"Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você."
-Friedrich Nietzsche
Já eram quase sete horas da noite quando Lucca saiu pela porta do bar café Dragoni Rosella. O estabelecimento era um dos locais mais movimentados da Piazza Dei Quaranta Martiri, uma das principais praças de Gubbio.
Lá fora o céu escuro deixava a cidade um pouco mais melancólica do que realmente era. A garoa caía fina. Lucca começou a andar pela praça, contemplando a paisagem que já conhecia muito bem.
Gubbio. A cidade que unia modernidade com antiguidade, uma cidade medieval plantada no coração da Europa em pleno século XXI. Alguns passos a frente e Lucca parou. Diante de si estava a famosa estátua de São Francisco e o Lobo, um dos cartões postais da cidade. Diz a história que no período medieval, nas florestas de Gubbio, havia um lobo feroz que destruía tudo o que via pela frente. Foi nesse período que as fortalezas de pedra foram feitas, para que, diz a lenda, os moradores pudessem estar protegidos.
Foi durante esse tempo que São Francisco de Assis surgiu na cidade, decidido a conversar com o lobo. O bom homem encontrou o animal ao pé da floresta e tratou o lobo com tanta bondade, que este deixou sua raiva de lado e passou a ser tratado como um irmão, tanto por São Francisco de Assis como por todos de Gubbio, vivendo na cidade até a sua morte.
Lucca olhava para a estátua com atenção. No fundo, se parecia com aquele lobo. Alguém deslocado na sociedade, usando a fúria para se defender e afastar todos da sua volta, um lobo feroz. Lembrou -se do acidente de avião que matara seus pais e deixara ele e seu irmão gravemente feridos, perdidos no meio da selva. Lembrou -se do resgate, da nova vida no internato, dos traumas vividos lá dentro, da fuga pela liberdade e da queda no mundo das drogas. Sim ele era esse lobo solitário, um homem com cabelos desgrenhados que iam até os ombros, usando uma calça jeans velha e rasgada nos joelhos; um tênis All Star preto e uma camisa do Black Sabbath, na cor cinza. Alguém que definitivamente não era exemplo para ninguém, mas que lá no fundo, ansiava encontrar a redenção que um dia aquele lobo encontrara para apagar seu passado. Lucca lutava para que o homem exterior vencesse o lobo interior que lhe corroía a alma e afastava as pessoas da sua volta.
Os últimos dias tinham sido difíceis para ele. Sozinho no seu apartamento, gastava o seu tempo a pintar quadros. Era o seu dom. A arte de ilustrar as imagens capturadas pelos seus olhos, sua mente, seu coração. Quando pegava o pincel e começava a passar pela tela em branco, era como se os seus problemas fossem minimizados por um breve instante. Porém quando terminava, os traumas voltavam novamente fazendo com que Lucca buscasse auxílio nas drogas. O êxtase era tão grande, que muitas vezes parecia que Lucca saía fora da realidade. Visões e visagens lhe ocorriam nesse momento.
Via muitas coisas. Gubbio em uma época muito distante, um convento no alto de um morro, um símbolo de sol e lua entrelaçados. Mas o que Lucca via constantemente nesses períodos de frenesi era algo semelhante a uma luz em formato de fenda. Dessa luz saia um homem loiro de olhos azuis, vestido com um terno branco, que repetia o nome de Lucca como um mantra. Lucca sempre acordava no exato momento em que o homem se aproximava, impossibilitado de conversar com ele. Quando voltava a si, registrava tudo em seus quadros.
Lucca voltou para seu apartamento, e nem bem tinha trocado de roupa, quando alguém bateu à porta:
- Lucca, abra por favor, eu sei que você está aí. Sou eu, Aurora.
Lucca veio de encontro a porta já sabendo o que ia acontecer. Aurora era sua antiga namorada. Conheceu-o, quando ele estava jogado na rua, e ela, sendo líder de uma ONG, não só tirou-o daquela vida como se apaixonou por ele. Namoraram por algum tempo,mas por causa das drogas, separam-se, mais por causa de Lucca. Todavia, Aurora nunca desistiu dele, e sempre que Lucca cruzava a "linha vermelha" , ela tratava de aparecer para colocá-lo nos eixos.
-Já disse que não quero você aqui,nem preciso da sua ajuda- Disse Lucca bruscamente.
- Se não quer nada comigo, tudo bem Lucca, mas pelo menos aceita minha ajuda,sabe que não está bem.
Lucca olhou para aqueles olhos negros,mais profundos que o abismo. Aurora era morena,de descendência africana, uma mulher forte e empoderada. Lucca brigava, mas sabia , lá no fundo, que ela estava certa.
- Eu já disse um milhão de vezes que estou bem. Não precisa ficar me vigiando como uma babá!
- Lucca, você precisa se ajudar! Quer viver a sua vida assim? Trancado em um apartamento sozinho, sendo tragado aos poucos pelas drogas? Olha o dom que você tem Lucca? Porque não quer ser ajudado? Porque afasta as pessoas ao seu redor? - Respondeu Aurora com lágrimas nos olhos.
- Eu já disse, estou bem Aurora. Só vá embora. Não quero te magoar.
- Eu vou Lucca, mas eu vou voltar. Isso não vai acabar assim. Eu te salvei uma vez e vou te salvar de novo. Não se preocupe em me magoar, já fez isso inúmeras vezes!
Aurora saiu. No sofá, com as mãos na cabeça, Lucca chorou. O que fazer para sair daquele cárcere? O que fazer para fugir do abismo que o encarava? Olhou para a seringa em cima da mesa. O desejo quando cresce destrói completamente com a razão. Lucca injetou e foi perdendo os sentidos até tudo desaparecer. Acordou meia hora depois, correndo pela casa a pegar tinta e pincel.
Como num transe, começou a pintar no quadro freneticamente. Quando voltou a si já estava com as mãos sujas e um novo quadro pronto. Lucca olhou sem entender.
O que viu foi um cenário completamente diferente do que já tinha visto, mas algo lhe era familiar: a fenda. Ela estava lá, só que não era tudo. Havia duas pessoas, pra dizer a verdade, duas mulheres. Uma jovem com cabelos loiros e olhos claros vestindo uma capa, e ao seu lado uma mulher de mais idade, também loira, com olhos tão verdes que mais pareciam esmeraldas, vestindo roupas modernas.
Para Lucca nada fazia sentido, pelo menos não ainda. Lá fora começou a chover mais forte. Lucca deitou no sofá, e o sono misturado ao barulho da chuva, o fez adormecer pensando nas duas mulheres misteriosas.
"A maioria das pessoas está tão absorta na contemplação do mundo exterior que está totalmente alheia ao que está acontecendo dentro de si".-Nikola TeslaJá fazia quase cinco horas que Irene estava fora de casa. Em condições normais isso não seria nada alarmante, uma vez que Irene sendo professora universitária, ficava até tarde na Universidade, corrigindo trabalhos e revisando provas.Mas agora era diferente. Irene tinha recém se reabilitado do acidente que, dias atrás, a deixou entre a vida e a morte. Louis mesmo não sendo um grande observador, percebeu que Irene já não era mais a mesma . Algo naquele hospital havia mexido com ela, algo que Louis não sabia explicar no
"Não há nada que faça um homem suspeitar tanto como o fato de saber pouco."-Francis Bacon-ALEXIA!Essa foi a primeira palavra que saiu da boca de Irene ao transpor a fenda. Diante dela estava a filha amada que há aproximadamente dois anos, tinha partido deixando seu coração aos pedaços. Irene acariciava os cabelos loiros de Alexia, a mão a tocar o seu rosto tão claro e sereno.- Sim, sou eu mamãe, sua menina! - Disse Alexia, pegando carinhosamente nos ombros da mãe.- Mas como é possível? E que lugar é esse?Somente ago
"Até que o sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão."- ConfúcioJá passava das dez horas da manhã quando Irene abriu os olhos, despertando do sono. Ficou imóvel por alguns segundos com medo de que tudo aquilo que vivera até aquele momento não tivesse passado de um sonho e ela estivesse no hospital ainda. Olhou para o teto. Definitivamente não estava no hospital. O teto era escuro e de pedra, muito diferente do teto branco e de gesso do hospital de Gubbio. Levantou-se. O quarto frio e escuro era iluminado por apenas uma vela que emanava uma luz fraca. Da porta vinha um cheiro de incenso e ervas aromáticas, que disfarçava um pouco o cheiro de mofo que reinava no lugar .Irene dirigiu -se à sala redo
"Vá tão longe quanto você possa ver, e quando você chegar lá você verá mais longe."- Orison Swett MardenO prédio onde Lucca morava ficava a poucos quarteirões da Taverna do Lobo, em uma das muitas vielas da cidade. Lucca girou a chave e entrou na sala com um Louis extremamente ansioso atrás de si.- Fique à vontade. A minha casa não é tão chique como a sua deve ser, mas dá pro gasto, pelo menos pra mim.- Disse Lucca.- Deixa de cerimônia garoto, se soubesse da minha origem não iria se preocupar com isso.- Disse Louis olhando para as pinturas ao seu redor.
" A voz do inconsciente é sutil, mas ela não descansa até ser ouvida."- Sigmund Freud- Como assim, " preparado para morrer?!"Lucca olhou para Eric sem acreditar no que estava ouvindo. O irmão sempre fora do tipo " o fim justificam os meios", mas agora parecia estar fora daquilo que Lucca entendia como aceitável.Eric, assumindo um tom mais sério começou a falar:- Não é bem morrer...só vamos te colocar em coma induzido. Você mesmo disse que o êxtase é o que te faz ter esses flashes... Só que você não faz isso de forma controlada, você simplesm
"Todos veem o que você parece ser, mas poucos sabem o que você realmente é."- MaquiavelA lua azulada despontava no horizonte em meio aos altos pinheiros que se erguiam ao longe. O silêncio da noite era cortado apenas pelo som dos cascos dos cavalos que levavam o pequeno grupo liderado por Alexia. A tensão era visível no rosto de cada um. De quando em quando alguém soltava uma palavra que era rapidamente respondida fazendo com que a quietude reinasse sobre eles novamente. Agarrada na cintura de Ícaro, Irene pensava. Como sua vida tinha virado de cabeça para baixo em dois anos! Uma mulher que já estava acostumada à mesmice da sala de aula, agora estava vivendo algo tão surreal que parecia estar atuando em um filme de Hollywood. "Muitos odeiam a tirania apenas para que possam estabelecer a sua."- Platão- Afaste um pouco as pernas, alinhe o quadril- Assim.- Levante o arco até a altura dos ombros, puxe para trás.- Isso. - Agora esvazie sua mente e foque no alvo. Agora ...Solte!A flecha voa cortando o vento, fazendo seu malabarismo no ar e indo direto ao centro da maçã que está pendurada no pomar.- Muito bem filha, estou orgulhoso... Muito em breve todos da Ordem irão saber quem é Cassandra Pagano!Cassandra sorriu. Às vezes o pai sonhava demais, pensava. Sua família era a mais pobre da vila onde moravam. O pai, sendo carpintCapítulo 10 - Inquisição
"Não há religião mais elevada que a verdade."- Helena Blavatsky- Espada de Mikael? Interessante... - Disse Eric contemplativo.- Aurora, quer dizer, a duplicata dela, disse que a espada estaria cravada em uma rocha em algum lugar na Toscana. Só não disse exatamente aonde. Tem algum palpite? - Disse Lucca vestindo sua camisa.- Por enquanto não, mas é só uma questão de tempo até descobrirmos.- Disse Eric voltando-se para a porta. - Vamos indo. Se Irene está na mão de pessoas erradas não podemos perder tempo. Quero apresentar algumas pessoas para vocês dois.Os três saíram p