|04| Sinta a Essência

Na manhã seguinte, no horário marcado, eu cheguei ao endereço indicado pelo Oliver. Claro que eu pesquisei sobre o local na internet antes de ir até lá. Vai que minhas amigas estavam certas e fosse um lugar estranho onde eu seria morta? Aquelas duas encheram tanto a minha cabeça com histórias que fiquei paranoica.

Mas, ao contrário do que pensei, era um café bastante aconchegante, a decoração era encantadora. Tinha livros espalhados por todo lado, as mesas eram bonitas e redondas com cadeiras confortáveis e tinha sofás. Tinha também uma parte reservada para leitura onde várias estantes de livros enfeitavam o ambiente. Era um lugar calmo e agradável.

Assim que cheguei dei uma olhada pelo local procurando pelo escritor, mas não o vi no salão principal, então resolvi perguntar na recepção. A moça verificou meu nome, depois disse que o escritor me esperava na varanda.

— Varanda? — Questionei por não ter ideia de onde ficava.

— É só subir as escadas à direita — apontou para o lance de escada circular.

— Ah. Obrigada — agradeci ao identificar o local que ela indicou. 

Após subir alguns degraus, cheguei ao meu destino. Uma varanda bem decorada com poltronas aconchegantes, mesas quadradas em frente, vasos de plantas e uma estante com alguns livros dentro protegidos por uma porta de vidro. O teto era transparente e dava para ver o céu azul de lá e o guarda corpo era de vidro.

— Senhorita Becker — ouvi o senhor Evans me chamar.

Me virei em sua direção e o encontrei sentado em uma poltrona no canto do terraço.

— Bom dia, Sr. Evans — o cumprimentei com um sorriso assim que me aproximei.

— Sente-se! — Apontou para uma poltrona em sua frente. — Já tomou o café da manhã?

Sem cumprimentos mais uma vez. Ele não curte muito uma coisa chamada educação.

— Sim, senhor — falei um pouco envergonhada por ter comido, mas eu não sabia se deveria comer ou não, talvez ele quisesse apenas falar de negócios e beber algo.

— Que pena, vai deixar de experimentar o melhor café da manhã da cidade — disse e chamou alguém com a mão. — Vai querer alguma coisa? — Perguntou assim que um garçom apareceu.

— Um café puro está ótimo — respondi para o garçom. — Obrigada — agradeci assim que ele assentiu.

O Evans começou a fazer o pedido e eu aproveitei para observar melhor o lugar. Estávamos no primeiro andar, então dava pra ver que o trânsito estava fluindo normalmente, algumas pessoas do outro lado da calçada andando em direções diversas e outras conversando. O prédio ficava em frente a uma empresa e dava pra ver pessoas entrando e saindo dela. No geral, aquela era uma área bem tranquila.

Ainda estava olhando a movimentação quando um vento gostoso soprou e bagunçou os meus cabelos castanhos, então fechei os olhos por um minuto respirando fundo para sentir melhor a brisa suave em meu rosto, o sol estava começando a esquentar, por isso aproveitei aquele momento. 

Minha surpresa foi abrir os olhos e perceber que o Evans me olhava enquanto conversava com o garçom, as suas palavras eram direcionadas a ele, mas o olhar dele estava em mim. Porém, assim que ele percebeu que eu vi o que fazia, desviou o olhar para o rapaz ao seu lado.

— Por enquanto é só — finalizou seu pedido. — Gostou da vista? — Perguntou quando o rapaz saiu.

— Gostei, sim — afirmei. — Notei que é uma área tranquila e as coisas fluem bem — me acomodei melhor na poltrona.

— Verdade — disse, olhando em volta. — O ambiente do café em si também ajuda.

— Sim, é muito aconchegante — respondi sincera. — Eu não sabia que existia um lugar assim por aqui.

— Eu descobri há uns três anos — um pequeno sorriso apareceu em seus lábios. — Eu gosto de vir aqui desde então, é um lugar muito confortável e tranquilo — suspirou, fechou os olhos e os abriu antes de falar novamente. — Sem falar que a comida é deliciosa e o café é um dos melhores, você vai ver.

Era admirável a forma como ele falava deste lugar. O pequeno sorriso, o suspiro e o tom empolgado mostravam o quanto ele gostava daqui, além de desarmar um pouco a pose intimidadora que ele sempre tinha. Agora ele parecia apenas alguém falando do seu lugar favorito e não alguém intimidante. 

— É mesmo um bom lugar — eu estava mais admirando ele que o lugar agora para ser sincera.

Ele estava menos azedo. Ao menos estávamos conseguindo manter um bom diálogo sem que ele me desse calafrios e me fizesse choramingar internamente igual uma menina desamparada.

— Eu te chamei aqui por um motivo, Becker — ele disse ao me encarar.

E foi aí que eu percebi que não tinha reparado em como os olhos dele são bonitos. Talvez tenha sido o nervosismo quando o vi ontem ou o óculos que ele usava que atrapalhou, mas agora ele está sem e quando o raio fraco do sol acertou seu rosto, eu vi seus olhos castanhos ficarem ainda mais claros. Em reflexo ele semicerrou os olhos que começaram a lacrimejar um pouco, porém ele continuou me encarando mesmo assim, o que deu ao seu olhar um toque de intensidade e beleza. 

Confesso que me perdi por uns segundos em seu olhar e fui incapaz de parar de admirá-lo, mas quando me dei conta do que fazia fiquei um tanto desconcertada e parei de encará-lo no mesmo instante.

— Qual? — Tentei raciocinar diante do pequeno silêncio que se instalou e essa foi a única coisa que consegui dizer.

— Ontem, em nossa reunião, você disse que iria atender a todos os meus objetivos — ele começou. — Para que isso aconteça você precisa sentir a essência do meu livro e tem que entender o que quero transmitir aos meus leitores — fechou os olhos e recostou um pouco mais na poltrona livrando seu rosto do raio do sol. — Então, resolvi te trazer onde eu tive a ideia de escrevê-lo — ele, enfim abriu os olhos normalmente.

— Nossa! — Exclamei ao perceber que esse lugar era realmente importante para ele. — Eu percebi que esse lugar é muito especial, mas não sabia que era tanto.

— É — concordou. — A ideia surgiu quando eu estava nessa mesma poltrona, fazendo o que você fez minutos atrás — eu franzi o cenho. Ele percebendo minha cara confusa completou. — Observando o movimento da rua.

— Ah! — Lembrei de quando ele me olhava minutos atrás, ele estava observando o que eu fazia. — O que mais preciso fazer para sentir a essência e entender a sua mensagem? — Perguntei realmente curiosa. 

Involuntariamente fiz algo que chamou a atenção dele, então eu queria fazer a coisa certa novamente para que ele confiasse que eu, ou melhor, que nós da editora, podíamos realizar o seu objetivo.

— Eu espero que você descubra sem que eu tenha que explicar — disse e na mesma hora o garçom apareceu com os nossos pedidos.

Eu nem prestei muita atenção no que acontecia no momento, minha cabeça estava girando em torno da última frase dita por Oliver Evans.

Como eu iria descobrir isso sem a ajuda dele? Eu sequer li o manuscrito, nem sei sobre o que o livro dele fala. Eu sabia que ele me pediria algo fora do normal.

Ele quer que eu sinta, que eu entenda e que eu descubra sozinha a essência do livro dele, então preciso observar melhor tudo que acontece, preciso entender ele para entender o que ele quer. Isso está ficando mais complexo do que imaginei.

Talvez ele seja mesmo rude como as pessoas o pintam.

— Becker — no meio do meu devaneio ele me chamou.

— Sim? — Percebi que estava encarando o nada por tempo demais.

— Seu café vai esfriar — olhou em direção a xícara em minha frente que nem percebi ser deixada ali pelo garçom.

— Eu me distraí um pouco — falei nervosa já pegando a xícara e sentindo a temperatura antes de levá-la à boca.

— Percebi — deu de ombros e começou a comer.

Ficamos alguns minutos em silêncio enquanto ele comia e eu observava a movimentação das pessoas tentando entender o que ele queria que eu compreendesse com tudo aquilo. Ele me levou ao lugar onde tudo começou por um motivo, talvez houvesse algo ali que me fizesse captar a mensagem que ele quer passar. Algo ali deveria ter a essência do seu livro.

Olhei ao redor procurando por alguma coisa que tivesse a ver com ele, mas aquele lugar era um encanto, coisa que Oliver Evans não é.

Nesse meio tempo meu olhar foi até uma empresa, vi que a movimentação estava mais reduzida agora, mas teve algo que me chamou bastante a atenção. Um senhor de idade com vestimentas simples e humildes vinha caminhando ao lado de um jovem bem vestido, o total oposto dele. Eles pararam assim que chegaram em frente a empresa, então o senhor abraçou o rapaz, em seguida o rapaz beijou as duas mãos dele, quando o moço soltou a sua mão ele tocou de leve em seu cabelo e abriu um sorriso grande depois de lhe dizer algo. Logo após ele seguiu adiante e o rapaz entrou na empresa.

Aquilo me chamou a atenção porque lembrei do meu pai. Ele sempre foi carinhoso comigo, sempre me incentivou e no meu primeiro dia de trabalho foi comigo, me abraçou e abençoou antes de eu entrar na editora. Ele diz que só não continua fazendo isso porque precisa trabalhar e a editora fica longe da sua casa. Por isso, foi muito bom ver que existem mais pais assim por aí, porque eu sei como foi importante ter o apoio do meu pai e tê-lo comigo no primeiro dia já que eu estava tensa e nervosa, sua companhia me ajudou e acalmou bastante.

— Eles são pai e filho — a voz do Evans mais uma vez me tirou dos meus pensamentos.

— Perdão? — Falei, ainda confusa se ele se referia aos dois que eu observava.

— Aqueles dois — apontou com a cabeça para a empresa. — São pai e filho. Todos os dias eles vêm juntos, se despedem em frente a empresa, o rapaz entra e ele segue caminho até seu trabalho naquele restaurante que fica mais a frente.

— Como sabe disso? — Questionei curiosa. Tanto pelo fato dele saber aquilo, quanto por ter percebido que eu olhava os dois homens.

— Eu vinha aqui quase todos os dias, hoje venho com menos frequência, mas sempre que venho isso acontece, então um dia eu criei coragem e fui falar com eles, foi aí que me contaram tudo — ele respirou fundo e soltou todo o ar. — O senhor Collins sempre trabalhou duro para bancar os estudos do filho, então quando ele começou a trabalhar naquela empresa, ele ficou feliz por ser caminho para seu trabalho e os dois poderem ir trabalhar juntos. Mas ele confessou que ficou ainda mais feliz porque além de tudo isso, o filho trabalha com o que gosta e que vê-lo feliz não tem preço — ele abaixou a cabeça e respirou fundo novamente.

— É muito bom ouvir histórias assim — comentei com um sorriso nos lábios.

— Pois é — confessou. Vi um pouco de tristeza em seu tom de voz. — Pena que nem todos os pais são assim.

— Verdade — concordei porque já ouvi muitos relatos de pessoas que sofrem porque não tem apoio em casa. — Infelizmente algumas pessoas não conseguem enxergar que um filho não é um boneco ou um robô que eles podem manusear e programar para ser como querem. Não entendem que filhos são seres humanos e, como tal, tomam decisões e fazem as próprias escolhas e muitas vezes elas não vão estar de acordo com o que os pais querem e desejam — eu suspirei frustrada. — Eu realmente queria fazer esse tipo de pessoa entender que independente de tudo, filho é filho e precisa de amor. Às vezes a falta de apoio dói mais que uma surra.

Quando eu terminei de falar que olhei para o Evans vi que ele estava com os olhos lacrimejando, parecia que se segurava para não chorar de vez. Foi estranho vê-lo daquela forma, logo ele que sempre se mostrou tão superior. 

Ele estava com os olhos fixos em mim, mas quando percebeu que eu o observava de volta, desviou o olhar e pegou um copo de água para beber.

— Está tudo bem? — Perguntei preocupada.

— Sim — falou baixo. — Eu sou sensível ao sol — completou e lembrei como ele ficou minutos atrás.

Logo entendi que aquilo era apenas por causa do sol e não porque ele estava triste. Isso faz mais sentido.

— É só a sua essência — falei no impulso ao lembrar do que minha mãe sempre me dizia.

— Como? — Perguntou, claramente confuso.

— Não é nada, é só uma coisa que minha mãe dizia quando eu era pequena — tentei dar pouca importância para não ter que falar sobre aquilo com ele.

Ele ficou me encarando com seriedade e eu não entendi muito bem o que ele queria, por isso franzi levemente o cenho em sua direção.

— Não vai me dizer do que se trata? — Perguntou, mas seu tom foi mais como uma intimação. 

— Ah, sim — limpei a garganta. — Quando eu era mais nova sempre reclamava quando saía no sol porque meus olhos lacrimejavam muito e ardiam, então minha mãe me disse que isso acontecia porque eu tenho uma essência pura, leve e terna e isso é refletido em meus olhos. Quando o raio do sol batia neles, eu chorava por isso, por ser sensível demais — eu comecei um pouco envergonhada por contar isso a ele. — Mas que eu não deveria baixar a cabeça e me proteger usando óculos, assim os raios não iriam me incomodar e minha essência iria permanecer pura. 

Eu falei um pouco sem jeito por compartilhar algo assim com ele, mas ele parecia muito interessado no que eu falava.

— Quando a questionei sobre ninguém ver meus olhos já que as lentes escurecem no sol, ela disse que só outras pessoas com a essência pura os veriam — eu ri soprado me lembrando da voz terna que ela sempre usava para falar comigo. — É só uma coisa boba que ela dizia para alegrar uma criança — conclui ainda sem graça.

— Sua mãe parece ser uma mulher incrível — disse sincero e vi que seus olhos lacrimejavam ainda mais.

— Ela é sim — confirmei. — O senhor não acha melhor colocar o óculos?

— Sim, eu... — Ele pegou sua bolsa que estava ao seu lado e tirou um estojo de lá, logo após o abriu e retirou o óculos de grau, em seguida o colocou no rosto. — Bem melhor — exclamou por fim.

— Não sei como consegue ficar sem eles por tanto tempo. Assim que acordo e lavo o rosto já os coloco — falei em um tom leve.

— Eu deveria fazer isso também — sorriu sem mostrar os dentes.

— É — sorri de volta.

Ele ficou algum tempo apenas me olhando profundamente até suas lentes escurecerem e eu não conseguir mais ver seus olhos. Porém, eu sei que ele ainda me olhava, seu rosto não se moveu um centímetro sequer. 

— Tem algum outro compromisso agora? — Perguntou de repente. 

— Eu teria que ir trabalhar, mas meu chefe me liberou caso precisasse, então... — Deixei a conclusão no ar. 

Eu não sei o que exatamente ele queria com aquela pergunta, mas pareceu que iria me propor algo. Talvez estender a reunião um pouco mais ou continuá-la em outro lugar, não sei ao certo. Mas eu ficaria mais se ele pedisse, incrivelmente eu estava gostando de conversar com ele.

— Você deve ter muito trabalho, claro — disse um pouco agoniado e abaixou a cabeça como se fosse apenas para desviar a atenção de mim. — Eu preciso ir agora, Becker, tenho uma reunião em meia hora —  ele pegou sua bolsa rapidamente e ficou de pé.

Ele estava estranho.

— Claro, eu entendo — fiquei de pé e ajeitei minha bolsa no ombro. — Foi um prazer conversar com o senhor.

— Pense no que eu te disse — respondeu sério. — Entrarei em contato para marcar nossa próxima reunião — arrumou os óculos no rosto e começou a andar. — Com licença.

Ele saiu e me deixou confusa. Tanto por sua atitude repentina quanto por sua pergunta. Não acredito que ele tenha perguntado se eu teria algo para fazer apenas por curiosidade, mas também não consigo entender qual o motivo daquela pergunta, já que ele disse que teria uma reunião logo mais e dessa forma não poderíamos estender a nossa.

É, Oliver Evans é um verdadeiro mistério para mim. Espero conseguir entendê-lo e principalmente sentir a essência do seu livro.

O que você quer que eu sinta, escritor?

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