Capítulo 01

É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada.

William Shakespeare

              Estamos sentados na mesinha da pequena sorveteria, fizemos deste lugar o nosso canto feliz, onde esquecemos de tudo ao redor e somos somente ele e eu. Há um ano vamos lá todos os sábados e pedimos o mesmo sorvete: flocos com cobertura de caramelo. Sei que para muitas pessoas isso pode parecer tedioso, mas não para nós, é a rotina que amamos. Guilherme conversava com o rapaz que nos atendia sempre, o bom de se morar em uma cidade pequena é que não há mudanças e corre-corre de pessoas, ao contrário, todos acabam se conhecendo pelo nome.

Gostamos disso também.

              Eles falavam sobre um jogo que teria no domingo e parecia ser empolgante, já que riam e combinavam algo para depois da partida, e eu? Estava imersa em pensamentos, perdida em cada detalhe da face do Gui. Jamais cansaria de amá-lo, por mais que o tocasse ainda não parecia ser o suficiente para suprir a necessidade que sentia por ele. Não era necessidade carnal, não que nisso ele fosse ruim, de forma alguma, ele é bom, acredite em mim, ele é muito bom. Mas meu querer é coisa de alma, preciso dele como se precisa de ar para viver, como se tocá-lo revigorasse minhas forças e me desse a certeza de um novo dia, eu o amo com tudo o que há em mim.

— O que foi? — ele perguntou baixinho, me olhando com aqueles olhos verdes e o sorriso de covinha mais fofo que já conheci.

— Eu te amo. — Não sabia o que responder, eu o amo e preciso que ele saiba disso.

Me encarou em silêncio por mais alguns segundos, algo na forma como me olhava demonstrava que pesava as palavras que ouviu.

Enfim sorriu e balançou a cabeça em negativa.

— Não chega nem perto do quanto eu te amo. — Abriu o sorriso mais lindo do meu mundo, encarando-me tão profundamente que poderia mergulhar em seus lindos olhos azuis.

Estão vendo? Como não viver de amor por esse homem?

              Sei que devem estar pensando que somos um casal difícil de se ter por perto, mas juro que não imitamos criança ao falar e não ficamos nos agarrando em público por aí, juro de dedinho, é só amor mesmo.

O único amor que conheci.

              Me levantei, debruçando-me sobre a mesa, selando os lábios dele com carinho, querendo me perder completamente naquele simples gesto.

— Sabe que não vejo a hora desses quarenta e cinco dias passarem logo, né?! — falei em seus lábios, colocando em palavras o desejo do meu coração.

— Eu também, Bia. — Tocou meu rosto com carinho e o deslizar de seus dedos em minha pele trazia paz ao meu espirito. — Quando colocar aquela aliança em seu dedo, será minha para sempre.

Sorri.

Como alguém poderia sequer duvidar do quanto eu o pertencia? Não existia mais nada de mim sem o Gui.

— Já sou sua. — Outra verdade dita, não sei como ser mais dele do que já sou.

— Eu quero mais — disse sério ainda me encarando, enquanto segurava o meu queixo com carinho.

Não consegui conter o riso, não por suas palavras, pois eu o entendia. Queria tanto aquele homem, o amor que sentia era tão surreal que tê-lo como marido ainda me parecia pouco.

— É um guloso, Sr. Guilherme — ri, mordendo a ponta de seu nariz, despertando a risada dele.

Levantou o corpo e selou meus lábios em adoração. Guilherme me entregou todo o amor que me foi negado, não sabia como agradecer a vida por ter me dado o presente mais valioso do mundo.

Amor, compreensão, cuidado, carinho, parceria, proteção. Tudo o que jamais tive.

— Você que me viciou, agora precisa suprir essa minha necessidade.

              Guilherme me puxou de lado, sentando-me em seu colo. Me envolveu apertado em seus braços e seus lábios brincavam, distribuindo doces beijos em meu rosto.

Ok, não nos agarramos sempre, mas às vezes, não resistimos.

— Comportem-se! — alertou o Sr. Juarez, dono da nossa sorveteria preferida. — Há crianças aqui.

Tentava manter-se sério, mas o sorriso brincava em seus lábios. Afinal, como se manter indiferente quando o amor está ao redor?

— Desculpa — dissemos juntos e igualmente tomados de vergonha. Saí do seu colo e voltei a me sentar de frente para ele.

Nos encaramos envergonhados, mas desejosos um do outro.

— O almoço ainda está de pé? — Quis saber enquanto saboreava meu sorvete, tentando mudar o foco dos meus pensamentos, não iria fazer uma cena de abuso contra o meu futuro marido dentro da sorveteria da cidade. Ainda que querendo muito.

— Sim, minha mãe está nos esperando e se souber que estamos aqui antes de almoçar, acredite, teremos um problema sério. – Gui estava com a respiração levemente alterada, deixando claro que se esforçava para manter os mesmo pensamentos bem longe.

              Ri da situação.

Éramos como fio de energia desencapado, um simples toque era capaz de incendiar nosso corpo. Respirei profundamente, me esforçando muito para voltar ao assunto, minha sogra me mataria se soubesse que estávamos tomando sorvete antes mesmo de almoçar.

              Fátima é uma senhora vaidosa, a impressão que passava era de que ela dormia maquiada e com os cabelos escovados, pois jamais, nesses dois anos de convivência, presenciei aquela mulher desarrumada. Ao contrário, por inúmeras vezes, me sentia esculachada perto da elegância dela. Dentro de todo esse cuidado próprio, existia também o lado doce, compreensível e amável.

Fátima me acolheu de uma forma que jamais poderei colocar em palavras, carinhosa e amorosa ao extremo, por muitas vezes, me senti mais filha do que o próprio filho. Amava a forma como ela me reivindicava para si.

              Chegamos vinte minutos depois do meio dia, não me surpreendi em ver a mesa posta. Estava tudo tão lindo que era digno de uma foto para revista. Outra coisa que amava naquela senhora, ela sempre fazia o melhor, sem se importar se receberia duas ou vinte pessoas.

— Achei que não chegariam mais — disse vindo em nossa direção com os braços abertos, me envolvendo em um abraço apertado enquanto falava ao meu ouvido. — Espero que não tenha se enchido de doce mocinha.

— Jamais! — Olhei para Gui, me sentindo culpada. — Sabe que sou alucinada por sua comida, jamais atrapalharia um almoço seu.

Afastou-se do abraço o suficiente para me analisar por um momento, arqueou a sobrancelha esquerda deixando claro que iria fingir acreditar em minhas palavras. Sou uma viciada em doces e me manter longe deles era uma missão impossível.

Fátima me conhecia muito bem.

— Acho bom mesmo. — Beijou meu rosto e afastou-se, agarrando o filho que ainda me olhava tentando conter o riso. — Precisa cuidar melhor dessa menina, Gui, não queremos que ela tenha uma recaída, estou achando Bianca muito magrinha, sabe que zelar pela saúde dela é seu dever.

              Eu amo essa mulher.

Há algum tempo tenho passado por alguns momentos de mal estar, uma fadiga extrema, falta de apetite e, em alguns momentos, febre alta. Tem sido um pouco estranho, mas nada que me preocupe ao ponto de correr para o hospital da família.

— Sim, eu sei, mãe, pode ficar tranquila que estou cuidando muito bem de Bianca, e ela come o tempo todo, só não me come porque não descobriu o quanto sou gostoso.

Recebeu um tapa no ombro e um olhar severo de repreensão de sua mãe.

— Estou falando de comida de verdade, Guilherme. — Balançava a cabeça enquanto brigava com o filho e eu me controlava para não rir da cena. — Essa menina vive de doce, comida que é bom quase não a vejo comer.

Não havia como debater contra aquela afirmação, sabíamos que minha sogra tinha razão. Ele a olhou como criança que faz arte e implora pelo perdão da mãe em silêncio. Foi lindo e engraçado na mesma proporção, desmontando a carranca da mãe que acabou rindo.

              Rimos juntos, essa forma leve do Gui levar a vida me encantava.

              Estávamos sentados à mesa, almoçando e conversando. Fátima tinha em suas mãos uma agenda de couro marrom, cheia de retalhos, rendas, modelos de convites, cartões, e tudo mais o que um ser humano poderia querer para organizar um casamento. Não poderia ser mais grata, detestava me preocupar com essas coisas: preparativos, festas, casa, móveis, cor de parede, cor de convite. Não nasci para isso, a única coisa que estava sob meu controle era nossa viagem de lua de mel, sobre isso, eu queria ter total decisão. Somos amantes de novas descobertas, nisso, encaixávamos como duas peças projetadas milimetricamente. Cansamos de estar deitados conversando e a vontade de sair da cidade surgir do nada e simplesmente entrarmos no carro e irmos. Marcávamos viagens de última hora e amávamos conhecer o nosso país e suas diferentes culturas, eu particularmente amo os sotaques, todos eles me fascinam.

— Bia? — Ouvi a única voz que conseguia romper minhas barreiras e me alcançar quando me perdia em pensamentos.

              Olhei para o Gui e vi seus olhos me sondando e um riso bobo em seus lábios.

— Está tudo bem, minha filha? — Fátima me perguntou, notando que somente meu corpo estava presente, mas que minha mente voava longe.

— Desculpa — disse rindo alto —, estava pensando no quanto somos parecidos e o quanto eu amo seu filho.

— Bem... — Ela começou a dizer acompanhando o meu riso. — Então te desculpo por me deixar falando sozinha. Posso fechar então com o buffet?

Não ouvi uma palavra que minha sogra dizia, mas me recusei a confessar. Sabia que qual fosse a decisão dela, seria perfeita.

Concordei.

— Claro, Fátima, sabe que tem meu aval para toda e qualquer escolha. O que você decidir, sei que será o melhor para nós.

O sorriso nos lábios dela se ampliou e o carinho que sempre ficava nítido em seus olhos, intensificou-se ainda mais.

— Ótimo, por isso é fácil te amar, filha. — A frase carregada de amor me constrangia, jamais me acharia digna de ser amada e cuidada daquela forma.

              Levantou-se da mesa, veio ao meu encontro, beijando o alto da minha cabeça em mais um ato de carinho. Afastando-se e falando sobre o ombro.

— Deixe tudo aí que a Maria já vem para arrumar. Vou fazer algumas ligações e mais tarde conto em que pé estamos.

              Gui continuou sentado à minha frente e me olhava de forma tão intensa que a sensação que tinha era que ele conseguia ver minha alma.

              Sei que você deve estar lendo isso e pensando: “Impossível, esse tipo de amor não existe!”

              Acredite, eu também pensava assim. Mas ele me escolheu. Em meio à minha escuridão, atravessou minhas barreiras, sujou-se com a minha imundície, estendeu sua mão e me resgatou. Imagino que deve estar confuso, mas vou contar para você um pedaço do meu passado e então entenderá o que eu digo.

              Não tenho a mínima ideia de quantos irmãos tenho, nem muito menos o nome do meu pai. Cresci em um conjunto habitacional no centro da cidade de São Paulo, se é que posso chamar aquele lugar assim. Na verdade, era somente um prédio antigo que os viciados invadiram e daquele lugar fizeram morada. A pessoa que me trouxe ao mundo era uma dessas viciadas, entregava o corpo em troca de droga e em todas essas entregas ela saiu com um filho de brinde. Quase todos morriam ainda no útero, era difícil para um feto conseguir lutar contra o ataque avassalador dos químicos ingeridos, mas alguns eram fortes e lutavam bravamente para conseguir nascer, tenho certeza que se soubessem o que passariam aqui fora, desejariam morrer antes.

             

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