Capítulo 3

Assim que colocou os pés para fora de casa, Viviane soube que aquela breve caminhada teria consequências. Apesar disso, criou coragem e partiu, com a certeza de que só voltaria para casa com um emprego.

            Não que as opções fossem muitas ou, ao menos, atraentes. As pessoas em Serenia não costumavam confiar nela, a julgar por seu passado, e algo lhe dizia que mesmo depois de oito anos aquilo não estaria muito diferente.

            Tentou a sapataria, uma pequena butique, uma lanchonete, o correio, a floricultura, papelaria... todos os estabelecimentos comerciais da cidade. Só restava um, que era sua última e mais remota opção. O restaurante de Edna Freitas.

            Sabia que ali seria aceita sem fazer nenhum esforço. Mas era exatamente isso que não queria. Edna era o mais próximo de uma mãe que ela jamais tivera, por isso preferia não depender dela ou lhe dever mais do que já devia. Porém, ao entrar em seu aconchegante restaurante, que sempre cheirava a comida caseira e bem feita, soube que não poderia deixar seu orgulho falar mais alto. Teria que engoli-lo outra vez.

            — Meu Deus, será uma assombração? — Edna colocou a mão no peito, com um largo sorriso no rosto. Depois, contornou o balcão e jogou os braços em torno de Viviane, puxando-a para um abraço apertado, praticamente amassando-a contra seu corpanzil curvilíneo. — Querida, como é bom te ver! Quando chegou? ― O sotaque mineiro carregado, uma característica muito peculiar daquela mulher, quase a fez sorrir.

            — Ontem à noite.

            — Nunca pensei que fosse voltar. Você foi embora sem se despedir de ninguém. Nem mesmo Mac sabia onde você estava.

            E o nome maldito foi pronunciado. Era tarde demais.

            Ela quase podia jurar que, à menção daquele nome, um temporal de imensas proporções iria cair lá fora, que as luzes do restaurante iriam piscar ou que algo iria pegar fogo, mas nada aconteceu.

            Por enquanto.

            — Mas que deslize o meu — Edna sorriu sem graça, ao perceber que Viviane não parecia muito interessada em falar sobre Mac —, nem perguntei se quer alguma coisa.

            — Quero sim, Edna. — Com toda humildade, Viviane respirou fundo e tomou coragem: — Quero um emprego.

            Edna sequer pareceu atordoada. Essa era sua maior qualidade; jamais expressava qualquer reação que pudesse deixar alguém embaraçado. Viviane sabia que ela deveria estar bastante surpresa por aquele pedido, mas simplesmente balançou a cabeça para cima e para baixo, pensativa. Outra coisa que sabia era que a mais velha jamais lhe negaria nada, por isso, achava-se a mais cruel das criaturas por lhe pedir algo tão delicado.

            Bem, talvez ainda houvesse muito da antiga e egoísta Viviane dentro dela.

            — Por essa eu não esperava. Mas você sempre foi imprevisível, não é, Tempestade? — Brincou Edna, tentando amenizar a situação.

            — Costumava ser parte do meu charme...

            — Sem dúvida. — Riu. — Bem, sabe que o salário não é muito alto, e o trabalho, pesado. As gorjetas também não são grande coisa...

            — Preciso de dinheiro, Edna. Eu tenho uma filha agora. — Sua voz soou mais séria do que nunca. E finalmente ela percebeu certa surpresa no rosto da amiga. Mas, ainda assim, logo se recuperou para não causar uma situação embaraçosa.

            — Não se preocupe, querida, o emprego é seu. Pode começar amanhã, se quiser.

            Era tudo que Viviane precisava ouvir.

            E o ar, de repente, pareceu ter cheiro de recomeço.

           

***

            Era realmente uma maldição.

            Sabia que se proferisse o nome dele em voz alta, ele surgiria, como um espírito maligno, uma alma penada que precisava ser exorcizada. Mesmo de longe, de costas e sem ouvir sua voz, Viviane podia sentir sua presença, como se estivessem ligados por laços de sangue... por estreitos nós invisíveis que os mantinham prisioneiros do passado que ela tanto tentou, em vão, esquecer.

            — Ora, ora... a filha pródiga voltou à casa...

            A frase foi proferida com sarcasmo e uma leve pitada de ressentimento. E não era para menos. Ela partira sem olhar para trás e sem se despedir. Deixara-o sem lhe dizer para onde ia ou avisar que estava bem.

            Viviane sabia que não merecia nada mais do que desprezo. Ele fora a única fonte de alegria naquela cidade, seu companheiro, seu melhor amigo... seu amante. Tinham páginas e páginas de uma história para contar, cheia de altos e baixos... Uma história que Viviane simplesmente rasgou em pedacinhos, deixando-a inacabada.

            Assim que se virou, no entanto, Viviane quase perdeu o ar. Se sua alma não o reconhecesse, seus olhos com certeza também não seriam capazes de fazê-lo. Aquele à sua frente não era o menino magricelo, alto e endiabrado que ela amou de todo coração. Ali estava um verdadeiro pecado... Um ser infernal, com uma utópica beleza bandida e um olhar que poderia enfiar um punhal em seu coração.

            — Até que você ficou jeitosinha, hein! — Ele cruzou os braços sobre o peito e sorriu de canto, de forma irônica, como se sentisse vitorioso.

            Como ele a conhecia mais do que qualquer pessoa, sabia exatamente o jeito certo de deixá-la irritada, especialmente olhando-a daquela forma, de cima a baixo, como se avaliasse um produto em uma loja, algo que ele estaria interessado em comprar.

            — Olá, Mac!

            A tensão entre eles era quase tangível. Ela sabia que lhe devia explicações, mas que nunca seriam pedidas.

            Então ele se aproximou. E todas as mesmas sensações de oito anos atrás se apossaram de seu corpo como se não tivesse passado nem um minuto. Por um instante, enquanto ele parava a centímetros de distância, Viviane quase jurou que ainda eram as mesmas pessoas, mas ela estava mudada. E ele também. Visivelmente. Os cabelos, que sempre foram claros e longos, estavam um pouco mais escuros, em um tom de ouro velho, e seu comprimento passava um pouco das orelhas, em um corte bagunçado e muito sexy. Os olhos negros, em um tom de piche, tornavam seu olhar ainda mais misterioso, profundo... perigoso. Sempre foi alto, mas parecia ter crescido ainda mais, atingindo facilmente a altura de 1.85m. Além disso, havia músculos por toda parte de seu corpo, quase saltando pela camiseta preta que se moldava perfeitamente ao seu peitoral. Tudo isso tornava muito mais difícil a arte de ignorá-lo.

            — Pensei que nunca mais iria te ver de novo... Mas o mundo dá voltas, não é mesmo? Quem diria que depois de conseguir fugir, você voltaria para Serenia...

            É, ela também achava que jamais iria voltar. E também achava que jamais teria que encará-lo novamente. Era assim que sempre tomava suas decisões; sem pensar nas consequências. Daquela vez, quando resolveu dar as costas para Serenia — e consequentemente para ele —, nem pensou que poderiam se encontrar mais uma vez e que estaria completamente arrependida de tê-lo abandonado.

            Bem, ela não sabia se estava mesmo arrependida. Na época pensara ser a melhor coisa a se fazer. Ele mesmo sempre afirmara que quando uma oportunidade surgisse, ela deveria agarrá-la com unhas e dentes. Foi exatamente o que fez.

            — É verdade. Foi bom vê-lo novamente, Mac. Até mais! — Tencionando fugir daquela conversa, Viviane deu-lhe as costas, pronta para se afastar, mas ele segurou seu braço. Claro que iria querer prolongar aquela conversa e torturá-la um pouco mais.

            — Ah, não, você não vai fugir de mim outra vez!

            — Mas eu não ia... — tentou se defender, mas ele não esperou que ela terminasse de falar.

            — Claro que ia. Você é a melhor nisso... em desaparecer sem dar explicações. E acho que eu merecia uma. — Ele falava tudo aquilo com uma espécie de sorriso no rosto, enquanto abria um pacote de chiclete despretensiosamente e o colocava na boca. Viviane não estava gostando nada da postura que ele estava adotando. — Então agora você me deve uma. E saiba que isso me dá um baita poder sobre você. ― Para completar, uma piscadinha marota. Típico dele.

            Era fácil perceber que certas coisas em Mac não haviam mudado; ele continuava sendo arrogante, sarcástico e malicioso, porém, com um sério agravante: estava sexy, charmoso e cheirando a perigo. Não. Ele cheirava a pecado... aos sete pecados de uma vez só. Viviane sabia que aproximar-se seria arriscado, que todos os sentimentos por ele viriam à tona em muito pouco tempo. E ela não podia permitir qualquer ligação com Serenia. Principalmente com ele, que fora a parte mais difícil de abandonar na primeira vez que fora embora.

            Mac, além de tudo, parecia magoado e, sem dúvida, queria uma revanche por ter sido deixado para trás. E não era para menos. Por isso, ele merecia ao menos ouvir uma explicação.

            — Tudo bem, Mac... Para onde você quer ir para conversarmos?

            — E você ainda pergunta? — Outra vez ele sorriu, e Viviane conseguiu enxergar, por trás daqueles olhos negros e profundos, o menino que ela conhecera e por quem fora perdidamente apaixonada. E nem precisou perguntar para onde ele a levaria. Seu coração sabia.

***

            O silêncio era perturbador.

            Ele sabia que precisava dizer qualquer coisa, que era ridículo não saber o que falar para uma criança de quatro anos, mas todas as vezes que olhava para ela, tão inocente, tão pequena, tinha medo de sair alguma coisa errada, de soltar um palavrão, de ser grosseiro sem que ela merecesse...

            Aldo não sabia mais lidar com as pessoas. Ou melhor, se não sabia nem lidar consigo mesmo, como iria ser capaz de entreter uma criança, fazer com que ela gostasse dele?

            Gostar dele... 

            Será que queria que aquela menininha lhe reservasse algum sentimento positivo? Estava sozinho há tanto tempo que já nem pensava mais na possibilidade de ter alguém em sua casa, muito menos uma criança. Por isso era estranho vê-la passeando pelos corredores, brincando com uma boneca, como se sentisse muito à vontade naquele lugar que acabara de conhecer.

            Tentava também evitar olhá-la, pois precisaria ter um coração muito duro para não se comover. Lúcia era linda, delicada e cheia de sorrisos, além de muito dócil; totalmente o oposto da mãe nessa mesma idade. Não queria se apegar a ela ou seria mais difícil vê-la partir quando Viviane decidisse novamente que estava cansada da vida monótona de Serenia.

            — Vovô... — a vozinha doce chamou, e ele foi obrigado a olhar em sua direção, embora ainda desviasse o olhar, fingindo não estar lhe dando a devida atenção. Quem sabe ela não percebesse essa indiferença e desistisse de tentar conversar com ele?

            — Sim — resmungou.

            — O que o senhor mais gosta de fazer?

            Aquilo o pegou de surpresa. Era uma pergunta que já não lhe faziam há muito tempo, até porque ninguém se importava com ele tanto assim.

            — Não sei... não tem muitas coisas que eu goste de fazer hoje em dia.

            — Ah, não é verdade! Todo mundo tem uma brincadeira preferida. Até os adultos.

            A verdade era que Aldo tinha uma "brincadeira" favorita. Claro que, com o passar do tempo, passara a ser mais que uma brincadeira e tornou-se uma verdadeira maldição, algo que não lhe dava chance de fuga, como um estigma, que cravava estacas em seu corpo, prendendo-o a uma cruz, um fardo: a maldade das pessoas. Mas, ainda assim, ele não conseguiria pensar em deleite maior.

            — Bem... — começou um pouco embaraçado, olhando finalmente para Lúcia — ...eu gosto de observar as nuvens...

            — O senhor vê desenhos nas nuvens? — perguntou, confusa.

            — Não. Eu vejo destinos.

            — Ih, não entendi nadinha!

            Claro que ela não iria entender. Ele precisava lhe mostrar.

            — Venha comigo...

            Aldo tencionava apenas acompanhá-la até o quintal da casa, mas não esperava que uma mãozinha pequena e macia se aconchegasse dentro da sua, procurando morada. Um sorriso em seu rostinho em formato de coração, que se refletia em seus curiosos olhos azuis, completava a cena, e ele quase se arrependeu de levar aquela conversa tão longe. Se lhe mostrasse suas nuvens, seria um caminho sem volta.

            Mas ela parecia tão feliz que não teria coragem de voltar atrás.

            Maldição!

            Então, segurando-a pela mão, Aldo levou Lúcia  até o quintal, onde fez com que ela se sentasse em um tronco de árvore. Ele, por sua vez, ficou em pé.

            — Fique olhando para o céu, tudo bem? — ele pediu, e Lúcia assentiu, obedecendo, mantendo a cabeça e os olhos erguidos em direção ao firmamento. — Hoje o céu está coberto por Stratocumulus...

            — Strato... o quê?

            — Stratocumulus — ele repetiu. — São essas nuvens baixas, que aparecem em grupo, como se estivessem grudadas uma na outra.

            — Annnn... — a menina proferiu, mostrando que estava entendendo. Ou fingindo.

            — Antes de essas nuvens se formarem, tinha uma muito maior que se dividiu, formando outras menores e mais claras...

            — Então é sinal que não vai chover? — supôs.

            — Não é bem isso — Aldo sentou-se ao lado de Lúcia, como se estivesse pronto para contar uma história. — Está vendo que elas estão se movimentando? — Ela fez que sim com a cabeça novamente. — Há muitas coisas que eu poderia dizer, somente levando em consideração esse movimento, a posição delas e a altura.

            — Não entendi.

            Era isso que Aldo temia. Se começasse a falar sobre a coisa que mais gostava, acabaria falando demais. Mas já tinha chegado até ali, então não poderia voltar atrás.

            — Eu consigo prever coisas que vão acontecer através dessas nuvens. Na vida real.

            — O senhor é um bruxo, vovô? — Lúcia arregalou os olhos, sem parecer assustada. Na verdade, parecia excitada com a possibilidade. E, daquela vez, Aldo não se segurou e riu.

            — Mais ou menos isso. Tem medo? — Ele até queria que ela dissesse que sentia medo e resolvesse se afastar um pouco, mas Lúcia parecia não ter medo de nada. O covarde ali era ele.

            — Não! Acho legal! — respondeu animada. — Continua, vovô... por favor. O que o senhor consegue ver com as nuvens que estão no céu agora? As Stratocouves?

            — Stratocumulus... — até mesmo Aldo gargalhou. Como não fazia há muito tempo. — Bem, eu consigo ver... Eu... — e Aldo se pegou vendo algo que não queria. Tinha a ver com Viviane.

            Aquelas nuvens significavam uma mistura de calmaria com a promessa de uma chuva tardia. Ele sentia que tinha a ver com Viviane, quase podia ver seu nome traçado naquele monte de algodão. Ela estava seguindo, naquele momento, em uma direção que parecia boa, que deixava seu coração alegre — mesmo que não soubesse disso —, mas que poderia lhe trazer graves consequências em um futuro próximo.

            — Eu... eu... — gaguejou — ...eu não quero falar mais sobre isso. Acho melhor entrarmos. Daqui a pouco sua mãe vai chegar e não vai gostar de me ver falando sobre isso com você.

            — Por quê? — Conforme Aldo se levantava, pronto para se afastar, Lúcia se mostrava mais indignada.

            — Porque ela não gosta dessa... brincadeira. Vamos, entre... não pode ficar ai sozinha!

            E ele quase se amaldiçoou quando viu os olhinhos se encherem d'água, totalmente decepcionados. Mas estava fazendo a coisa certa. Não deveria envolvê-la naquilo. O poder que possuía fora um carma para Viviane no passado, e não queria que Lúcia passasse pela mesma coisa. Era melhor que ela soubesse  o mínimo possível.

            Para seu próprio bem...

            E o dele também.

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