Mestiço

O meio orc despertou de seu sono graças a um leve gemido, ele logo sentiu uma forte dor na cabeça ao tentar se levantar o que o fez lembrar-se da festança da noite anterior. Porque merda eu fui beber tanto? Novamente ouviu o gemido vindo de sua direita e ao virar a cabeça viu o rosto adormecido de uma jovem garota humana que lhe trouxe a mente as memórias da festa particular em seus aposentos após a festa no salão do forte.

Bem, acho que isso explica um pouco.

Tentou se levantar apoiando a mão do lado esquerdo da cama e nesse momento sentiu algo macio e quente sob a palma de sua mão, olhando para baixo viu uma segunda jovem de longos cabelos loiros. E isso explica mais um pouco. Com um largo sorriso na face o meio orc Hurruc levantou-se de sua cama e deixou as grossas cobertas de pele caírem sobre os corpos nus das duas jovens humanas.

Ótima noite, devo repetir mais noites como essas.

Hurruc caminhou até uma cadeira onde uma camisa estava jogada e a vestiu. Era uma camisa de tecido grosso que deixava os músculos dos braços bem escondidos, as mangas iam até o pulso quase cobrindo metade das mãos. Em seguida calçou as botas enquanto admirava o relevo do corpo das duas garotas em sua cama.  É, eu preciso de mais noites assim. Sorrindo pegou sua espada de lâmina comprida e a ajeitou nas costas com a fivela do cinto passando em diagonal pelo seu peito. Em seguida pegou uma pequena faca e escondeu na bota e colocou mais dois punhais no cinto que estava colocando naquele momento para segurar suas calças.  

Sempre bom ter armas extras.

Uma coisa que o meio orc tinha certeza em sua vida era que armas nunca eram de mais. Nunca se sabia o que o esperava em cada dia e uma arma poderia salvar sua pele na maioria de seus problemas. O meio orc estava pronto para sair quando viu seu reflexo em um espelho no canto de seus aposentos. Era alto, quase dois metros de altura e tinha o corpo atlético com músculos bem trabalhados.  Mantinha seu cabelo amarrado em pequenas tranças que seguiam em varias linhas para a parte de trás da cabeça onde ficavam amarrados em um rabo de cavalo. Seu cabelo era negro e crespo. Um presente de meu pai. Hurruc possuía dentes afiados como o de um animal e seu rosto era retangular com sobrancelhas grossas e uma cicatriz abaixo da orelha esquerda que assim como a direita era levemente acentuada por uma ponta. Outros presentes de meu pai. Sua pele era um pouco esverdeada revelando seu sangue orc.

Satisfeito com seu reflexo, Hurruc saiu do quarto deixando as duas jovens dormindo. Ele seguiu por um longo corredor iluminado por dezenas de tochas. No final do corredor viu a silhueta de dois guardas humanos armados com alabardas, eles o saldaram com um movimento de cabeça e retornaram a seu serviço na vigilância. O sol começava a nascer e o frio nas Montanhas Cinzentas começava a amenizar, aquele clima era o maior inimigo do meio orc. Maldito frio, no oeste era um calor dos infernos e aqui é praticamente o oposto. Ele tinha deixado as Terras Desoladas como líder de um grupo de mercenários em busca de algum empregador para ganhar lucros. Nas Terras Desoladas o frio da noite era passageiro e o calor do dia começava cedo e durava até muito depois de escurecer, por isso esse inverno rigoroso nas montanhas o estava matando.

E é capaz de me matar mesmo.

O corredor pelo qual seguia deu lugar a um enorme salão onde dezenas de mesas estavam armadas e vários guardas tomavam o desjejum. Hurruc olhou em volta e avistando uma figura encapuzada sentada com um pequeno grupo de homens isolados dos demais, um dos homens o viu e fez sinal para os demais que começaram a se levantar.

Tão dedicados esses meus rapazes.

- A vontade, homens – Hurruc se encaminhou até eles e sentou de frente para a figura encapuzada. - A quanto tempo estão acordados?

- Pouco tempo, Hurruc – grunhiu Gromar Olhorubro, o segundo em comando dos mercenários de Hurruc. Gromar era o único orc que seguia o meio orc e costumava se esconder com o capuz para não chamar a atenção dos humanos. Hurruc percebeu que por de baixo do capuz e da capa o orc trajava uma armadura completa de placas de metal.

Como ele consegue ficar com isso o dia todo?

- Estamos encarregados de vigiar a torre leste hoje - lembrou Verme, um humano que seguia Hurruc desde as Terras Desoladas. Era um homem pequeno, vesgo de um olho e tendia a falar sem encarar as pessoas.

E esse detalhe de sua personalidade ainda me irrita um pouco.

Hurruc olhou em volta contando doze de seus mercenários ali. O resto deve estar dormindo pois não serão necessários para o serviço. Ele resolveu então se servir de um pedaço de carne seca e um pão, bebendo um copo de vinho para ajudar a descer.

- Senhor Hurruc, Senhor Hurruc - chamou um jovem rapaz magricelo correndo em direção ao meio orc.

Não posso nem começar a comer?

- Lorde Sazar pede a sua presença em seus aposentos.

Maldito velho. Hurruc grunhiu e virou o copo de vinho.

Bebendo um longo gole do vinho o meio orc se ergueu e com um suspiro fez sinal com a mão para que o jovem o guiasse. Vejamos logo o que querem de mim. Uma última olhada para trás fez com que visse seus homens o encarando, principalmente Gromar, seus olhos vermelhos brilhavam sob o capuz.

Eu sei, eu terei cuidado.

*

O jovem pajem guiou Hurruc até os aposentos de Sazar Vasder. Um grande herói de Glaera. Dependendo de que lado você estivesse na guerra. Dois guardas flanqueavam a entrada dos aposentos, os dois trajando armaduras completas com elmos de viseiras fechadas e segurando uma alabarda cada. O jovem se adiantou para abrir as pesadas portas do aposento revelando uma enorme sala mobilhada, a primeira coisa que entrou no campo de visão de Hurruc foi a enorme mesa retangular onde se encontrava um mapa mal desenhado das passagens nas Montanhas Cinzentas. Isso é tão útil quanto dinheiro Glaerico nas Terras Desoladas.  Ao lado da mesa estava uma estante recheada de livros velhos, mas muito bem conservados. O quarto era iluminado pela luz do sol que entrava por uma pequena janela em forma de arco. Era ao lado desta que se encontrava o grande general e guardião do herdeiro da linhagem dos Arghton, Sazar Vasder.

O maldito que nunca me da um descanso.

Era um homem alto e imponente com mais de quarenta anos, seu cabelo era arrumado e penteado para trás e se via com facilidade mechas brancas e cinzentas por toda a extensão de sua cabeleira. Um cavanhaque bem aparado marcava seu rosto desgastado pela preocupação de proteger uma das pessoas mais procurada dos últimos tempos.

Cada dia que o vejo parece mais velho e cansado, mas nunca perde essa presença militar que emana dele.

Os olhos azuis do general se moveram lentamente abandonando a paisagem que contemplava pela janela e indo se cravar em Hurruc, o meio orc devolveu o olhar. Respeitava aquele homem, tanto como guerreiro quanto como pessoa. Sazar não o encarava com nojo ou pena pela sua genética dividida, ele o olhava como olhava todos os outros sob seu comando. Os observava para saber se seriam úteis ou não, se seriam descartáveis ou não.

Será que já me tornei descartável?

- Como estão seus homens, comandante? – Sazar caminhou lentamente até a mesa onde estava o mapa e encarou Hurruc - eles estariam apitos a fazer uma viagem pelas montanhas?

Iria importa se eu dissesse que não?

- Estão descansados e prontos para fazer por merecer seus salários - respondeu Hurruc calmamente também indo em direção ao mapa.

- Que bom, que bom - Hurruc observou enquanto o general movia calmamente algumas peças sobre o mapa, as "peças" por assim dizer não passavam de pontas de flechas desgastadas - preciso que você entregue uma mensagem a nossa amiga Jaia.

Parece que vou me expor mais ainda a esse maldito frio.

- Machado Sangrento não esta em ativa no sopé das montanhas? - Hurruc questionou analisando onde uma flecha tingida de vermelho se encontrava.

Será uma longa marcha.

- Sim, mas eu preciso que ela volte para as montanhas por um tempo e é aí que você entra, a mensagem que você estará encarregado será de estrema importância para nossos futuros.

Espero que seja mesmo. Não quero descer das montanhas por nada.

Hurruc analisou o mapa tentando visualizar a melhor rota do forte até o sopé das montanhas, seria uma viagem de no mínimo dois dias se não encontrassem nenhum obstáculo pelos caminhos certos, precisaria arrumar roupas quentes para seus homens e um numero significativo de mantimento, um guia também seria muito bom.

- Um de nossos "amigos" irá guiar você e seus homens até ela - disse Sazar como se lesse a mente do meio orc.

Ele sabe como penso.

- Ele o encontrara quando você estiver pronto. Já o informei sobre o numero de homens que você possui, ele ira garantir os suprimentos necessários para a viajem. Alguma duvida sobre sua missão?

Tantas que nem sei por onde começar.

- Não senhor – respondeu o meio orc sem hesitar – mas se não me engano, alguns de meus homens ficariam encarregados de guardar a Torre Leste hoje.

- Leve todos os seus homens – Sazar disse observando o mapa carrancudamente – estamos em um momento muito critico de nossas vidas e não quero arriscar nada. Quanto a Torre Leste, irei escalar outro grupo para vigia-la, agora – Sazar apontou um pergaminho para Hurruc – aqui. Vamos. Pegue o pergaminho.

Hurruc estendeu a mão e pegou o pergaminho que Sazar tinha puxado de dentro de sua manga. Era um pedaço de couro de algum animal lacrado por um cordão negro. Aquele cordão fez o sangue do meio orc gelar, podia sentir a magia ali, algo maligno, provavelmente uma maldição caso fosse aberta pela pessoa errada. Quantos já morreram por suas curiosidades? Hurruc ainda se lembrava de seu primeiro encontro com os magos que serviam a Sazar, os quatro ficavam quase o dia todo protegendo o último Arghton, se revezando em duplas para que uma metade descansasse enquanto a outra vigiava.

A lembrança de Hurruc ainda estava fresca, tinha sido um mês após ter se juntado ao exercito exilado quando um grupo de desertores chegou até eles querendo se unir ao exercito jurando fidelidade ao "verdadeiro" rei de Glaera. Como se eu ligasse para quem reinasse em Glaera, pra mim tanto faz desde que eu seja pago. Quando o grupo foi levado a presença do "rei" eles se ajoelharam e fizeram as juras, mas no meio do juramento dois deles se ergueram e saltaram sobre o rei com punhais sacados de compartimentos escondidos de suas roupas. Os assassinos não chegaram a dez passos do rei. O primeiro desintegrou-se diante dos olhos de todos, um momento ele estava lá e no outro tinha virado areia soprada pelo vento.

Muito desagradável aquilo, até mesmo Gromar se enojou naquele dia.

O segundo não teve um destino tão rápido, foi suspenso no ar ficando a dois metros de altura do chão para em seguida entrar em combustão. O assassino se tornou um sol naquela noite, um pilar de chamas que iluminava toda a sala onde estavam.

Depois daquele dia Hurruc evitou ao máximo se encontrar com os magos. Toda vez que os via ele não conseguia deixar de ver a imagem do assassino sumindo em pleno ar e do outro sendo queimado vivo. Isso o fazia congelar, ele ainda ouvia os gritos do homem, gritos de medo, pavor, os gritos que imploravam pela morte mais do que pela vida e foi ali que soube até onde suas ações deveriam ir.

Até onde minhas ações podem me colocar em risco.

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