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04 - Continuação

Três anos depois.

— Dr. Guilherme, a consulta das quinze horas foi cancelada, não temos mais pacientes hoje.

— Está bem, Judite, vamos para casa descansar então — disse já me levantando e pegando minha maleta. — Bom final de semana para vocês e diga ao Roberto que mandei um abraço.

Judite estava comigo há muitos anos, essa senhora era um anjo em minha vida e minha mãe que não me ouça, mas não sei o que faria da minha vida profissional sem ela.

Fechei a porta do consultório e segui andando para meu apartamento. Morava a poucas quadras dali e passaria na cafeteria da esquina antes, estava precisando de um copo grande de cafeína.

Já se passaram mais de mil dias da morte dela, mesmo assim, em alguns dias, precisava de um reforço para conseguir entrar em nosso apartamento e enfrentar tudo o que tinha o seu toque. Hoje, era um desses dias.

A cafeteria ficava ao lado da nossa sorveteria preferida e, mesmo após tantos anos, o dono ainda me olhava com compaixão e nunca mais me ofereceu o nosso sabor, afinal, meus pés nunca mais entraram naquele lugar.

Entrei e o sino que ficava sobre a porta tocou aquele som baixo e, de alguma forma, reconfortante. Ouvi-lo sempre me trazia a sensação de estar em casa.

— Um café forte e duplo por favor! — Outra voz soou junto a minha.

E quando me virei em direção ao pedido, meu mundo parou.

— Bia? — perguntei incrédulo. Minhas pernas tremeram e por alguns segundos acreditei que minha alma fosse sair do corpo.

— Quem? — A mulher perguntou, a confusão estampada em sua face. — Desculpa, mas deve estar me confundindo com alguém.

E então ela sorriu.

O sorriso não era o meu sorriso e quando reparei bem em detalhes de seu rosto, não eram as minhas sardas ou o mesmo levantar da maça do rosto. Nada ali era meu.

— Desculpa — disse constrangido —, achei que fosse outra pessoa.

Já estava me virando para ir embora, tudo o que eu queria era minha casa, meu quarto, minha cama. Deitar e me enroscar em nossas cobertas e desejar de todo o meu coração que o cheiro dela ou o restinho que sobrou, inundasse e inebriasse todo o meu ser.

— Imagina, não precisa se desculpar, tenho o rosto muito comum mesmo.

Parei.

— A culpa não é do seu rosto — disse me virando e sorrindo —, a culpa é desse meu jeito distraído.

— Hum... — Ela pareceu pensar e fez uma gracinha com a boca e nariz, ficaria estranho em outra pessoa, mas no rosto dela, pareceu certo. — Acho que podemos resolver esse impasse.

— Ah, é? — Dei um passo em sua direção.

— Um café com bolinho?

Levantei meu copo para ela, indicando que já estava com o café na mão.

— Mas aceito o bolinho. — Me rendi.

— Ótimo — disse e se virou para a atendente que nos olhava, e naquele olhar vi julgamento —, dois pedaços de bolo de laranja, por favor. — Ela fez o pedido sem nem ao menos saber o porquê a atendente nos encarava daquela forma.

— Acho que um pedaço de bolo de laranja e outro de chocolate. — A atendente disse petulante, fazendo a desconhecida em sua frente a olhar confusa.

— Como?

— Sim, Dr. Guilherme não come bolo de laranja, o preferido dele e da esposa é o de chocolate.

Um sentimento ambíguo me tomou. A princípio me senti satisfeito em saber que após três anos, Bia ainda era lembrada e querida por todos, o sentimento disputou espaço com a raiva que tentava me consumir, não era justo o que ela estava querendo fazer.

— Acho que vou experimentar o bolo de laranja hoje — disse decidido, enquanto a estranha à minha frente me olhava ainda sem entender nada.

A atendente nos serviu e o sentimento de traição estava estampado na face dela. Me senti culpado. Se a atendente não havia esquecido Bia, que direito eu tinha de dividir um café ou mesmo trocar o sabor do nosso bolo? Respirei fundo devolvendo o prato com o pedaço de bolo de laranja.

— Troca por um pedaço de chocolate, por favor. — Me rendi.

A troca foi feita com uma satisfação evidente estampada na face da atendente. Sentei de frente para a desconhecida e o peso do mundo estava sobre os meus ombros, desejei ter dez anos novamente, somente para poder sair dali correndo e chorando, sem me preocupar com as etiquetas do mundo adulto.

— Não entendi o que aconteceu ali — disse apontando para o balcão. — Não sabia que era casado. — Seus olhos sondavam minha mão, procurando por uma aliança.

— Não sou... — E o que restava do meu coração se partiu. — Perdi minha noiva há três anos. Cidade pequena, todos se conhecem, acho que foi isso. — Dei de ombros como se aquilo explicasse tudo.

— Sinto muito — disse constrangida. – Não tinha a intenção de te colocar em uma situação desconfortável.

— Não colocou. Como eu disse, Bia era muito querida e um ser humano incrível, deixou sua marca nas pessoas da cidade.

— Ah... — Ela não disse mais nada.

— Então... — Comecei a falar após alguns segundos de um silêncio constrangedor. — Você é nova por aqui.

— Sim. — Ela voltou a sorrir.

— Veio a passeio?

— Não, fui transferida.

Tentei comer o bolo, mas o nó em minha garganta impediu. Toda aquela situação em que me coloquei era estranha demais. Não era justo com minha noiva o que eu estava fazendo, sentado em nosso lugar, comendo nosso bolo com uma estranha.

— Você está bem? — perguntou, chamando minha atenção.

— Sim, sim. — Tentei parecer um ser humano inteiro e educado. — Disse que foi transferida, vai trabalhar em qual empresa?

— Ah, não. Sou ginecologista obstetra, vim trabalhar no Hospital Medeiros.

Não contive o riso. A vida estava mesmo sendo muito brincalhona.

— O que foi? — Quis saber enquanto estendia a mão para ela.

— Prazer, sou Guilherme Medeiros, ginecologista e filho do fundador do hospital.

Ela gargalhou.

Alto.

Sem vergonha.

Quando ria seus ombros se mexiam e os olhos ficavam pequenos, pareciam se fechar.

— Essa vida é mesmo estranha, não acha? — perguntou ainda rindo.

— Sim, realmente estranha. — Eu a olhei um pouco mais, dando atenção a outros detalhes. — Desculpa, preciso ir embora.

Me levantei e, sem dizer mais nada, saí. Deixando-a sozinha.

              Abri a porta do nosso apartamento e entrei correndo, tirando as roupas e sapatos pelo caminho. Me joguei na cama o mais rápido que consegui, e puxei o edredom preferido dela, e imediatamente o seu perfume me atingiu. Chorei, como há muito tempo eu não chorava. Me desculpei por ter cogitado esquecê-la.

— Dr. Gustavo Medeiros.

Parei ainda de costas no meio do corredor do hospital, lutava contra a vontade de sair correndo e entrar em qualquer quarto, somente para fugir de sua presença.

Me virei e sorri. Afinal, eu era adulto e precisava agir como um.

— Dra. Obstetra que gosta de bolo de laranja, mas que eu não sei o nome.

Ela riu alto, chamando a atenção de todos ao redor e me alcançou em alguns passos.

— Prazer, me chamo Bruna Gomes. — Apertamos as mãos e o toque suave pinicou minha pele, soltei-a imediatamente.

— Seja bem vinda, Dra. B. — disse rapidamente.

— Adorei! — O riso alto escapou novamente. — Obrigada Dr. G.

— Já conhece o hospital?

— Estava indo agora mesmo atrás do meu guia particular.

— Tenho certeza que será um passeio agradável, a equipe de boas-vindas te deixará confortável.

— Pensei que você poderia fazer esse papel. Claro, se não for muito abuso da minha parte.

Nada foi dito por alguns segundos.

Uma amiga, por que não? Afinal, já haviam se passado três anos e ter outra amiga para dar paz à Helô e Gustavo seria bom. Não seria?

— Claro — disse secamente.

Caminhamos lado a lado, conversando sobre a rotina hospitalar, plantões e a necessidade de uma única obstetra na cidade toda. Apresentei a ela toda a estrutura do hospital, que era a melhor de toda a região. Ela me contou onde morava antes de ser transferida, como era trabalhar em um pronto socorro da capital de São Paulo, as loucuras e a correria dia após dia.

— Vai acabar morrendo de tédio aqui — concluí assim que acabou de contar sobre uma noite em seu último plantão.

— Não posso morrer, ainda tenho uma pequena lista de coisas para fazer. — Ela me respondeu, séria.

— Uma lista? Como o quê, por exemplo? — Claro que despertou minha curiosidade.

Entramos na lanchonete do hospital e nem ao menos notei onde estávamos, só me dei conta quando a ouvi fazer o pedido por nós dois. Dois cafés, duplo e forte.

Nos sentamos e eu a olhava, sondando sua face. Dra. B era como um rio de águas cristalinas e agitadas, cada pensamento dela ficava claro em sua face, parecia que ela tinha uma careta para tudo.

Ela puxou um guardanapo e tirou do bolso uma caneta, escreveu por alguns segundos e quando terminou, levantou a cabeça e me olhou tão profundamente nos olhos que fiquei com vergonha daquela intensidade toda. Parecia ponderar se eu seria ou não uma pessoa de confiança para receber sua lista, acho que acreditou que sim e me passou o papel, voltando sua atenção para o café.

1. Conhecer a Grécia.

2. Estudar os Deuses Gregos.

3. Fechar um cadeado na Pont des Arts.

4. Estudar a cultura Nórdica.

5. Me apaixonar.

6. Ser resgatada.

Li com atenção a pequena lista de seis itens, analisei com cuidado cada um deles e em todos algo me chamou a atenção.

— Sabe que hoje em dia, uma viagem para a Grécia não seria algo difícil de se realizar?! — disse com cautela.

— Sim. — Ela me respondeu.

— Deuses Gregos... Isso é algo que também desperta a minha curiosidade, acho incrível a forma com que eles colocam magia em cada acontecimento. Mas particularmente não acredito em nada disso.

— Sim. — Ela sorriu, concordando.

— Hum... Pont des Arts, interessante. Então quer ter uma chave no Rio Sena?

— Sim. — Ela riu alto.

— Mas você pode fazer isso, pode matar a dois e a quatro a qualquer momento.

— Sim. — Seus olhos se estreitaram me olhando.

— Não deve ser difícil a cinco, você é uma mulher linda, bem-humorada e divertida, não vejo empecilhos para essa também.

Ela não disse nada.

Fiquei olhando para a sexta e mil perguntas atravessaram a minha mente. O silêncio tomou o espaço entre nós, nada foi dito, pois não sabia o que dizer exatamente.

— Ser resgatada? — perguntei confuso após uns segundos. — Resgatada do quê?

— De mim — disse simplesmente.

— Então, você pode ter os seis itens dessa sua lista. Não é algo impossível.

Dra. B esticou o braço e com cuidado retirou o guardanapo da minha mão, virando o papel e revelando então o outro lado.

7. Realizar todos os outros seis ao lado de alguém que me ame como jamais fui amada.

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