Isaías estava de pé, com o rosto fechado, e as palavras saíam dele como facas afiadas, cortando qualquer vestígio de esperança que eu ainda pudesse ter.
— Não vou fazer isso, senhorita Leclerc. Não tenho o menor interesse em cuidar da minha sobrinha. Faça o que for melhor para ela, porque claramente, eu não sou esse "melhor". É mais justo para Alice ter uma família que realmente a queira, que a ame, do que ser jogada aos cuidados de um tio que nem sequer a conhece. Eu podia sentir minha respiração ficar mais pesada, as palavras dele me atingindo como um golpe. Como alguém podia ser tão cruel? Tão... vazio? — Você está falando como se ela fosse um fardo! — gritei, a voz transbordando de indignação. — Ela é só uma criança, Doutor Castellar! Sua sobrinha! Sangue do seu sangue! Como pode dizer isso com tanta frieza? Ele cruzou os braços, o olhar inabalável. — Você não entende, senhorita Leclerc. Cuidar de uma criança não é simplesmente dar comida e teto. Requer tempo, dedicação, paciência... coisas que eu não tenho. E, sinceramente, prefiro que ela seja colocada em uma família que possa dar isso a ela, do que viver comigo, uma pessoa que não pode lidar com uma criança nesse momento. — Não é questão de poder! — eu explodi, sentindo meu corpo inteiro vibrar de raiva. — É questão de querer! Você está tentando se livrar de qualquer laço emocional, Doutor Castellar. Tudo para não sair da sua zona de conforto! Denis confiou em você, ele acreditava que poderia haver algo de bom aí dentro, mas você está provando exatamente o contrário. Ele ergueu as mãos em rendição, com um sorriso sarcástico. — Que seja. Se Denis realmente me conhecia, sabia que eu nunca iria querer isso. E é por isso que estou sendo honesto agora. Não vou me forçar a fazer algo que não posso sustentar. Alice merece mais do que isso. Ela merece alguém que a ame de verdade, e não alguém que a veja como uma obrigação. Essas palavras me quebraram. Eu tremia de raiva, de frustração. Como ele podia falar sobre amor quando estava simplesmente desistindo? Abandonando a menina que, em algum lugar, devia estar esperando que a família dela viesse buscá-la? — Você é inacreditável... — murmurei, a voz falhando. — Como pode se ouvir e não sentir vergonha? Alice já perdeu os pais, e agora você quer que ela perca a única família que ainda tem? Como pode ser tão egoísta? Ele se virou para mim, os olhos faiscando com algo entre a raiva e a indiferença. — Eu não sou egoísta, senhorita Leclerc. Sou realista. Não vou mentir para mim mesmo nem para ninguém. Não tenho o que é necessário para cuidar dela. E não vou me desculpar por isso. Talvez em seu mundo de “Alice, no país das maravilhas”, as coisas sejam rosas e doces. Mas aqui, na vida real, não é bem assim que acontece. Eu estava à beira de perder o controle. Tudo dentro de mim gritava, e eu queria, mais do que nunca, que ele visse o erro monstruoso que estava cometendo. Ele continuava firme, com sua máscara de frieza intocada. Com seus argumentos toscos e sem noção. Eu não poderia deixar essa pequena ser jogada no meio de estranhos, por mais difícil que fosse, eu não iria deixar isso acontecer. Por mais absurda que fosse a escolha que Denis e Ana fizeram, uma coisa era minha história com eles, outra bem diferente era Alice, uma menininha que muito possivelmente estava apavorada, sozinha e sem nenhuma expectativa de futuro, de como seria seis dias. Eu não iria deixar com que um erro dos pais recaísse na pequena Alice. Não sou tão boa assim, mas também não serei cruel com alguém que nem fazia parte da história, quando tudo aconteceu. Se Isaías tem seus motivos para não aceitar sua própria sobrinha, eu tenho os meus, para tentar ao menos ser alguém que se importa com ela. — Pois eu vou assumir a responsabilidade — declarei, com a voz trêmula de emoção. — Eu não vou deixá-la sozinha, não vou abandoná-la como você está fazendo. Não sei como vai ser, não sei se estou pronta, não sei se irei conseguir. Mas eu prefiro enfrentar o desconhecido do que deixar Alice cair no sistema de adoção. Mesmo não entendendo porquê Denis e Ana fizeram essa escolha, ainda assim, eu não vou deixar Alice sozinha. Isaías me olhou com uma expressão de quem finalmente havia encontrado uma solução. — Então faça isso, senhorita Leclerc. Se é isso que você quer, que assim seja. Mas eu não vou me envolver. A adoção seria o melhor para Alice, e no fundo, você sabe disso. Aquelas últimas palavras me atingiram como um soco no estômago. Isaías não iria mudar. Ele não iria se comover, não importava o quanto eu gritasse, chorasse, ou tentasse fazê-lo enxergar. — Eu vou fazer o que Denis pediu, Doutor Castellar. Vou cuidar de Alice, mesmo que eu tenha que fazer isso sozinha. E um dia, você vai perceber o que de fato deixou passar. Isaías apenas deu de ombros, se afastando como se a decisão já estivesse sido tomada. Ele não ia mudar. Fiquei ali, de pé, o coração partido, a raiva queimando em minhas veias. Eu não sabia o que viria depois, não tinha ideia de como seria cuidar de Alice. Mas de uma coisa eu tinha certeza: eu não iria deixá-la sozinha. Assinamos os documentos, Isaías abriu mão da guarda e passei a ser a única responsável por Alice. Diante disso, era só passar no abrigo onde ela estava e levá-la para minha casa. Meu Deus! Ela não me conhece e eu… eu também não a conheço… que Deus e os anjos nos ajudem… Será que Alice aceitará a mudança tão repentina em sua vida, ou ela se recusará a aceitar quem eu sou?Cheguei em casa exausta, tanto física quanto emocionalmente. Minha cabeça ainda latejava, as palavras de Isaías ecoando como um peso que não conseguia tirar dos ombros. E agora? Como eu ia fazer isso? Minha casa não era exatamente um lar acolhedor para uma criança. Na verdade, era um caos organizado para uma adulta solteira, cheia de livros espalhados, caixas empilhadas e um escritório abarrotado de papeis. Mas era o que eu tinha, pelo menos por agora. Respirei fundo e comecei a caminhar pela casa, tentando visualizar o que precisava ser feito. O primeiro passo era transformar aquele escritório em algo que ao menos lembrasse um quarto. Me senti ridícula por não ter nada pronto, mas, como eu poderia estar preparada para algo assim? Desmontei algumas estantes, empurrei a mesa de trabalho para um canto e vasculhei a lavanderia até encontrar uma cama de montar que eu havia guardado há tempos, sem nunca imaginar que precisaria usá-la. Cada movimento parecia um
Alice não respondeu, apenas o encarou com aquela expressão vazia que vinha mantendo desde o momento em que cruzou a porta. Seu pequeno corpo tremia, seus dedos agarrados à perna do Dr. Moon com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. Eu observei a cena em silêncio, tentando esconder a angústia que crescia dentro de mim. Como eu poderia oferecer consolo a uma criança que mal sabia o que era confiar em mim? Como eu, uma estranha para ela, poderia ser a pessoa a preencher esse vazio? Não havia palavras que pudessem curar uma dor tão grande. Dr. Moon deu um leve sorriso a Alice e depois olhou para mim, como se dissesse "agora é com você". Senti minhas mãos suarem de nervosismo, e dei um passo à frente, meu coração batendo forte no peito. — Oi, Alice — murmurei mais uma vez, minha voz um tanto trêmula. Eu estava nervosa, mas tentei manter a calma por ela. — Eu sei que você está com medo agora... e tudo parece muito confuso. Mas eu estou aqui, e prometo q
Os primeiros dias foram difíceis. Aquilo que parecia que ia fluir, não fluiu, na verdade empacou. Por mais que eu tivesse esperança de que iríamos conseguir, tudo estava na verdade um caos. Alice não ia com a minha cara. Ela mal falava comigo, ficava a maior parte do tempo quieta, agarrada ao ursinho de pelúcia que trouxe consigo. Eu tentava de tudo – oferecia comida, tentava brincar, lia histórias – mas ela parecia uma muralha impenetrável. E meu coração se quebrava um pouco mais a cada tentativa falhada. Acabei pedindo alguns dias na empresa devido a chegada da Alice. Eu precisava organizar nossa vida agora, precisava que ela se adaptasse, precisava colocar ela na escola, precisava ganhar tempo com ela. Precisava me achar nessa novidade toda. Mesmo tudo parecendo não funcionar, eu sabia que não podia desistir. Ela tinha só quatro anos, e estava enfrentando tantas mudanças ao mesmo tempo. Como uma criança tão pequena podia processar a perda dos pais, a
Acordei naquela manhã com um aperto no peito que mal conseguia disfarçar. O primeiro dia de aula de Alice finalmente havia chegado, e eu sabia que não seria fácil, mas não esperava que tudo fosse desmoronar tão rapidamente. Consegui a vaga na escola perto do meu trabalho com a ajuda do senhor Moon, que, como sempre, havia resolvido tudo de forma impecável. Ele fez questão de me tranquilizar, garantindo que Alice seria matriculada e até enviou o uniforme, o material, e a mochila de princesa. Eu já tinha preparado tudo, mas acho que o senhor Moon só quis me ajudar um pouco mais. Eu deveria me sentir aliviada, mas não conseguia afastar o medo do que estava por vir. Acordei com aquela sensação sufocante de que algo daria errado. E deu. Logo cedo, na cozinha, derramei o leite, queimei as torradas, e o café esfriou sem que eu sequer tocasse na xícara. Alice, por sua vez, estava em um estado de recusa total, presa ao seu mundo silencioso, e eu não sabia mais como alcan
Não foi nada fácil levar Alice para a escola naquela manhã. Desde o momento em que a vi abraçada ao ursinho, silenciosa e distante, soube que o dia seria uma batalha. Algo no seu silêncio me apavorava. Alice estava se fechando, se isolando, e por mais que eu quisesse encontrar uma maneira de alcançá-la, eu não sabia o que fazer. Precisava de ajuda, mas naquele momento, minha prioridade era levá-la ao colégio. Talvez, só talvez, as coisas melhorassem lá. Respirei fundo, tentando manter a calma, mas a sensação de impotência me esmagava. Enxuguei uma lágrima antes de me levantar. — Seja forte — eu me dizia repetidamente a mim mesma. Mas como ser forte quando cada olhar vazio de Alice me despedaçava por dentro? Depois de muito esforço, consegui levá-la à escola, embora sentisse como se estivesse arrastando uma tonelada. — Preciso que você confie em mim, Alice — sussurrei. Minha voz estava embargada, e sabia que não teria resposta. Ela simplesmente não ir
Eu já estava no meu limite. Deixar Alice na escola havia sido um desafio emocional que me desgastou por completo. Cada lágrima dela, cada silêncio, cada recusa me destruía por dentro. Senti o nó na garganta se apertar quando virei as costas para aquela porta, mas sabia que não tinha outra escolha. Precisava voltar ao trabalho. Precisava manter a compostura. No entanto, o universo parecia disposto a testar minhas forças até o último fio. Assim que atravessei o portão, dei de cara com Isaías. Justo ele. O rosto dele se contorceu numa expressão que misturava desprezo e frieza. Não precisei de mais nada para saber que aquele encontro não terminaria bem. — Que surpresa desagradável — ele disse, o tom de voz afiado como uma lâmina. — Deixando Alice, ou melhor, tentando deixá-la na escola, imagino. Sempre um drama. Eu cerrei os dentes, tentando manter a calma, mas sabia que qualquer tentativa de diálogo com Isaías era como andar em um campo minado. — Não é
Apertei o copo de whisky com tanta força que meus dedos doíam. Como se a bebida pudesse, de alguma forma, dissolver a raiva que crescia dentro de mim. O bar ao meu redor era um reflexo do que eu sentia por dentro: escuro, abafado, cheio de sombras distorcidas que se espalhavam pelos poucos rostos presentes. Meu amigo Josef estava sentado à minha frente, em silêncio, apenas escutando enquanto eu despejava minha frustração entre goles amargos. Era o que ele sabia fazer melhor: ouvir e não dizer nada até eu explodir por completo. — Eu já sabia que meu irmão ia aprontar mais uma antes de morrer — comecei, a voz cheia de desprezo. — Mas, merda, ninguém nunca está preparado para isso. Você imagina... até se força a acreditar que ele vai se levantar daquela cama e tudo vai voltar ao normal. Mas, claro, não voltou. Joguei a cabeça para trás e terminei o copo de uma vez só. Meu rosto estava firme e frio. Eu era o cara que não se abalava. Mas a voz... essa não me deixava
Cheguei ao trabalho furiosa. Meu corpo inteiro estava tenso, e meu humor era um reflexo direto de tudo o que aconteceu naquela manhã com Alice. Ficar longe dela, sabendo que estava lutando contra seus próprios demônios silenciosos, me corroía por dentro. Tentei, em vão, deixar esses pensamentos de lado assim que passei pela porta da empresa, mas eles continuavam lá, martelando na minha cabeça. Assim que entrei na minha sala, respirei fundo. Havia muita coisa para resolver, e meu foco tinha que estar nas responsabilidades à minha frente. Mas era impossível ignorar aquela mistura de frustração e impotência que se alojava no meu peito. No entanto, trabalho é trabalho, e não tinha como fugir das responsabilidades que me aguardavam. Peguei os documentos da reunião do dia, organizei alguns relatórios, e segui direto para encarar o que precisava ser feito. O mundo corporativo não parava para esperar meus dramas pessoais, e eu não podia me dar ao luxo de deixar as emoçõ