve, ele é um gato! Deixe me olhar mais um pouco, está bem?

— Garanto que já tem muitas pessoas olhando... — tipo, a ASAGL inteira — você não precisa se dar ao trabalho.

— Mas Eve...

— Sem ”mas” Ivi... temos uma matéria para entregar na diretoria do George’s Cometa antes que o sinal bata. Você se empenhou demais nela para perder o prazo final de entrega.

E foi assim que arrastei uma Ivi revoltada pra longe das escadarias da Academia.

  • •  •

Carteira número 13.

Era onde ele estava sentado. Atrás de mim. Malditamente atrás de mim. E eu realmente preferia que ele tivesse escolhido outro lugar. Pelo menos assim, quem sabe eu conseguisse respirar e pensar ao mesmo tempo.

Eu tinha a remota impressão de que todos os pescoços estavam virados para mim, sobretudo o de Ivi, mas não era exatamente em mim que a atenção estava sendo fixada. Engoli em seco enquanto tentava ignorar que o garoto cheio de tatuagens e com um bíceps bem definido estava sentado atrás de mim agora, provavelmente observando a traseira de meus cabelos nada comportados e se perguntando se eu os havia desembaraçado hoje.

Eu totalmente desejava ter penteado melhor os cabelos.

Talvez ele também notasse que eu não havia me mexido um milímetro desde que ele se sentara ali, todo grande e sedutor.

E o Sr. Encharpe também não havia aparecido, por isso, quem estava berrando alguma coisa sobre a Estrela do Caos e sua comparação com a Rosa dos Ventos era a diretora efetiva, que olhava para os alunos por cima dos óculos ao mesmo tempo em que lia, me fazendo perguntar mentalmente como aquilo era possível.

— A “chaos star” também é denominada de “Caosfera”. — ela dizia enquanto passeava pelas fileiras, batendo no piso seus saltos que deviam ter sido o auge da moda nos anos 60 e espiando a reação de cada aluno a cada palavra sua. A minha era estagnada, no mínimo. A diretora era corcunda demais pra não ser considerada esquisita com aquela saia estilo vintage e a camisa florida com gerânios — Com oito pontas equidistantes, que fazem parte de um ponto central, e pode também representar o vazio dos cosmos, o universo, ou ainda...  — ela fez uma pausa significante — as oito direções. Ou oito portas, se vocês assim preferirem...

Certo. Ela meio que devia ter pego uns dos livros do professor Snape, de Hogwarts, por engano. Nada esquisito, claro. Que diabos estava acontecendo com nossas aulas de geografia? Quem sabe daqui algumas semanas, começássemos a estudar a composição de bombas atômicas. Não que eu não fosse aproveitar para fazer algo sobre o traseiro de Hanna Winchester.

— Assim como a Rosa dos Ventos... — ela continuou naquele tom ridículo que julgava ser macabro — composta dos quatro elementos. Srta. Metodins, poderia me dizer quais são eles?

Ivi também havia estado de boca aberta, meio aparvalhada, mas se apressou em responder a pergunta da Sra. Misteriosa.

— Terra, água, ar e fogo.

— Ótimo, — ela assentiu prosseguindo agora na nossa fileira — e quais são os quatro estados intermediários da matéria, Srta. Gringer? — ela bateu uma unha enorme no tampo da minha carteira, seguida de seu dedo ossudo.

Não consegui impedir de engolir em seco, nem de notar a sua mania irritante de guinchar nos “erres”.

— ...seco, úmido, frio e quente...

— Ótimo, — ela repetiu continuando. — Foi criada originalmente pelo escritor britânico Michael Moorcock, com o intuito de representar o “símbolo do caos”, e foi posteriormente adotada como “Magia do Caos”...

Tudo bem. Agora sim ela estava conseguindo ser especialmente assustadora.

Talvez eu ainda preferisse Sr. Encharpe. E minha tolerância a ele costumava beirar o zero. Quero dizer... o que toda aquela baboseira tinha a ver com Geografia? Pelo menos, deixando de lado que estávamos falando de um símbolo pervertido da Rosa dos Ventos.

— A Magia do Caos, Chaos Magic ou Caoísmo, é uma forma de ritual e magia relativamente nova, utilizando-se de quebras de paradigmas e alterações do estado de consciência (hora de formas excitativas, hora de formas inibitórias). Como técnicas gnósticas, mediativas, sufis, orgásticas ou, com uso de substâncias psicoativas. Os praticantes acreditam que podem modificar a realidade através desta forma de magia... — ela ergueu os olhos — O que tem a nos dizer sobre isso, Srta. Winchester?

— Pergunte a Eve... ela sabe tudo sobre bruxaria.

Ignorei os risos ao meu redor, fechando os olhos com força e resistindo a vontade de bater com a cabeça no tampo da mesa, como normalmente teria feito em outras circunstâncias.

Droga. Tinha um maldito garoto bonito metido a galã de cinema sentado numa carteira atrás da minha. É claro que a Fuinha jamais perderia essa oportunidade.

— O que quer dizer com isso, Srta. Winchester?

— Ora, a senhora não sabe? — Hanna levou as mãos ao coração como se isso fizesse parte de uma peça teatral de segunda, combinando o gesto com sua voz fingidamente melosa e solidária. E como se o gesto não aspirasse ser dramático o suficiente, ela espichou os olhos para fora das pálpebras, meio que parecendo um peixe tendo uma convulsão esporádica.

— Do que exatamente está falando, Srta. Winchester?

— Do Desastre... — Hanna disparou, e senti meus músculos se retorcendo sobre a menção de sua crítica. Não, não... por favor, não... — No Parque de Diversões... ao que parece, Eve ficou soterrada nos escombros do túnel do terror, e diferente do que todos esperavam quando a encontraram, ela estava viva, mesmo que devesse ter partido a cabeça ou qualquer coisa mais nojenta que isso...

— Cale a boca, sua estúpida! — a voz de Ivi cortou o lamento de Hanna, antes mesmo que eu pudesse perceber que meus dedos se agarravam com força às veiradas da certeira, e que minha visão começou a nublar. Lágrimas. Quentes e poderosas. Raiva e frustração. Eu queria explodir o mundo naquele exato momento.

Mas Ivi havia percebido, transformando sua reação estupefata em uma fúria assassina.

— Meninas, acalmem-se... — a diretora interveio, não que Ivi ou Hanna fossem realmente lhe dar ouvidos.

— É melhor ser estúpida do que uma nerd CDF amiga de uma esquisitona que não morre! — Hanna cuspiu.

— Qual é o seu problema? Fala sério! Ou você cheira cocaína ou é mesmo muito perturbada! — foi a vez de Ivi cuspir — Ah, espere, ou talvez você esteja apenas sendo você mesma. E eu tenho uma palavra significativa para isso. Começa com V e rima com Vaca.

A sala caiu na gargalhada, mesmo sob os protestos da diretora, e o bate boca foi inevitável, e mesmo que eu estivesse tentando me levantar e falar alguma coisa, alguma coisa forte o suficiente que atingisse Hanna de uma maneira chocante a ponto de ela parar de tentar me ferir, eu não conseguia desfazer o bola que havia se formado em minha garganta, e também não conseguia evitar que meus olhos ardessem... tanto de raiva quanto de umidade.

Eu gostaria de ser aquela garota que não tinha medo de levantar a voz.

— Viu só? Negar é a prova óbvia! Estou falando, Sra. Trevor, Eveline Gringer está envolvida com magia! Ouvi minha mãe falando que a tia dela é uma feiticeira vodu que sacrifica galinhas no quintal todas as noites!

— Claro — Ivi zombou — Cuidado, talvez você seja a próxima escolhida da lista esta noite, eu totalmente estaria bem sobre ajudar a sacrificar você! E só para registro: eu mesma não te usaria nem pra isso. Aliás, por que você não vai arranjar um emprego no Rei do Hambúrguer, fritando em alguma frigideira ao invés de perder seu tempo aqui?

— Não negue, Ivileine! — Hanna insistiu enquanto eu tentava digerir o atentado contra a única família que eu tinha, contra a única coisa que tornava meus dias melhores. De repente, a mágoa já havia se transformado em raiva, e evaporava quente por meus poros enquanto Hanna insistia em sua teoria. — A família dessa esquisita está envolvida com magia! Como mais você explica que ela esteja viva depois de um túnel ter caído em cima dela? Como você explica...

Mas então Hanna parou de falar.

Porque de repente, depois de um leve cheiro de queimado, uma das luminárias se desprendeu do teto e se rachou em cima da cabeça dela.

  • •  •

 Molhei os pulsos na torneira do bebedouro enquanto sentia a água gelada se chocar de forma tensa com minha pele quente. Você precisa se acalmar, você precisa se acalmar, você precisa se acalmar, você precisa...

Eu não sabia como Hanna estava, mas provavelmente ainda estaria na enfermaria cuidando da cabeça. Não que ela não merecesse ter a cabeça aberta por alguma luminária pesada, ou que houvesse algum risco de uma lesão no cérebro, já que ela aparentemente não tinha um, mas uma parcela de culpa ainda me dominava. Eu não sabia como, realmente não sabia, mas algo me dizia... bem, que havia sido minha culpa.

Era idiota. Como eu poderia conseguir fazer qualquer coisa como essa? Como eu poderia fazer com que uma luminária caísse na cabeça de Hanna Winchester? Eu não fazia a mínima ideia, mas que outra explicação haveria? Haviam coisas demais acontecendo na minha vida para que eu não duvidasse que tivesse sido a culpada pelo acidente. E não que eu fosse evitar caso de repente tivesse o poder de puxar um meteoro sobre sua cabeça, também...

Depois de Hanna ter sido levada aos berros para a enfermaria, eu apenas conseguia pensar em quão estranho tudo aquilo soava.

Até mesmo Ivi havia me lançado um olhar surpreso, e não aguentando mais ficar sobre a mira dos mesmos olhos que haviam presenciado Hanna me humilhando, também corri da sala e me enfiei nos banheiros, e fiquei por lá mesmo em todas as trocas de turnos, até a hora em que o sinal para o primeiro tempo do intervalo do almoço soou.

Não que a diretora tivesse reparado no meu sumiço com todo o fuzuê da cabeça machucada de Hanna, mas ainda assim Ivi havia tentado me animar a voltar para a sala, entre um sinal e outro, mas me negando a contar a Ivi que eu achava ser a culpada pelo acidente, apenas a convencia de que eu estava bem, apenas muito envergonhada por tudo que Hanna havia dito sobre mim e minha família. É claro que Ivi me entenderia nesse aspecto, por isso, me deixou em paz até que o sinal do intervalo do almoço soasse, onde saí apenas alguns minutos com Ivi, e onde me neguei a comer qualquer coisa. Agora, na última aula, de educação física, a caminho do ginásio, eu havia dado um tempo nos bebedouros, o único lugar vazio naquele horário em que eu tinha certeza de que não seria incomodada. Eu não queria participar da aula... na verdade, não queria mesmo era ficar nem mais um segundo naquela escola.

A ideia de ligar para Havana vir me buscar já havia se passado mais de mil e quinhentas vezes pela minha cabeça, mas aí eu lembrava que minha mãe poderia estar ocupada demais abrindo corações com um bisturi, e o que exatamente eu diria a ela? Eu queria Havana longe de meus problemas bizarros. Ela já tinha coisas demais para se preocupar. Não precisava também saber que sua única filha era um fracasso total na escola. E também não precisava saber das coisas horríveis que Hanna havia dito sobre nossa família.

Suspirei enquanto fechava a torneira, secando meus pulsos e descendo as mangas do suéter novamente, um segundo antes de um toque frio esquisito e ao mesmo tempo quente percorrer minha nuca.

— Você estava lá.

Com um sobressalto, levantei a cabeça numa fração de segundos, tropeçando para trás com o susto. Havia uma sombra projetada na entrada dos bebedouros, que se moveu alguns passos, e só então reconheci as tatuagens escuras e os olhos verdes.

Maravilha.

As botas escuras de motociclista se moveram alguns poucos passos em minha direção, e havia algo de zombeteiro em seu olhar, algo que fazia meu estômago se transformar em água com gelo. Ele era, definitivamente o tipo de cara que fazia você querer olhar mais de duas vezes, querendo aproveitar bem cada uma... mas que mesmo tempo, arremetia uma certa sensação de desconforto na espinha e em todos os outros lugares ao se imaginar sozinha com ele num ambiente fechado. E era totalmente tudo ao mesmo tempo.

Então sim, eu estava tendo um sério caso de insuficiência cardíaca.

— O que quer dizer? — encontrei um fiapo de minha voz enquanto recuava alguns passos, tentando não me concentrar no modo como sua boca redonda se abria levemente para avaliar minha reação. — Onde eu estava?

— Você sabe do que eu estou falando... no Vienna, na noite do famoso desastre.

Sua voz macia era... boa... e não é como se não fosse algo esperado. Tudo nele parecia bom à enésima potência, principal motivo pela turbulência vulcânica eclodindo em meu peito naquele momento.

— Todos estavam... — dei de ombros, tentando fingir normalidade e indiferença, quando toda minha vontade me impelia a sair correndo dali — Você também sentiu a necessidade de me chamar de bruxa?

Ele mordeu os lábios enquanto me avaliava com seu olhar divertido, e percebi que ele carregava uma corrente parecida com a minha, a não ser pelo fato de o pingente ser totalmente negro, combinando com o tom de seu cabelo escuro, que apontava sensualmente em todas as direções.

— Eu não correria o risco... — ele sentenciou. — Só estou... curioso. Ouvi dizer que foi a coisa mais macabra que já aconteceu por aqui.

Dei de ombros.

— Você não estava lá? É curioso considerando que a cidade toda estava.

Ele observou minha reação com atenção enquanto semicerrava os olhos verdes, e eu notava que seus cílios eram tão cumpridos e escuros que rapidamente escondiam a nuance esverdeada das suas íris quando ele fazia aquilo, e eu torci mentalmente para que ele não tivesse notado a forma como minhas mãos tremiam. Porque eu estava tremendo. E estava nervosa. E algo me dizia que não tinha nada a ver com o modo como sua roupa, sobretudo a calça jeans escura, parecia se ajeitar e se moldar aos lugares certos de seu corpo.

— Digamos que eu estivesse... dormindo. O tipo de sono bem pesado... — ele explicou de modo zombeteiro, como se só ele soubesse o significado da piada — eu cheguei aqui depois de tudo. Estou... apenas de passagem. Achei interessante a sua a sua história, só isso.

Mesmo nervosa, não consegui impedir que um riso sem emoção saísse enroscado da minha garganta.

— A parte da minha quase-morte ter algo a ver com bruxaria, como supôs Hanna?

E me arrependi instantaneamente. Droga. Eu nem conhecia aquele cara. E oficialmente acabava de comprovar que tinha medo dele. Ao menos, medo de coisas que estavam alfinetando sensação em meus membros perante sua presença. Não podia estar batendo um papo com ele no bebedouro da escola como se estivesse tudo bem e como se ele não fizesse parte da raça masculina que perigosamente se enquadrava no Oh-meu-Deus-você-é-tão-lindo.

— Não devia se importar tanto com o que aquela garota fala... — ele desaprovou, voltando a avaliar minha reação.

— Pra você falar é fácil, não é você que teve sua vida infernizada por uma animadora de torcida convencida desde que era criança... provavelmente ninguém nunca te infernizou tanto a ponto de te enlouquecer não é?

Não era uma pergunta, mas mesmo assim ele analisou minhas palavras por um breve instante, e o olhar zombeteiro desapareceu.

— Eu não apostaria nisso.

Algo na forma como ele disse aquilo me incomodou, me fazendo encolher onde eu estava. Fora que aquelas tatuagens de garra que cortavam o seu pescoço deixariam qualquer um apreensivo.

Recuei mais um passo antes que pudesse perceber.

— Você não devia estar na aula de Educação física com os outros?  — me ocorreu perguntar. Não que eu conhecesse sua Grade, mas na falta de uma pergunta melhor...

— Eu podia perguntar a mesma coisa... — ele ergueu uma sobrancelha escura, dando de ombros com a ajuda de seu peito poderoso.

— Pode ser... mas acho que eu perguntei primeiro...

Notavelmente surpreso pelo modo rápido com o qual o abordei, ele enfiou as mãos nos bolsos da calça, parecendo estar se divertindo bastante com a situação.

— Digamos que eu apenas não goste muito de jogar basquete. Acho que não faz o meu tipo. O jogo me irrita, e não gosto de ficar irritado porque... bem, as coisas ficam meio quentes. — ele novamente parecia estar fazendo alguma piada particular, que eu claramente não entendi.

Quentes? — minhas sobrancelhas se ergueram.

— Algumas pessoas usam a expressão “O circo pode pegar fogo”...

Ok, ele estava definitivamente tirando uma com a minha cara. Agora, ele me avaliava enquanto passava o dedo indicador pelo lábio inferior, e tentei ignorar a forma como seus olhos passeavam por mim, porque isso estava apenas fazendo com que eu tremesse ainda mais dentro das estruturas. Ossos e músculos pouco instáveis. Só uma garota idiota se assustava tanto um cara, mas tudo bem. Eu era essa garota idiota.

Tremendamente idiota.

— Olha eu... eu tenho que ir... — gaguejei enquanto dava alguns passos e então visualizava a única saída que ele bloqueava, mas ele não se mecheu, tão pouco parecia disposto a fazê-lo.

— Algo me diz que você não vai para o ginásio.

— Isso eu ainda não decidi... agora, poderia me dar licença? — parei a alguns centímetros de seu braço tatuado, pedindo gentilmente para passar.

Ele virou o corpo, ficando de frente e deixando apenas uma fina passagem, meio que me desafiando a cometer a audácia com uma sobrancelha erguida, e semicerrando os olhos em puro orgulho feminino, me obriguei a passar, tentando ignorar sua proximidade intimidante enquanto saía do bebedouro.

Já no corredor e livre de sua influência perniciosa, suspirei aliviada, batendo uma pálpebra na outra enquanto tentava recuperar a postura. Qual era o meu problema afinal de contas? E daí se o cara era simplesmente um... um... um deus em pessoa? Eu não podia me deixar afetar dessa forma desgovernada. A última coisa que eu queria, era que ele tivesse consciência de seu efeito sobre mim.

Provavelmente, o que ele pensava não me importava, considerando que eu só podia pensar em ficar o mais longe que pudesse.... porque era isso que eu tinha que fazer. Havia... alguma coisa certa demais nele. E isso definitivamente significava encrenca.

Eu ainda estava pensando nisso quando corri para a sala pegar minhas coisas, e então, antes que pudesse pensar nas consequências do que estava fazendo, saí da escola.

Era idiota, eu sabia. Teria que caminhar muito até chegar em casa, mas qualquer coisa deveria ser melhor do que ficar na escola depois do que havia acontecido. Eu não podia deixar que um verme como Hanna me afetasse daquele jeito, mas eu não conseguia evitar. Hanna sempre saberia como ferir, e nunca ia haver nada que eu pudesse fazer para impedir.

A não ser sair correndo da escola.

O sol me acertou quando saí pelos portões da Academia, lamentando que a escola ficasse tão longe de casa e da cidade.

Mas mesmo assim, a fúria por tudo que havia acontecido me impeliu a caminhar, deixando a Academia para trás em poucos minutos. A estrada naquele trecho era completamente deserta até desembocar na cidade, já que a Academia ficava em um terreno próprio próximo às colinas, costeando as fronteiras mais dispersas de Westmont. Não haveria nem um ponto comercial e nem mesmo qualquer pessoa viva pelas próximas três horas para conversar. Pelo menos, foi isso que concluí que precisaria até chegar na cidade, naquele passo nada empolgado, e depois, talvez mais uma hora para chegar até em casa.

A perspectiva me fez murchar interiormente.

Não que a temperatura estivesse quente, mas a caminhada começou a me esquentar, me obrigando a tirar o suéter branco.

Droga.

Enquanto eu vencia a rua deserta, comecei a me perguntar se havia sido uma boa ideia, considerando que eu não estava com os melhores tênis para caminhada, e considerando que eu não havia pensado em quantos maníacos poderiam ter na rua àquela hora... e considerando que eu era tão totalmente perigosa quanto um bolinho de cenoura mofado.

Você só pode ser mesmo muito idiota... — eu me acusava em pensamentos enquanto ouvia o ronco de um carro se aproximar, e meu coração disparava. Droga. Diante da possibilidade de poder ser um assassino ou um pervertido qualquer no volante, a ideia de ir caminhando para casa de repente não me pareceu mais tão inteligente, percebendo que eu estava vulnerável a quem quer que fosse que me abordasse agora.

Ignore. Por todas as coisas sagradas...

Mas eu estava morrendo de medo. E esse era todo o detalhe sobre mim. Quando eu decidia ser corajosa... a coisa toda meio que virava uma merda, e eu acabava me assustando ainda mais e me colidindo com a premissa causticante do medo.

Apressei o passo, mesmo sabendo que isso seria inútil, e senti meu coração batendo nos ouvidos quando ao se aproximar, o carro diminuiu a velocidade.

Não, não olhe, não olhe, não olhe...droga, droga, droga, droga...

— Se você pelo menos tivesse dito que queria uma carona, eu poderia ter lhe oferecido uma... — a voz saiu de dentro do carro, flutuando até mim em forma de um sussurro rouco.

Levantei o rosto.

Droga.

Não era um assassino e nem um pervertido. Era muito, muito pior.

O garoto das tatuagens estava no volante de uma Land Rover escura, que me acompanhava a três quilômetros por hora. Mas eu estava chocada demais para parar de andar agora. Até porque caminhar sozinha por uma rua cheia de bares à noite me parecia muito mais seguro e genial que entrar em um carro com ele.

E eu estava definitivamente apavorada agora.

— O que você está fazendo? Sabia que pode ser expulso da academia já no seu primeiro dia por... fugir? ― “e me perseguir...”.

— Sério? E o que você está fazendo de tão diferente? — o carro continuou me acompanhando enquanto eu caminhava.

— Isso é... diferente... — rosnei enquanto acelerava o passo — Eu não podia ficar lá.

— Entre, eu a levo para casa.

Não foi um pedido. Muito menos uma pergunta.

— Ahn, não obrigada. Eu posso ir andando...

— Não seja idiota. São alguns quilômetros até a cidade. — ele meio que exagerou um pouco nesta parte — Você não pode ir caminhando.

— Bem, observe.

O garoto bufou. Realmente eu o estava irritando. E ele não gostava de ficar irritado por que as coisas ficavam quentes.

— Não seja teimosa, entre no carro. Não sou exatamente a pessoa mais indicada para te dar carona, mas não tenho muita opção.

— Eu já disse que prefiro ir andando...

E antes que eu pudesse terminar a frase, o carro guinchou ao parar pelo poder do freio de mão, e em menos de um segundo, a porta havia sido aberta, e o garoto já estava me barrando com seu próprio corpo, os olhos verdes penetrando nos meus de todas as formas e maneiras possíveis. Senti-lo em mim dessa forma enviou um choque elétrico por minhas veias, meu coração falhando uma batida.

Talvez isso tenha feito meus tornozelos vacilarem, por que travei na hora.

Perto demais... perto demais...

Sua voz era baixa, perigosa.

— Só para registro: não foi um pedido. Eveline, entre nesse carro agora mesmo.

Talvez algo em seus olhos sugerisse que ele me socaria no banco de trás caso eu não o fizesse por conta própria, de forma que engoli em seco e entreguei os pontos, caminhando para o outro lado da Land Rover. Se havia uma hora específica para realmente sentir medo, a hora era agora. E mesmo que a forma como ele dissera meu nome tenha feito minha garganta se apertar, eu ainda não tinha certeza se o queria realmente irritado comigo. Talvez vê-lo irritado e quente fosse pior, no fim das contas...

Já dentro do carro, tentei ignorar a forma como minhas mãos tremiam, e tentei achar uma forma de me acalmar, uma forma que não tivesse nada a ver com me agarrar ao banco, pelo menos... aquela coisa completamente enfadonha que, a propósito, eu estava fazendo. O garoto dirigia em silêncio ao meu lado, e apenas as nossas respirações denunciavam que haviam duas pessoas vivas dentro do carro.

A intensidade de sua presença era gritante. Em níveis claustrofóbicos.

— Você sabia meu nome. — foi a única coisa que meu brilhante senso de comunicação soltou, dentre todas as outras coisas que eu poderia falar.

Ah, palmas para Eve! A Embaixadora de Relações Exteriores!

— Por acaso eu ouvi.

Ele devia estar se referindo ao aglomero na sala de aula, onde eu havia sido subjugada aos poderes dissuasivos ludibriadores de Hanna. Certo, nada mal. Ele já sabia que eu era a aberração da academia, o que mais?

Depois de alguns segundos em silêncio, ele finalmente quebrou o gelo.

— O que aconteceu naquela noite?

Céus... de onde vinha aquela voz? Era profunda, rouca, macia, aveludada, musical, tudo ao mesmo tempo. Mas eu não pude fantasiar com seu timbre impressionante por muito tempo, por que eu tinha muita consciência de que a palavra perigo parecia berrar em todas as direções quando meus olhos esbarravam no perfil de sua imagem. Era idiota, mas era como se um alerta vermelho invisível tivesse disparado em minha mente desde o primeiro momento em que o vi parado nas escadarias da academia.

— Que noite? — minha confusão era evidente, o que não era exatamente minha culpa. Quero dizer, a garota tinha que ter uma coordenação motora muito boa para conseguir pensar, falar e respirar ao mesmo tempo enquanto ele estava por perto.

E eu definitivamente havia descoberto não ser essa garota. Ponto para mim. Mais um motivo para me manter longe, quão logo pudesse pular daquele carro sem me matar, pelo menos.

— Você sabe... a noite do Desastre.

Então a ficha caiu. Afinal de contas, ele se mostrara interessado pelo assunto desde o início, não é? Relaxei mais no banco, deixando meus pulmões descerem descansados, desfazendo minha postura rígida enquanto respirava fundo. Minha coluna agradeceu. Talvez ele realmente não quisesse me esquartejar e nem nada, mas só quisesse realmente saber sobre o acidente no Vienna. Claro. Por que mais um garoto como ele me ofereceria carona? Ou por que mais viria falar comigo logo no primeiro dia de aula?

Suas intenções talvez realmente não fossem assassinas, e talvez ele não estivesse planejando me levar para seu freezer ou... fazer qualquer outra coisa.

Pensando sobre essa última hipótese, questionei se eu realmente tentaria impedi-lo.

Seu olhar desceu em mim, quente e palpável, como se ele tivesse lido minha mente.

Seus olhos pareceram arder.

Vermelho vivo coloriu minhas bochechas.

Oh, Eve!

Virando o rosto em outra direção, me limitei a dar de ombros, palpitações excruciantes socando minha caixa toráxia de um jeito preocupante.

Eu definitivamente estava prevendo precisar de uma bomba asmática bem logo.

Ora, desculpe. Eu era apenas uma mortal.

— Bom, se você realmente quer saber o que aconteceu naquela noite, eu sou a pessoa errada a quem perguntar. Tipo, a menos indicada.

Ele arqueou as sobrancelhas escuras.

— Você não estava lá?

— Estava.

— Então basta me dizer o que viu.

Ofeguei. Certo. Eu realmente não queria entrar nesse assunto agora. Ainda mais com ele. Cara... já era difícil o suficiente falar disso com Ivi...

— Esse é o problema — resolvi desembuchar tudo de uma vez, de forma clara para não precisar repetir. — Você ouviu sobre o que aconteceu comigo. O que Hanna disse tem apenas um fundo de verdade, a parte na qual fiquei soterrada. Devo ter... batido com a cabeça em alguma coisa... eu não sei, o fato é que, quando acordei, não conseguia me lembrar de nada. Nada desde o momento em que as estruturas do parque começaram a balançar... — me dei por satisfeita ao chegar ao fim da narrativa. — Se você quer mesmo saber sobre o que houve, vai ter que perguntar a outra pessoa... considerando que a cidade toda, praticamente, estava lá...

Ele analisava o que eu tinha dito enquanto entrávamos na rodovia.

— Está me dizendo que houve um terremoto? — ele ignorou a parte em que sugestionei consultar outra pessoa, que não tivesse desmaiado e nem tivesse tido uma experiência de quase-morte.

— Bom... foi o que eu senti... eu acho... — naquelas alturas, eu não tinha mais certeza de nada — Quero dizer, como você explicaria a forma que o parque todo desmoronou?

Claro que só podia ter algo a ver com placas tectônicas, por mais que o garoto não parecesse exatamente convencido sobre isso.

— Então... simplesmente acordou sem memórias?

— Por que você está tão interessado nisso? — a pergunta rude saiu antes que eu me desse conta.

A sombra de um sorriso fraco e zombeteiro se formou no canto de seus lábios antes que pudesse realmente aparecer. E tudo foi tão sexy que chegou a doer.

— Acredite... eu não estou nem um pouco interessado. Apenas curioso. Só... — ele lutou para encontrar a palavra certa — tenho que estar...

Enquanto lhe informava que morava no lado sul da cidade, pensei em lhe perguntar algo normal, do tipo que duas pessoas normais conversariam enquanto estivessem dentro de um carro. Mas simplesmente não era um momento normal.

Mas bem... não custava nada tentar.

— Então... de onde você foi transferido? Quer dizer, onde você morava antes daqui, porque não sei se você foi transferido ou se você morava em outro lugar... quero dizer, anh... — tentei fingir normalidade, mesmo tendo consciência de que eu parecia uma idiota falante, não conseguindo enquadrar de forma correta as palavras. Era como se eu estivesse apenas jogando um monte de palavras nele e torcendo para que ele captasse o sentido do que eu estava querendo dizer.

Era angustiante não ser um gênio fora da sala de aula. Coerência verbal e estilística? Rá!

— Acho que eu só quis perguntar de onde você veio... — remendei, me sentindo a pessoa mais otária do mundo.

Mesmo assim, ele pensou um pouco antes de responder.

— De longe. Tão longe quanto você possa imaginar.

Certo. Uma grande resposta evasiva. Aquela era a primeira resposta antes da grande revelação "Eu sou um vampiro". Que bônus! Eu tinha a sensação de que nem Ivi, com seus dois metros e meio de língua conseguiria arrancar alguma coisa dele. Que ótimo.  Ele se sentia a vontade em saber de minha quase-morte, mas não me revelava nem mesmo de onde tinha vindo. Não que me importasse de fato, mesmo sendo injusto...

Não. Não me importava mesmo.

— Certo, eu não vou perguntar novamente.

— Eu me sentiria grato.

— Ótimo.

— Ótimo.

Eu o socaria se não estivesse tão relutante em chegar mais perto do que eu estava... ou seja, com a cara quase grudada nos vidros da janela da porta ao meu lado.

E ele definitivamente não me parecia um vampiro. Era bronzeado demais pra isso.

— Eron. — ele disse de repente.

Me virei atordoada para ele, piscando enquanto tentava entender o que ele havia dito.

— O quê?

— Meu nome é Eron. Para o caso de você precisar saber...

Eu ia soltar mais uma pergunta besta, do tipo “por que eu ia precisar saber do seu nome?”, quando percebi que já havíamos entrado de fato na Birch Ave. Pedi para Eron parar o carro, usando a desculpa de que não queria que minha tia me visse desembarcando do carro de um menino. Não que não fosse verdade, principalmente quando esse menino era alguém como Eron. Mas lá no fundo, acho que eu só não queria que ele soubesse exatamente onde ficava minha casa...

— Bem... — interpelei, o observando vigiar a rua dos dois lados enquanto pousava os dois braços musculosos no volante. Eu era péssima com essas coisas. Sobre tudo quando elas envolviam tantos músculos, cabelos revoltos e olhos verdes faiscantes. —, quero dizer, obrigada. Pela carona. Foi estranho, mas parece que decidi confiar em você...

— Dizem que pessoas inteligentes jamais cometem o mesmo erro duas vezes.

Eu pisquei para ele.

Não sabia se minha expressão era de medo, confusão ou surpresa. Na verdade, talvez fosse uma mescla estranha dos três.

— Hum... talvez eu não seja tão inteligente...

— Eu torceria para que fosse.

Eu queria gargalhar, chorar, gritar, berrar... fazer qualquer coisa que me tirasse daquela situação maluca, ou que pelo menos me libertasse da influência crua daqueles olhos verdes sobre mim. Podia parecer ridículo mas... eu podia jurar que por trás de todo aquele verde esmeralda parecia haver... um brilho. Parecia haver... algo queimando.

— Certo. — simplesmente concordei com um gesto de cabeça.

— Certo.

E saí da Land Rover, ainda tentando entender o que tinha acontecido.

  • •  •

  Não que eu não estivesse preocupada com o que tia Peg ia me dizer quando me visse chegando àquelas horas em casa, mas quando deslizei pelos ladrilhos coloridos que antecediam as escadas da frente, percebi que eu não estava preocupada com isso. Pelo menos, não depois de ter vivido um dos momentos mais estranhos da minha vida.

O que eu conseguia fazer enquanto caminhava para a porta de casa, era me perguntar de onde raios Eron havia saído. Tá, ele era assustador e tudo, mas, é só que parecia haver alguma outra coisa. Uma coisa óbvia demais, que eu claramente não estava conseguindo enxergar, e não importava o quanto me empenhasse.

No fim, descobri que estar preocupada com a reação de tia Peg havia sido desnecessário, porque a porta da frente estava trancada, o que significava que minha velha tia cheia de truques não estava em casa. Ainda bem que eu conhecia pelo menos alguns deles, como o hábito de esconder as chaves no vaso de plantas ao lado da porta, por exemplo. Enfiei os dedos entre as folhagens, envolvendo o aço frio e o enfiando na fechadura da porta alta de madeira entalhada com abrolhos. Aquele cheiro aconchegante de avelãs torradas me envolveu quando entrei, e eu logo soube que haveriam biscoitos deliciosos na cozinha. E não estava errada. Havia também um bilhete ao lado do prato, e deduzi que era para o caso de mamãe voltar antes dela.

Havana, fui ao mercado, caso você chegue antes de mim e precise saber. A geladeira precisava ser abastecida. Volto antes de Eveline chegar.

Peg.

Bem... ela não contava com a minha astúcia.

Claro que na mente de tia Peg, uma geladeira precisaria ser abastecida urgentemente se de repente faltasse um dos sabores de molho de tomate que ela preferia para temperar o molho da carne.

Ou talvez, tivessem apenas acabado as azeitonas. Não tinha como compreender a mente de minha tia, de forma que não seria eu a desperdiçar meu tempo tentando.

Joguei minha mochila em um canto qualquer enquanto me empoleirava em uma das banquetas e começava a devorar os biscoitos.

Eu ainda não havia tido tempo de perceber como estava cansada. Era esquisita a forma como eu vinha me cansando rápido ultimamente. Me sentia meio grogue. Era como se eu tivesse sido atropelada por um 4x4. Me arrastei para a sala, onde liguei a TV e desabei no sofá. Bom, pelo menos isso era melhor que a academia, em todos os termos e de todas as formas, numa escala de concordância de graus e números. E que se danasse o resto. Eu provavelmente já teria problemas suficientes no outro dia por escapar, caso alguém descobrisse...

A questão é que o mundo poderia esperar.

Ou explodir, tanto fazia...

Um tremor frio subiu por meus braços, me fazendo abraçar a mim mesma. A temperatura havia baixado outra vez e...

Espere aí... — pensei enquanto procurava minha mochila com os olhos. Ela estava jogada na bancada da cozinha. Mas, onde estava meu suéter?

Droga.

Puxei uma manta marrom enrolada aos pés do sofá, guardada exatamente para momentos como este, e me embolei nela, não percebendo, realmente, o que se passava na tela da TV. Acho que na verdade, eu só não queria estar mergulhada no silêncio permutativo. Uma mente vazia fantasia com coisas, ás vezes... como arrepios gelados em volta do umbigo, a sensação irreal de estar levando choque de objetos banais, e a visão otária de um céu noturno e estrelado numa noite quente a beira do mar.

Quanto a este último não tenho certeza, deve ter feito parte do sonho, por que caí no sono assim que comecei a ouvir os primeiros respingos de chuva no telhado.

Ivi surtaria. — foi a última coisa na qual pensei antes de apagar, tendo a leve sensação de que alguém me observava.

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