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Capítulo 3 - Visões e Visagens

"Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você."

-Friedrich Nietzsche 

Já eram quase sete horas da noite quando Lucca saiu pela porta do bar café Dragoni Rosella. O estabelecimento era um dos locais mais movimentados da Piazza Dei Quaranta Martiri, uma das principais praças de Gubbio.

Lá fora o céu escuro deixava a cidade um pouco mais melancólica do que realmente era. A garoa caía fina. Lucca começou a andar pela praça, contemplando a paisagem que já conhecia muito bem. 

Gubbio. A cidade que unia modernidade com antiguidade, uma cidade medieval plantada no coração da Europa em pleno século XXI. Alguns passos a frente e Lucca parou. Diante de si estava a famosa estátua de São Francisco e o Lobo, um dos cartões postais da cidade. Diz a história que no período medieval, nas florestas de Gubbio, havia um lobo feroz que destruía tudo o que via pela frente. Foi nesse período que as fortalezas de pedra foram feitas, para que, diz a lenda, os moradores pudessem estar protegidos. 

Foi durante esse tempo que São Francisco de Assis surgiu na cidade, decidido a conversar com o lobo. O bom homem encontrou o animal ao pé da floresta e tratou o lobo com tanta bondade, que este deixou sua raiva de lado e passou a ser tratado como um irmão, tanto por São Francisco de Assis como por todos de Gubbio, vivendo na cidade até a sua morte.

Lucca olhava para a estátua com atenção. No fundo, se parecia com aquele lobo. Alguém deslocado na sociedade, usando a fúria para se defender e afastar todos da sua volta, um lobo feroz. Lembrou -se do acidente de avião que matara seus pais e deixara ele e seu irmão gravemente feridos, perdidos no meio da selva. Lembrou -se do resgate, da nova vida no internato, dos traumas vividos lá dentro, da fuga pela liberdade e da queda no mundo das drogas. Sim ele era esse lobo solitário, um homem com cabelos desgrenhados que iam até os ombros, usando uma calça jeans velha e rasgada nos joelhos; um tênis All Star preto e uma camisa do Black Sabbath, na cor cinza. Alguém que definitivamente não era exemplo para ninguém, mas que lá no fundo, ansiava encontrar a redenção que um dia aquele lobo encontrara para apagar seu passado. Lucca lutava para que o homem exterior vencesse o lobo interior que lhe corroía a alma e afastava as pessoas da sua volta.

Os últimos dias tinham sido difíceis para ele. Sozinho no seu apartamento, gastava o seu tempo a pintar quadros. Era o seu dom. A arte de ilustrar as imagens capturadas pelos seus olhos, sua mente, seu coração. Quando pegava o pincel e começava a passar pela tela em branco, era como se os seus problemas fossem minimizados por um breve instante. Porém quando terminava, os traumas voltavam novamente fazendo com que Lucca buscasse auxílio nas drogas. O êxtase era tão grande, que muitas vezes parecia que Lucca saía fora da realidade. Visões e visagens lhe ocorriam nesse momento. 

Via muitas coisas. Gubbio em uma época muito distante, um convento no alto de um morro, um símbolo de sol e lua entrelaçados. Mas o que Lucca via constantemente nesses períodos de frenesi era algo semelhante a uma luz em formato de fenda. Dessa luz saia um homem loiro de olhos azuis, vestido com um terno branco, que repetia o nome de Lucca como um mantra. Lucca sempre acordava no exato momento em que o homem se aproximava, impossibilitado de conversar com ele. Quando voltava a si, registrava tudo em seus quadros.

Lucca voltou para seu apartamento, e nem bem tinha trocado de roupa, quando alguém bateu à porta:

- Lucca, abra por favor, eu sei que você está aí. Sou eu, Aurora.

Lucca veio de encontro a porta já sabendo o que ia acontecer. Aurora era sua antiga namorada. Conheceu-o, quando ele estava jogado na rua, e ela, sendo líder de uma ONG, não só tirou-o daquela vida como se apaixonou por ele. Namoraram por algum tempo,mas por causa das drogas, separam-se, mais por causa de Lucca. Todavia, Aurora nunca desistiu dele, e sempre que Lucca cruzava a "linha vermelha" , ela tratava de aparecer para colocá-lo nos eixos.

-Já disse que não quero você aqui,nem preciso da sua ajuda- Disse Lucca bruscamente.

- Se não quer nada comigo, tudo bem Lucca, mas pelo menos aceita minha ajuda,sabe que não está bem.

Lucca olhou para aqueles olhos negros,mais profundos que o abismo. Aurora era morena,de descendência africana, uma mulher forte e empoderada. Lucca brigava, mas sabia , lá no fundo, que ela estava certa.

- Eu já disse um milhão de vezes que estou bem. Não precisa ficar me vigiando como uma babá!

- Lucca, você precisa se ajudar! Quer viver a sua vida assim? Trancado em um apartamento sozinho, sendo tragado aos poucos pelas drogas? Olha o dom que você tem Lucca? Porque não quer ser ajudado? Porque afasta as pessoas ao seu redor? - Respondeu Aurora com lágrimas nos olhos.

- Eu já disse, estou bem Aurora. Só vá embora. Não quero te magoar.

- Eu vou Lucca, mas eu vou voltar. Isso não vai acabar assim. Eu te salvei uma vez e vou te salvar de novo. Não se preocupe em me magoar, já fez isso inúmeras vezes!

Aurora saiu. No sofá, com as mãos na cabeça, Lucca chorou. O que fazer para sair daquele cárcere? O que fazer para fugir do abismo que o encarava? Olhou para a seringa em cima da mesa. O desejo quando cresce destrói completamente com a razão. Lucca injetou e foi perdendo os sentidos até tudo desaparecer. Acordou meia hora depois, correndo pela casa a pegar tinta e pincel. 

Como num transe, começou a pintar no quadro freneticamente. Quando voltou a si já estava com as mãos sujas e um novo quadro pronto. Lucca olhou sem entender. 

O que viu foi um cenário completamente diferente do que já tinha visto, mas algo lhe era familiar: a fenda. Ela estava lá, só que não era tudo. Havia duas pessoas, pra dizer a verdade, duas mulheres. Uma jovem com cabelos loiros e olhos claros vestindo uma capa, e ao seu lado uma mulher de mais idade, também loira, com olhos tão verdes que mais pareciam esmeraldas, vestindo roupas modernas.

Para Lucca nada fazia sentido, pelo menos não ainda. Lá fora começou a chover mais forte. Lucca deitou no sofá, e o sono misturado ao barulho da chuva, o fez adormecer pensando nas duas mulheres misteriosas.

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