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Memórias de Papel

Suas pernas estão trêmulas e sua respiração está ofegante… Eu gosto. Gosto muito disso.

Solto-a e guardo minha pistola,olhando para Carmín e peço desculpas. Saio daquele refeitório com meu sangue borbulhando nas veias. Subo as escadas até os estúdios de dança e me sento no meu lugar preferido. Nas enormes janelas com vitrais italianos,no alto,logo abaixo,a turma da tarde ensaia seus passos de balé. Scarlett designou cada uma de suas pedras preciosas para diferentes funções,sem deixar de exaltar que cada uma de nós já somos belas e a beleza é a arma mais perigosa que existe. Existem as preciosas para ataques aos inimigos e excelentes nas linhas frontais,existem as sensuais para distração de nossos rivais,e,por último,as pedras do encanto,que são como se fossem cristais com refletores capazes de nos cegar com tanto brilho: as dançarinas. Elas dançam com leveza e delicadeza,atingindo com força os nossos olhos,nos prendendo aos seus passos enquanto as pedras do ataque fazem o resto do trabalho e as distrações seduzem nossos alvos com seus decotes e palavras que eles querem que sejam ditas. A euforia. Uma das melhores sensações que uma mulher pode causar em um homem.

Suspiro e retiro o coração de rubi do bolso da minha calça. Tantas coisas que perdi naquele maldito dia,mas,de alguma forma,o maldito presente daquela mulher e a única coisa que ainda me conecta ao meu passado,ainda está intacto.

Aperto-o em minhas mãos e fecho os olhos.

— Bora dançar,minha gente? — A líder das dançarinas adentra o estúdio com suas meias verdes, seu colant preto e sua máscara inseparável. Dizem que seu rosto é deformado e por isso ela o esconde. Amarra seus cabelos castanhos-escuros e ilumina o local com seus olhos claros,quase beirando o verde e o âmbar,uma loucura. — Estou animada hoje.

Esmeralda liga sua caixinha de música e logo estamos sendo embaladas ao som de quebra nozes.

Desvio o olhar das bailarinas e levo minhas mãos até o esconderijo nas paredes,retiro o tijolo e pego o pequeno caderninho com minhas confidências. Comecei a escrever assim que cheguei na Euforia e quando ainda estava em processo de me enquadrar nas diretrizes do lugar. Enquanto lutava contra minha dor,contra minha versão antiga,contra a menina com sentimentos,contra Sofia Martins. Abro o caderno e viro a folha para o primeiro relato elaborado como uma carta:

23 de Janeiro,2014

Querido “M”

Oi,Marcos. Você sabe que adoro me referir às pessoas,quando estou presa nos meus próprios pensamentos,com suas iniciais. Adoro iniciais. Gostaria de te chamá-lo com a inicial do seu sobrenome,mas não acho que tenhamos conversado o bastante para perguntar a você como seria seu nome completo na certidão de nascimento. Eu pareceria uma stalker. Mas tudo bem. Crianças são mesmo curiosas. Lembra de quando nos conhecemos? Você era o vizinho novo com um cachorro fofo e felpudo. Eu e minha irmã passamos horas a fio te observando pela janela do nosso quarto enquanto você ajudava seu tio a descarregar o caminhão de mudanças. Na primeira impressão,não fui com a sua cara. Você era aquele tipo de garoto loiro com cachinhos e olhos azuis,alto e com potencial para jogadores de basquete. O típico clichê dos romances e séries que minha irmã gosta de ler e assistir. Odeio romances e coisas melosas,Marcos. Curto terror e ação. Por isso não se admire que a gêmea errada tenha gostado primeiro de você,mesmo eu alertando que você parecia ser cinco anos mais velho que nós duas. Afinal,nós tínhamos 10 anos naquela época,e você tinha quantos? Uns 14 anos ou 15. Também não sei a data do seu aniversário.

Fiquei lá ao lado dela assistindo você andar de lado e outro,enquanto aquele cachorro te seguia para onde quer que fosse. Quando mais nova,pedi ao papai uma estrela do mar,porque gostava do Patrick do Bob Esponja,embora achasse aquele desenho bobo. O mais divertido para mim era saber que o Siri Cascudo onde a esponja trabalhava na verdade era uma armadilha para pegar siri,e seu chefe era um siri,e,o melhor amigo do Bob Esponja,a estrela do mar,na realidade se alimenta de esponjas. Meio louco e com tendência à psicopatia,né? Talvez seja um pouco mórbido,com diferença da minha irmã. Ela é extremamente doce. Recapitulando,papai nunca me deu uma estrela do mar,mas deu a Aga quando ela pediu,para mim,porque nosso pai fazia tudo o que ela pedia. Mas,um adendo aqui,Marcos,nunca tive inveja da minha irmã,mesmo quando ela disse para irmos na sua casa darmos um “oi” como bons vizinhos que éramos e que seu cachorro pulou nela de primeira,porque todos gostam dela. Ao contrário dela,seu querido cão me mordeu enquanto esticava meu pescoço pela janela da sua casa para ver sua sala,me esgueirando entre as roseiras que ladeavam o batente da porta. 

Você brincou me chamando de curiosa enquanto me pegou no colo e me levou ao seu banheiro para lavar o sangue da minha perna e desinfetar a marca dos dentes nela. Você disse que fui forte por não demonstrar expressão enquanto colocava o antisséptico na ferida e minha irmã,ao meu lado,só conseguia chorar. Achei a irmã malvada,você disse. Porque todos os gêmeos costumam ter o que é bom e o que é ruim. Eu  era a ruim. Comecei a gostar de você depois dali. Senti uma conexão urgente.

Dias se passaram e minha irmã perdeu o interesse em você,porque,toda vez que íamos te ver,jogávamos no seu videogame,e era somente aqueles jogos com zumbi e sangue. Ela não gostava disso,mas eu sim,eu era perfeita para você. Era o Bob Esponja do seu Patrick. Duas almas gêmeas serpenteando entre a diferença de idade. Naquela hora que senti meu estômago dar cambalhotas,desejei ter pelo menos  três anos a mais. Você insistia em me ver como uma garotinha raivosa,ainda mais quando começou a ir para a escola e trazer seus amigos com a mesma faixa etária para nossas tardes de caçada a zumbis. Odiava aquela sua amiga peituda,Débora,você não conseguia perceber porque era um garoto,e garoto são lerdos para perceber certas coisas,mas ela só queria te beijar. E foi por isso que comecei a te odiar por um tempo e paramos de nos falar,seus amigos te deram toques e passaram a deixar vocês dois sempre sozinhos no quarto, e Débora sempre me expulsava com o papo de vai brincar com suas bonecas. Nunca gostei de bonecas,Marcos. Me partiu o coração você apenas sorrir e falar para ela não falar assim comigo,com a sua irmãzinha. Não queria ser a sua irmãzinha. Não devia ter sorrido para mim daquele jeito quando limpava a mordida do seu cão na minha perna,mais antes tivesse me tratado mal e preferido minha irmã,assim não teria me apaixonado e visto da minha janela,pelas luzes do abajur do seu quarto,a noite que você começou a namorar ela. Assisti seus beijos na boca daquela garota que não era eu,com a mesma idade que a sua,e pude sentir as lágrimas pelo rosto quando você a rodopiou em meio ao quarto. Uma garota oxigenada com seios fartos. Era disso que você gostava,Marcos? Saí da janela não querendo assistir o resto. Eu te odeio. Senti uma enorme vontade de atravessar a rua e invadir o seu quarto e tirar aquela oxigenada a puxões de perto da boca que deveria ser minha… Mas nunca vai ser. Você só me via como uma irmã,não é,Marcos?

Paramos de nos falar e comecei a ficar mais enfurnada no quarto,rabiscando algo no meu caderno da Turma da Mônica,o caderno que comprei para te impressionar porque seu tio me contou que você gosta do desenho,e eu também,e gostei ainda mais quando vimos essa nossa semelhança. Eu sou perfeita para você. Minha irmã treinava seus passos de balé no quarto,já que papai estava aperreado com algumas contas e não pôde pagar suas aulas de balé com a Dona Desireé. Estávamos frustradas. Gêmeas compartilham do mesmo sentimento devido nossa ligação. Por isso não sentia inveja de Ágata,ela era a única por quem podia ter certeza que me amava.

Foi então que tudo piorou na minha vida. Papai tinha conhecido alguém na sua ida até o seu supermercado,uma mulher que precisou da sua ajuda com o pneu do seu carro,e horas mais tarde se tornou sua acompanhante em um jantar romântico. Papai sumiu de meu cotidiano,Ágata fez uma amiga na casa da direita ao lado,e eu fiquei sozinha em casa. Olhando para a sua. Tudo estava quieto lá. Acho que alguém também estava com saudade.

É aqui que a minha vida começa a se tornar um inferno,Marcos. E contarei tudo a você. Me encontre nas próximas cartas.

Até mais.

Com amor,

                                                                                                            Sofi.

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