Capítulo 02

Tarde demais o conheci, por fim; cedo demais, sem conhecê-lo, amei-o.

William Shakespeare

— Sabe que não precisa aceitar tudo isso, né? — Estávamos deitados na rede, balançando devagar na varanda.

Minha querida sogra já havia me atropelado com todas as informações sobre os preparativos para a cerimônia, escolhemos músicas, arrumamos o mapa de mesas e tudo mais que aquela agenda poderia guardar em suas páginas.

Meu noivo me resgatou, deixando claro que precisava de mim para o merecido descanso “pós almoço”.

— Já me disse isso mil vezes — sorri para ele. — Eu amo o jeito que ela cuida de mim.

              Ouvíamos Fátima andando de um lado para outro dentro de casa, estava ao telefone com o organizador do casamento, que a essa altura, já deveria estar arrependido de ter fechado esse contrato. Ela o enlouquecia e eu morria de rir das suas exigências.

— Sabe que ela tem você como filha, né? — Ele acariciava meus cabelos e o balanço calmo da rede me faria dormir em breve.

— Sim, e ela é a única mãe que conheci. — Afinal, só soube o que era amor materno depois que Fátima passou a cuidar de mim.

Senti os braços dele apertando o meu corpo um pouco mais, fazendo com que nos encaixássemos.

— Não sei se seria possível te amar mais, Bia.

              Me virei na rede, ajeitando o corpo para olhar meu futuro marido nos olhos, tínhamos essa mania de somente nos olhar, sem nada ser dito, dividindo a intimidade conquistada, demonstrando o amor que transbordava em nosso coração.

— Maceió, então? — perguntou. Apoiei o corpo e com jeito, selei os lábios dele demoradamente me afastando em seguida, deitando a cabeça em seu peito.

— Sim, Maceió. Acho que vamos amar, pesquisei vários lugares para conhecermos e, pelas imagens, são todos dignos de porta-retratos.

— Já disse que não quero margaridas! Lírios, falei lírios! — O grito ecoou pela casa nos assustando um pouco.

              Berrava com alguém ao telefone e fiquei com muita dó de quem quer que fosse que estava do outro lado da linha.

— Ela está mesmo empenhada. — Ele riu, saindo da rede com cuidado e me puxando com ele.

— Estou notando. — Era impossível não rir da situação.

              Entramos na sala e a cena de caos era surreal. Sobre a grande mesa da sala de jantar, que antes foi usada para o nosso almoço, agora havia retalhos e papéis, muitos papéis. Fátima andava de um lado a outro, gritando ao telefone com o pessoal da decoração. Entendia a frustração dela, eu detesto margaridas. Para ser muito sincera, não gosto de flores, e se isso estivesse sob os meus cuidados, não teríamos uma única pétala no casamento. Queria mesmo era decorar tudo com doces. Muitos doces espalhados por todos os lados: pirulitos gigantes, bombons, algodão doce, jujuba. Será que um dia conseguirei fazer uma festa assim? Dedos cruzados para que isso aconteça.

— Fátima, acalme-se, vai ter um...

              Não consegui terminar a frase, a sala ao meu redor girou, minha visão escureceu e vi o chão aproximando-se rápido demais, depois não vi mais nada.

              Acordei deitada na cama do Gui, com ele me olhando como se o mundo estivesse passando por um apocalipse zumbi e Fátima em pé atrás dele, com aquele olhar que só uma mãe zelosa pode ter.

— O que aconteceu? — perguntei, tentando levantar-me, mas fui impedida pelo meu noivo.

— Você desmaiou, minha filha, caiu no chão e se não fosse o Guilherme te pegar rapidamente, poderia ter aberto a cabeça com a queda.

— Mas estou bem agora, foi somente um mal-estar. — Tentei me sentar novamente, mas senti o quarto se mover e sem que eles percebessem, me rendi às mãos dele, deitando-me novamente.

— Sim, mas fique deitada mais um pouco, Maria está subindo com um chá e biscoitos.

— Não precisa, Fátima, acabamos de almoçar, não estou mesmo com fome, foi somente um mal-estar. — Tentava acalmar Fátima, mas meus olhos estavam no Gui, que ainda me olhava com uma cautela desnecessária. — O que foi? — perguntei a ele baixinho.

— Você me assustou. — As palavras saíram sem som algum, apertando meu coração ao notar a preocupação dele.

— Desculpa, não programei o desmaio — sorri, tentando aliviar o clima, acariciando seu rosto, querendo arrancar aquela pequena ruga que se formava entre suas sobrancelhas.

— Só não faz mais isso. — Ele pediu com tanta dor que me senti o pior ser humano do mundo por ter passado mal.

— Juro que tentarei fazer o meu melhor. — Levei a mão à camisa dele e o puxei para perto, não aguentava aquela distância entre nós.

Ele se deixou levar, deitando-se ao meu lado na cama, apoiando a cabeça em meu peito, apertando-me contra ele como se eu pudesse desaparecer diante de seus olhos a qualquer momento.

— É só o que eu te peço. — As palavras não passaram de um sussurro.

              Algumas semanas, era somente isso que me separava do “sim”, poucos dias e começaríamos nossa vida juntos. Compramos um apartamento em um dos poucos prédios da cidade e com uma peculiaridade: todos os prédios eram baixos, não fechavam as copas das árvores. Isso garantia prédios de no máximo três ou quatro andares e nada mais, era exatamente isso que trazia um charme especial para aquele lugar, o sol sempre tocava o verde que enchia de vida a cidade. O nosso ficava no segundo andar, com dois quartos, ambos com suíte; uma sala ampla; cozinha com balcão estilo americano; e varanda gourmet com uma pequena churrasqueira. Demoramos quase um ano para conseguir deixar conforme queríamos, os móveis modernos e coloridos eram a nossa cara e em cada detalhe havia muito do Gui e nas coisas mais loucas, muito de mim. De uma forma estranha, éramos perfeitos um pro outro.

Já disse isso, né?

— Você vive viajando! — A voz da minha amiga me assustou. Eu tinha essa mania de sumir do mundo um pouquinho.

— Heloísa, você é irritante — sorri me virando para ela, deixando de lado os pensamentos.

— Eu sei, mas você precisa me aguentar, sou sua única amiga. — Piscou convencida me fazendo rir.

              Ela tem razão. Heloísa era a única amiga da minha vida. Conhecia muitas pessoas por causa da profissão do Gui, que era um médico conceituado, mas amiga de verdade, somente Heloísa.

              Helô é esposa do Dr. Gustavo, amigo de infância do Gui. Os conheci ainda no hospital, na noite em que ele me resgatou. Gustavo é clínico geral e tanto ele quanto Helô, fazem parte da mesma igreja que o Gui frequenta, então todos sabiam a meu respeito e ambos estavam lá quando fui levada para receber cuidados médicos. Ele mesmo se responsabilizou por fazer parte da equipe médica, mesmo não atuando naquele hospital, usou de alguns favores que lhe deviam e ficou ao meu lado junto com o Gui.

              Ela cuidou dos meus ferimentos, como uma enfermeira devotada cuida do seu paciente, lavou meus cabelos imundos, trocou minhas roupas, cortou minhas unhas e, desde aquele dia, nunca mais saiu do meu lado. Se existe um Deus nesse universo, sou infinitamente grata a Ele por ter colocado Helô em minha vida.

— Pelo amor do Pai! Volta para a terra, Bia! — Ela disse, chamando minha atenção novamente.

— Desculpa, estava pensando o quanto você é especial em minha vida — confessei, a encarando.

Ganhei um sorriso lindo e depois um revirar de olhos que me fez rir novamente.

— Eu também te amo, mas não vou usar esse roxo berinjela de jeito nenhum.

              Fui obrigada a rir alto.

              Estávamos em pé sobre uma elevação de madeira, parecendo dois manequins sendo arrumados para a vitrine. Eu com um vestido branco que deveria ser crime usar, era tão rodado, tão cheio de tule e forro, jamais conseguiria me mover dentro daquilo. Helô com um vestido cor de berinjela, rodado na mesma proporção que o meu, não caberíamos as duas dentro da igreja, tenho certeza.

— Fátima, por favor, não dá para usar isso — implorava pela décima vez.

— Vocês reclamam demais. Vai querer se casar com aqueles vestidos lambidos sem graça? — Ela perguntou nervosa.

— Sim — respondi com sinceridade. Helô já estava tirando o bolo roxo do corpo, ficando somente de lingerie.

— Ah, pelo Pai! Fátima, não dá não, nem há igreja em nossa cidade grande o suficiente para comportar esses dois vestidos juntos. E roxo? Não, né.

— Está bem! — Ela gritou, jogando as mãos para o alto rendendo-se. — Façam como quiserem, não darei mais minha opinião.

— Ah, que bom. Arranca isso amiga.

              Meu coração ficou apertado com aquela situação. Fátima não tem uma filha e eu seria a sua única realização materna, mas não teria como, aquele vestido deveria ser jogado no incinerador. Era horrível demais.

— Podemos pensar em um meio termo, Fátima, e escolhermos juntas algo bonito e com menos tule, o que acha?

— Claro, minha filha. — Ela suspirou. — Como você quiser. Vamos lá.

              A loja era a maior e mais conceituada que uma cidade pequena do interior poderia ter. Os preços não deixavam nada a desejar para a capital, ainda assim, nenhuma etiqueta parecia assustar minha futura sogra que, quanto mais zeros surgissem, mais feliz ficava.

              Guilherme me contou que o pai fora um médico famoso em nosso país, o mestre na cirurgia plástica, e grandes nomes do meio vinham até a pequena cidade onde moravam para ouvir suas palavras ou estagiarem em seu consultório, pois, mesmo com todo o dinheiro que conseguiram, nunca saíram dali. Dr. Ricardo Medeiros faleceu cedo, deixando para seu único filho e esposa uma fortuna em bens, imóveis e dinheiro vivo. Conseguia entender o porquê a vida havia sido tão generosa com meus sogros e futuro marido, eram pessoas de uma bondade que envergonhava quem estivesse ao redor. Se doavam, não somente financeiramente, doavam o tempo, carinho, dedicação, mas acima de tudo, se doavam com tamanho amor, que despertava em mim o desejo de ser alguém melhor.

              Fátima saiu do meio das araras com um lindo vestido branco nas mãos, o corpo todo trabalhado em pedrarias, descia em um formato digno das princesas. A saia abria suavemente em um tecido leve, parecia flutuar, era lindo. Corri para ela tomando o vestido de suas mãos e voltando para a pequena elevação redonda no meio da loja, cercada por grandes espelhos. Com a ajuda dela, deixei o tecido escorregar por meu corpo.

— Hum... Priscila, pegue as presilhas, por favor. — A vendedora gritou para outra atendente. Ao pegar as presilhas, puxou o tecido do corpete e prendeu. Até aquele momento não havia percebido o quanto estava magra.

— Meu Deus, minha filha, você está muito magrinha. Já disse que precisa se alimentar direito.

— Desculpa, Fátima, acho que nem notei que não estava me alimentando. — Aquilo era estranho, não me lembrava de ter parado de me alimentar ao ponto de emagrecer tanto.

— Para tudo! — Heloísa gritou saindo do meio do corredor com um vestido verde água nas mãos. — Olha isso Dona Fátima! Pelo Pai, a senhora vai ter que gostar desse.

              Ri enquanto minha amiga rebolava para que o tecido caísse em seu corpo, era mesmo lindo. O busto do vestido todo trabalhado em renda, preso a um tecido que em contato com a pele, ficava transparente, dando a impressão que a renda estava costurada ao corpo de Helô. A cintura era alta e bem trabalhada, dando origem a uma saia de tecido fino e leve, volumoso. Ficou perfeito nela!

— Pronto, acredito que enfim temos os escolhidos!

              Fátima pulava no mesmo lugar e batia palmas, como criança quando presenteada por algo que desejava demais. Meu sorriso se alargou nos lábios ao ponto de machucarem as bochechas, se isso fosse possível. Me alegrava em saber que meu casamento estava chegando e que, acima de festas e tradições, a vida colocou ao meu lado pessoas incríveis para dividirem esse momento.

              Senti minhas pernas tremerem e por um segundo acreditei ser de emoção, doce engano. Meu corpo suou ao mesmo tempo em que o frio percorreu minha espinha e, como se minha alma fosse sugada, caí de cima da elevação, desmaiando. E dessa vez sem o Guilherme para me segurar.

— Ai! — doía. Minha testa latejava e minha cabeça parecia explodir.

— Por Deus, Bia, você vai acabar me matando do coração.

              E lá estava ele, minha vida em forma de Gui, me olhando com toda a preocupação.

— O que houve? — questionei, completamente perdida.

— Você desmaiou novamente ontem, enquanto provava o vestido de noiva.

— Minha cabeça... — disse baixo, pois estava doendo demais. — Espera. Você disse “ontem”? — Tinha a sensação de ter fechado os olhos somente por alguns momentos, como assim “ontem”?

— Bateu a testa na quina de uma mesa de apoio, tomou três pontos. Ficou apagada por quase vinte e quatro horas.

— Ah, não! — falei mais alto do que planejei. — Como vou casar com a testa aberta? — Gui enfim sorriu.

— Primeiro que isso não é o problema Bia, vou te manter aqui e o Gustavo irá investigar o porquê dos desmaios e a perda de peso.

              A curiosidade e a dúvida devem ter ficado estampadas em minha face, já que ele tratou de responder minhas perguntas não ditas.

— Minha mãe falou sobre as presilhas e há tempos tenho notado seu corpo mudar, meu amor, só achei que fosse alguma dieta louca de noiva.

              Não, não era.

              

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados