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02 - Continuação

Nunca me preocupei com isso, afinal, nunca tive comida o suficiente para engordar de tanto comer. Tanto que nos primeiros meses com o Gui, engordei dez quilos, o que me deixou muito satisfeita e bem com meu próprio corpo, mas agora, após o bendito pedido das presilhas, notei que realmente estava magra demais.

              Gustavo entrou no quarto com o sorriso típico nos lábios e com Helô logo atrás dele.

— Querida, já lhe disse que não pode fazer isso. — Ele parecia implorar para a esposa lhe dar ouvidos.

— E eu ouvi, amor, só não ligo. Quero ver quem neste hospital vai me impedir de ficar com a Bia. — Ela era mesmo desafiadora. Sorri a recebendo em meus braços. — Quase me matou, Bia, não faça mais isso — disse em meu ouvido.

— Desculpa Helô, não foi minha intenção.

— Bem, agora podem ir. — Ela disse balançando a mão no ar, livrando-se de nossos meninos. Gui nem ao menos se mexeu. — Anda Guilherme, não tem nenhuma vagina para ver agora?

              Todos fomos obrigados a rir, jamais iria me acostumar com o curso escolhido por meu futuro marido. Ter um ginecologista em casa às vezes era bom. Às vezes.

— Não, Helô, e não adianta que não irei sair daqui. Se você ficará, ficaremos todos juntos então.

— Ok, amor e união, tudo o que essa mocinha precisa.

              Helô se inclinou sobre a cama e beijou o alto da minha cabeça. No momento em que seus lábios tocaram o meu couro cabeludo, senti todo meu corpo entrar em choque, como se mil fios desencapados estivessem conectados em todas as partes da pele exposta, me eletrocutando sem piedade. Arqueei sobre a cama e uma onda de movimentos sem controles tomaram conta dos meus sentidos. Ouvi os gritos de Helô ao longe e o desespero na voz de Guilherme. Queria me acalmar, parar de me chocar contra a cama e dizer a eles que estava tudo bem, mas não conseguia.

              Senti algo espesso e quente escorrer dos meus lábios, mas não sabia do que se tratava. A gritaria aumentou e não tinha consciência de mais nada, a escuridão me engoliu.

— Bia... — Ouvi uma voz familiar me chamando, mas estava muito longe, não conseguia ouvir direito. — Amor? — Tentei abrir os olhos, tentei ver de onde aquela voz tão conhecida estava vindo, mas a pouca luz fugiu da minha visão novamente.

— Chega, Gustavo, ela já está assim há dois dias, estava bem e conversando e do nada apaga após convulsionar daquela forma?

              Era meu Gui. Estava brigando por mim, mais uma vez meu príncipe encantado atravessou minhas trevas e me resgatou. Abri os olhos devagar e tentei sorrir, não sei se deu muito certo, já que olhavam para mim como se eu fosse passar mal a qualquer momento novamente.

— Amor... — Minha voz não passava de um sopro, mas foi o bastante para ele se jogar sobre a cama e me envolver em seus braços.

              O movimento foi brusco demais e num rompante meu estômago reclamou, virei o corpo de lado e o jato saiu. Vomitei tanto que acreditei que perderia alguma parte do meu corpo em meio a todo o líquido. Meu corpo se dobrava a cada nova rajada de ânsia que me tomava, fazendo as enfermeiras correrem em meu socorro e tanto meu noivo, como minha sogra e melhor amiga, encurralaram o pobre Gustavo, exigindo respostas.

— Já falei para se acalmarem! — Ele disse tentando manter o tom de voz. Em pouco tempo a agulha com o medicamento foi conectada ao acesso em meu braço e a náusea foi diminuindo. Não demorou quase nada para que tanto minha roupa quanto a roupa de cama, estivessem trocadas e limpas. — Vamos nos aprofundar nos exames e seguir o protocolo do hospital.

— Protocolo?! — Gui gritou, batendo as mãos espalmadas sobre a mesinha de refeição. — Está me falando que colocará a mulher da minha vida no protocolo?

— Claro que não. — Helô dizia olhando para o marido, pedindo em silêncio para ele não ousar dizer o contrário. — Gustavo colocará Bianca acima de tudo o que há nesse hospital, de todas as outras pessoas que ele possa achar prioridade, pois ele sabe que nesse momento, nada e nem ninguém é mais importante do que nossa amiga. Não sabe, Gustavo? — Sei que a frase soou egoísta, mas quem acusaria minha amiga de tal sentimento? Acaso você também não faria o mesmo por um ente querido?

— Claro que sei! — Ele disse para o alívio de todos no quarto, o tom de repulsa e indignação, tingindo a voz dele. — Acham mesmo que eu faria algo diferente disso? Quando disse protocolo, estava me referindo a sequência de exames que devo solicitar, de acordo com os sintomas que a Bia apresenta.

              Não consegui saber o resto daquela conversa, adormeci.

              Meus olhos estavam pesados, como se pás de areia tivessem sido jogadas sobre eles. Minha boca seca e meus lábios estavam tão ressecados, dando a sensação que não falava há dias. Minha garganta estava bloqueada com alguma coisa, levei as mãos a boca e tentei puxar aquela mangueira que me sufocava.

— Bia? — A voz aflita de Guilherme me alcançou, mãos frias tomavam meu rosto, passando para meus pulsos e me segurando contra a cama.

— Me ajuda! — Ele gritou, levando segundos para que a enfermeira e o próprio Gustavo entrassem no quarto.

— Calma, Bianca. — Gustavo dizia sobre os gritos de “ela acordou” do Guilherme. — Vou tirar o tubo, somente acalme-se.

              Foi o que fiz. Com muita dificuldade controlei meu desespero e quando ele me mandou tossir, aproveitou e puxou a mangueira da minha garganta. Caí exausta sobre a cama.

— O que houve? — perguntei sentindo a garganta arranhar e doer. Não reconheci a minha voz.

              Eles me olhavam avaliando o que poderia ser dito.

— Você convulsionou enquanto dormia e Gustavo não conseguiu te trazer de volta. — A voz embargada do meu noivo me levava a acreditar que o susto tinha sido grande.

— Mas já passou, amor, estou aqui, foi rápido, acabou. — Eu dizia tentando acalmá-lo, mas ele me olhava ainda mais confuso.

— Do que está falando, Bia? — perguntou Gustavo, me examinando.

— Passou, ué — disse, tentando sorrir.

— Bia, você ficou dez dias em coma — falou sem rodeios.

— Impossível! — Estava bem, reconhecia todo mundo, sabia onde estava, meus sentidos estavam em alerta e minha mente ativa. Tirando o gosto ruim na boca e a dor incômoda na garganta, não sentia ter ficado em coma, ainda mais por dez dias.

              Claro que ele estava brincando, era uma brincadeira boba, mas não teria como ser verdade, ainda me lembro dos dois brigando com Gustavo e o sono incontrolável que me atingiu. Como assim em coma?

— Amor... — Gui começou a dizer com cuidado, como se cada palavra mal dita, pudesse me quebrar. — Naquele dia em que Gustavo tentava nos explicar o que faria, você fechou os olhos e acreditamos que simplesmente dormia, somente quando foi verificar sua pressão e temperatura ele notou que não respondia a nenhum estímulo.

— O que está acontecendo comigo, Gui?

— Ainda não sabemos...

              Os dias seguiram devagar, com alguns casos isolados de convulsão, os quais levavam o Guilherme à loucura. Ele estava acabado, havia passado toda a sua agenda para outro médico e para qualquer lado que olhasse, lá estava ele, sorrindo, deixando claro que ele jamais sairia dali.

              O casamento foi cancelado, afinal, não poderia ir para a igreja deitada na cama do hospital. Chorei por horas quando Fátima me abraçou apertado, falando em meu ouvido que não teria problema e que Deus prepararia o casamento dos meus sonhos. Estava confiando na fé da minha família.

              Após seis semanas internada, recebi alta. Gustavo me olhava desolado. Fui picada em todo o meu corpo, fizeram todos os exames possíveis com meu sangue e cada órgão dentro de mim foi sondado. E nada.

              Para os médicos meu caso era um desafio, um mistério. Para minha sogra, era algo que somente a religião poderia explicar e a cura, somente Deus poderia dar. Eu não conseguia sentir confiança em nenhum dos dois, algo dentro de mim dizia que meu fim estava próximo, mas isso, jamais poderia dizer em alta voz.

              Fomos direto para a casa da minha sogra. Lá, segundo ela, seria muito bem cuidada e tudo o que realmente precisava era de oração, amor, cuidado e uma boa canja. Recebi tudo isso em doses constantes, mas não conseguia forças dentro de mim para sair da situação em que me encontrava. Gui pediu licença no hospital e contratou duas enfermeiras que nada faziam, pois, tirando o medicamento, ele não permitia que as coitadas chegassem perto de mim.

              Tínhamos uma rotina: ele me levava para o banho e cuidava do meu corpo e dos meus cabelos, como se cada parte minha fosse feita do mais fino cristal. Me secava e trocava. Ligava o secador e escovava meus longos cabelos, deixando-me sempre quentinha. Com cuidado, me pegava no colo e descia comigo para a varanda, onde uma mesa, posta para uma rainha, ficava. Me servia e depois servia-se, comia conversando sobre assuntos aleatórios, sobre a igreja, o hospital e as loucuras que minha sogra estava fazendo para manter todos os fornecedores do casamento em alerta.

— Tenho certeza que ao lado da palavra perfeição, está uma foto sua. — Meu coração se quebrava em mil pedaços, a vida estava sendo muito injusta, tirando a chance da nossa felicidade.

— Você deve mesmo estar muito doente, anda delirando. — Ele disse sorrindo e me olhando com tanto carinho.

— Eu amo você.

— Não sabe nada sobre amor, Bia — disse sério, me olhando fixamente. Senti um buraco de medo se abrir em meu peito.

— Do que está falando? — perguntei aflita.

— Se entendesse a profundidade do que você é para mim, saberia o quanto essa frase é rasa, pequena.

              Então sorri e uma lágrima escorreu em meu rosto. Jamais perdoaria a vida, por estar me tirando dos braços dele.

— Você é o ar que eu preciso para continuar vivendo, Bianca Oliveira.

              Gui debruçou-se sobre a mesa, tomando meu rosto entre suas mãos e me beijou com tamanha intensidade que me fez sentir a sua necessidade. Chorei ainda presa aos seus lábios.

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