CaíqueO barulho do interior do café ainda está vivo em minha cabeça: a mistura de vozes, o som da máquina de café, o tilintar das xícaras. Mas o que mais me marca não é o café, nem o cheiro da bebida, nem o quanto o lugar parece o mesmo de anos atrás. O que me marca é o olhar dela. Mayara. O silêncio que pairou entre nós quando nossos olhos se encontraram. Nada me preparou para encontrá-la, nem para a distância que ela impôs quando me aproximei.Minha aproximação e a conversa vazia que tentei puxar não fazem sentido. Até agora, não entendo o porquê de ter feito isso. Mas, quando dei por mim, minha boca se abriu e chamou seu nome, meus pés andaram até ela. Era como se o tempo não tivesse passado, como se eu ainda fosse o homem que ela conheceu, mas já não era. E ela sabia disso. Eu também sabia disso. Estava tão absorto em vê-la, que só acordei quando ela se levantou e foi embora.A sensação de estar em um lugar em que eu não pertencia nunca foi tão forte quanto agora. Era assim que e
MayaraEu sempre detestei essas festas de empresa. Aquelas pessoas que sorriem mais do que o necessário, as conversas que parecem ensaiadas e o som constante de vozes tentando soar como algo inteligente. Ser simpática por horas intermináveis, tentando fingir que estou ali por querer, sendo uma grande mentira. Tudo isso sempre me fez querer sair mais cedo, fugir da formalidade e voltar para casa o mais rápido possível, a fim de ficar o resto da noite com o meu filho.Estou em uma roda de conversa com outros funcionários da empresa onde trabalho, em um canto da sala. Eles falam sobre novos projetos, sobre os projetos futuros. E enquanto eu os ouço, sorrio como se estivesse dando atenção, aceno algumas vezes, mas, na verdade, estou distraída. Seguro a taça de vinho com uma mão e, com a outra, brinco, alisando a borda da taça. Talvez seja apenas uma desculpa para me manter ocupada enquanto minha cabeça continua martelando em questões que preferia não resolver.Minha mente está em outro lu
MayaraPercebendo para o rumo da noite, peço licença para os demais e me afasto um pouco, como se fosse fazer algo importante. Vou até o lado de fora, usado por fumantes. Agradeço por estar vazio. Não demora para perceber que não estou sozinha.Caíque para ao meu lado. O silêncio entre nós se estende, insuportável, mas ninguém se atreve a quebrá-lo. Olho para ele e o meu olhar se fixa no dele, tentando entender o que ele está pensando, tentando traduzir a frieza que ele tenta passar, mas que não consegue esconder. Não há mais aquele brilho familiar de antes, aquele jeito dele de me fazer sentir que tudo podia dar certo, não importa o quão tortuosos fossem nossos caminhos. Agora, tudo está frio, distante, e o tempo que passou nos transformou em dois estranhos tentando manter a mínima compostura.— O que você quer? — pergunto e ele ri com amargura.— Quero paz. Mas como não posso ter tudo o que quero...— Está tentando tirar a minha? — interrompo.— Não. Mas não sei o que minha pergunta
CaíqueEu não devia ter ido até ela daquele jeito. Não devia ter perdido o controle.Mas bastou vê-la para que tudo desmoronasse. Sete anos. Sete malditos anos me preparando para esse momento, me convencendo de que, se um dia nossos caminhos se cruzassem novamente, eu estaria pronto. Frio, indiferente. No controle.Mas foi só olhar para ela que tudo fugiu do eixo. Ainda mais, vendo-a acompanhada e tão íntima daquele cara. Será que eles estão juntos desde aquela época? Bom, ela diz que nunca estiveram juntos, mas não sei se é verdade. Não sei nem o que pensar.Mayara.A mulher que eu amei. A mulher que me destruiu.Ou será que fui eu quem destruiu tudo?Esse pensamento me engasga. Eu aperto a mandíbula, sentindo o gosto amargo da dúvida depois dos seus ataques que pareciam tão autênticos. Durante todos esses anos, acreditei que tinha sido enganado. Traído. Mas agora, depois do nosso reencontro, há algo martelando dentro de mim, uma verdade que eu talvez tenha me recusado a enxergar.E
CaíqueChego em casa sentindo o peso do dia inteiro sobre os ombros. O inesperado encontro com Mayara me tirou do eixo, e agora estou lidando com uma inquietação que não sei como resolver. Mas preciso me concentrar. Tenho problemas demais para perder tempo remoendo o passado.Passo pela sala e encontro meus pais sentados no sofá. Meu pai tem o olhar perdido, encarando a tela da televisão desligada. Minha mãe está folheando algumas planilhas, provavelmente tentando encontrar uma solução que ainda não existe.A que sobra da empresa da família está afundando, e eles contam comigo para ajudar a reerguê-la. Esse é o motivo pelo qual voltei. Ou pelo menos é o que venho repetindo para mim mesmo que esse foi o único assunto determinante para eu retornar para a cidade da onde eu saí.— Oi! Como foi o seu dia? — minha mãe pergunta, sem desviar os olhos dos papéis.Solto um suspiro, jogando-me em uma das poltronas.— Como esperado — minto, mantendo a resposta vaga. Não estou pronto para falar so
Caíque— Quanto tempo — reafirmo, estendendo a mão para ele, que aceita e aperta com a sua. — E faz tempo que estão juntos?Minha irmã ri, segurando no braço dele.— Faz três anos. — Ri ainda mais quando não consigo esconder o meu susto. — Você não estava muito disponível para se atualizar das novidades.Preciso aceitar sua resposta atravessada calado. Eu falhei nesse quesito com ela, assim como não sou próximo dos nossos irmãos. Por me sentir inadequado até com eles que são meus familiares, me fechei no meu canto seguro e não fui presente.— Estou subindo — aviso, indo em direção à escada.— Não quer jantar? — minha mãe questiona.— Não estou com fome. Vou tomar um remédio para dor de cabeça e deitar, conversamos depois. — De costas para eles, continuo. — Boa noite.Todos respondem.— Foi bom te ver, cara — o namorado da minha irmã fala.— Digo o mesmo.Subo as escadas, ainda meio atordoado com a quantidade de lembranças que essa casa me traz. Os corredores são os mesmos, o cheiro ta
MayaraO despertador toca às seis e meia da manhã, mas eu já estou acordada desde as quatro. Sempre estou. O hábito de antecipar o dia me impede de realmente descansar até o último minuto, como deveria. Viro o rosto e vejo Gustavo ainda encolhido debaixo do edredom, respirando tranquilamente. O cabelo castanho está todo bagunçado, o rosto redondo amassado e sua fisionomia serena me faz sorrir. Por alguns segundos, fico apenas observando, aproveitando o silêncio antes da correria. Ele está crescendo tão rápido, já sinto saudades de quando ele era um pacotinho e eu o carregava nos braços para todos os lados.Passo a mão por seu rosto, acariciando sua testa, descendo pelo nariz pequeno e indo até sua bochecha. Repito o movimento diversas vezes, desejando guardar na mente todos os detalhes da sua fisionomia.Obrigo-me a começar o dia, não dá para adiar muito. Inclino-me sobre ele e passo a mão em seu cabelo com carinho.— Gu, hora de acordar, meu amor.Ele resmunga e se vira para o outro
CaíqueO sol já começa a baixar no horizonte, tingindo o céu com tons dourados e alaranjados. O calor do dia cede espaço a uma brisa morna que passeia entre as ruas movimentadas da cidade. Estou sentado no banco atrás do volante do carro, observando as pessoas indo e vindo, enquanto espero a ligação do meu pai com o retorno da reunião que teve com o gerente do banco. Mais um dia resolvendo problemas financeiros da família. E mais um dia tentando organizar o caos que encontrei quando voltei.Solto o nó da gravata em volta do meu pescoço, quero respirar e parece que está difícil essa simples ação. Passo a mão pelos cabelos, bagunçando-os. Nunca pensei que minha volta fosse me trazer tantas lembranças. Cada esquina dessa cidade parece conter um pedaço da minha história. Algumas, boas. Outras, nem tanto. Quando estou ocupado com trabalho, me distraio um pouco, mas enquanto espero o meu pai, fico dessa forma saudosa observando tudo e relembrando do que não deveria.Meu olhar vagueia sem co