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Capítulo 2: Templos que perduram os tempos

                                           2: Templos que perduram os tempos

         Conforme os dias passavam, a ferraria de Altruz trabalhava a todo vapor para o rei Madrolan, produzindo seus pequenos e intrincados broches com formatos de leões e falcões, e os escudos com belas gravuras feitas pelo próprio Perryk, que tinha mãos rápidas e firmes para esse tipo de trabalho.

            A cidade Yongard, e até mesmo o reino que era Mekkingard, estavam alheios ao que acontecia nas terras distantes, vizinhas ao reino, nos desertos de Sazzadrav. Quando a grama ficava mais curta e escassa, o solo tornava-se mais terroso, alaranjado, com seixos e pedrinhas pontudas aqui e ali, nunca atrapalhando a estrada sempre bem cuidada pelos viajantes, que ia para a cidade de Zimbrar, capital de Sazzadrav Maior. A cidade era governada por um jovem príncipe aventureiro e seu conselheiro, seu tio. O rapazera muitas vezes visto correndo pelas ruas e fazendo algumas travessuras, mas era tudo de bom coração, nada para prejudicar as pessoas que o seguiam e aprovavam suas decisões para melhorar suas vidas. O jovem era um mistério, muitas vezes indo e vindo e sumindo num piscar de olhos, e suspeitavam que ele tinha poderes mágicos. O tio tinha um interesse estranho em livros e lendas sobre os dragões também, tal como Perryk em Yongard, mas pouco se sabia do motivo para isso.

           E em Zimbrar agora se encontrava a caravana viajante que vinha à Yongard uma vez por ano, todos os anos. Nessa parada eles compravam e negociavam novas mercadorias da temporada, enquanto alguns de seus viajantes ficavam e outros subiam. Havia os que viajavam com a caravana apenas pelo simples prazer de ver o mundo, talvez ficando num lugar, ou saindo de outro, voltando para casa depois de ver o que havia para ser visto. Eram eles todos um grande grupo, de todas as partes do mundo, divididos em sessões que evidenciavam os lugares de onde cada um vinha: bandeiras, cores, sotaques, dialetos, e todo o resto.

            Um desses grupos era de estudiosos e arqueólogos viajantes, que buscavam descobrir os segredos dos antigos dragões em qualquer lugar que pudesse ter pistas. Vinham de três cidades diferentes, de três países diferentes, e todos com grande curiosidade e comprometimento com seu trabalho. Possuíam vários mapas, e um desses mapas mostrava um caminho para um dos antigos templos do culto dos Devotos do Princípio. Acreditava-se que o culto ainda existia, mas em lugares ocultos, e seus templos agora abandonados possuíam tesouros de estudos que mereciam ser preservados, longe das mãos de saqueadores. E o grupo tinha planos para encontrar a caravana em Yongard depois de checar o templo, pois a ida até o local levava cinco dias com tempo bom, e até a volta, a caravana estaria chegando ao fim da estadia na cidade do reino de Mekkingard.

            Depois de empacotarem os mantimentos necessários para a viagem de cinco dias (na melhor das hipóteses, seguindo os mapas), puseram-se a andar. Não notaram que um novo membro estava inserido na equipe, mas como nunca falava e ajudava quando precisavam, não faria diferença se não estivesse ali. Discreto como sempre fora, Nazariv não seria descoberto como forasteiro, sabendo que no grupo de arqueólogos haviam pessoas de um país que odiavam os nativos de Rukinfillir. Se soubessem quem ele era, teria problemas, e seu tio faria sua vida um inferno se por algum acaso ele arruinasse seus planos. E a última coisa que Nazariv queria era ouvir outro maldito sermão de duas horas, junto com um discurso que sempre vinha junto com aquela voz pastosa de orador profissional. “Por Yaharerg, se eu tiver de ouvir mais um único verso que seja daquele discurso chato daquele imbecil, eu arrancou minhas orelhas”, ele pensou, enquanto seguia o grupo na longa caminhada pela trilha que levava ao templo. Com cavalos e burrinhos carregando as sacolas, o grupo andou o primeiro dia até o anoitecer, e dormiram ao relento até pouco antes da aurora, e voltaram à marcha, dia após dia, conversando e discutindo o que havia naquelas terras aparentemente desoladas, ao que Nazariv dava pouca atenção.

            Em certo momento, o líder do grupo andou mais a frente montado em seu touro encouraçado, avaliando o mapa que carregava, junto com seu assistente.

– Acho que... – Dizia ele, avaliando mapa da melhor forma que podia sob o sol quente do meio-dia – Sim, mais dois dias, ao sul, e logo estaremos lá.

– E o que vamos encontrar lá? – Perguntou o assistente – O que temos que encontrar, de qualquer forma? Eu recebi um relatório sobre um outro grupo de arqueólogos com quem conversamos em Varghond, talvez não tenha nada por lá.

– Engano seu, jovem Farzan – Respondeu o líder do grupo – Eu tenho alguns outros documentos aqui, eles têm a descrição de uma sessão subterrânea que não foi encontrada antes.

            A conversa entre Farzan e o líder do grupo continuou, enquanto o resto do pessoal seguia pela trilha. Ninguém notou que Nazariv prestava muita atenção àquela conversa.

            Continuaram viajando, por outros dois dias, mudando sua rota para o sul conforme marchavam, e por vim, ao longe, viram a forma do templo se exibir cada vez mais próxima, as torres, os muros frontais, o que restava de um grande jardim agora como amontoados de grama, capim, flores selvagens e algumas árvores mirradas. Em Sazzadrav, que era diferente do deserto do Oriente, situado ao extremo central, aqui havia fontes e canais subterrâneos de água, ligados ao Canal Graffin, e, portanto, havia uma quantidade moderada de árvores e arbustos, aqui e ali, nunca aglomerados demais. Havia oásis também, mas eram distantes um do outro, e não era recomendável procurá-los a esmo pelo deserto. Então, quando a equipe de arqueólogos (e Nazariv) passavam pelos pátios internos, não estranharam a presença de vida vegetal onde não havia mais ninguém que não fossem animais ocasionais ou viajantes perdidos (era raro, mas acontecia).

            As portas frontais foram fáceis de se abrir: as dobradiças apesar de estarem enferrujadas, moveram as grandes tábuas de madeira para dentro, soltando farpas nos dedos desavisados e conseguindo reclamações altas de dor, enquanto o resto do grupo entrava e vasculhava e contemplava o local.

            As largas internas paredes eram cheias de gravuras, rachadas e parcialmente apagadas pelo tempo, algumas em alto relevo com pedaços faltando, e os arqueólogos as estudaram e anotaram com grande interesse. Estátuas, várias tapeçarias rasgadas e desbotadas, vitrais quebrados em tantos pontos que era difícil dizer o que mostravam, mas as paredes ainda possuíam suas histórias distinguíveis se prestassem atenção: mostravam o Coração de Fogo em imagens gloriosas e os doze dragões ao redor, voando como se fossem pássaros, a passagem dos anos e das eras conforme os séculos passavam, os deuses dragões iam se ausentando do mundo e deixavam a ordem das coisas para seus descendentes, os reis dragões, a descoberta dos humanos, a evolução dos draconitas, a traição de Azirov e o nascimento de Arkanish e o grande feitiço de luzes que baniu Azirov e seu mau crescente para o Além. As paredes também mostravam a última marcha dos dragões para se afastarem de todo o resto, levando consigo as bênçãos finais dos deuses dragões, além de outros eventos relacionados a Varghond, um reino muito mais distante, pacífico que, em toda sua história, só teve uma guerra registrada. O templo parecia ter sido popular centenas de anos atrás, quando as atividades do culto ainda eram numerosas entre aqueles que acreditavam no retorno dos dragões. Mas, os dragões que realmente ficaram entre os humanos, e vez ou outra, eram avistados nos céus, eram abertamente hostis e atacavam qualquer humano que se aproximasse. Se eram conscientes ou instintivos, movidos pelas necessidades básicas primárias de animais comuns, era discutível e inconclusivo.

            Muitos desses dragões hostis eram extremamente semelhantes, em aparência, cores, tamanho, e muitos caçadores e estudiosos tentavam entender como essa espécie, ou subespécie, de dragões, surgira. De onde viera, por que, ou se eram herdeiros de répteis tocados pela magia arcana de Arkanish, como vários outros animais que se tornaram algo a mais quando entraram em contato com aquele poder bruto. Qualquer que fosse o motivo, eles tinham uma relação violenta com os humanos e qualquer outra criatura.

            Enquanto todos os pesquisadores do grupo discutiam e debatiam sobre as gravuras, o chefe do grupo e seu assistente buscavam algo especificamente em uma das estátuas, observados de longe por Nazariv. Quando, então, Farzan apertou acidentalmente uma das garras da estátua de Nagrash, o deus dragão do metal, a estátua girou a cabeça para um lado, olhando ao centro do templo num ponto onde escadarias redondas começaram a surgir, descendo em caracol.

– Farzan, meu rapaz – O chefe bateu nas costas do assistente com grande alegria e entusiasmo – Você vai longe nesse trabalho! Vamos, vocês todos, acendam tochas e lanternas, vamos para baixo!

            E assim fizeram: alguns acenderam tochas, de hastes grossas e cabeças rombudas que se inflamaram com chamas alaranjadas, outros acenderam lanternas, velas dentro de armações de metal com vidro ricamente trabalhado para refletir a luz do fogo em um raio considerável. Nazariv seguiu o grupo silenciosamente com uma lanterna em uma das mãos, menor que as outras, e a outra mão agarrou firmemente um livro de magias que seu tio conseguiu para ele anos atrás.

            As escadas desciam, desciam, rodavam e desciam mais ainda sem parar, até que o grupo começou a sair num espaço enorme vasto sem aviso, esculpido e iluminado apenas pelas tochas e lanternas. Vaga-lumes voavam na escuridão da sala, e o grupo de arqueólogos se espalhou e checou até onde iam as paredes, descobrindo grandes prateleiras e estantes cheias de livros e mais livros, várias estátuas representando os doze dragões divinos em toda a sua glória, com muitas camadas de poeira e terra cobrindo sua superfície. Em certo ponto, descobriram que havia um canal de água subterrâneo mais ao norte da câmara, largo e fundo como um rio.

            O chefe do grupo mandou que todos vasculhassem aquele vasto salão como podiam, que limpassem estátuas e tirassem amostras de pedras delas, pequenas lascas sendo suficientes, e que recolhessem livros, amostras da água, coisas do tipo, e Nazariv apoiava sua lanterna num canto, um pouco afastado, e buscava no livro um feitiço que pudesse ser útil.

            Seu tio ordenara que matasse qualquer um para despistar, para o caso de surgir uma brecha onde poderia ser mais discreto e sumir sem deixar testemunhas. Quando foi forçado a se disfarçar e se ocultar da cabeça aos pés, tinha de ser discreto em dobro para se misturar à caravana, onde sempre havia algum indivíduo mais excêntrico e diferente, então, basicamente, ele era só mais um. Soube se disfarçar e se misturar muito bem, foi cauteloso com seus pertences e não permitiu que ninguém os tocasse. Seu bem mais precioso era esse livro de feitiços, repleto de imagens de uma antiga divindade obscura e maligna dos rukianos: Yaharerg. A entidade aparecia na forma de uma mulher, vestida em farrapos finos e esvoaçantes, com quatro braços cada um segurando um objeto em suas mãos de três dedos: uma vela derretida, uma coroa partida, uma faca enferrujada de lâmina dentada, e o crânio uma criança. A parte da aparência de Yaharerg que mais causava espanto em desavisados era a cabeça: no lugar de uma cabeça normal, acima do pescoço havia uma esfera com um único olho ao centro, quatro apêndices protuberantes e longos como antenas saindo da superfície da esfera como se imitando fios de cabelo, mas grossos como braços. Todos em Rukinfillir eram devotos de Yaharerg, e muitos povos os odiavam pelas várias acusações de atos e rituais medonhos e sombrios, mas poucos declaravam hostilidade aberta em ações por motivos desconhecidos.

            Se era possível dizer, Aggrive, Nazariv e Makrin eram os devotos mais fervorosos de Yaharerg, descobrindo feitiços que usavam e canalizavam os poderes da entidade.

            Diziam alguns historiadores e muita gente que inimizava com os nativos de Rukinfillir, que ela havia nascido num dia de grande escuridão, quando um único trovão atravessou o teto da casa a mãe da criança ainda não nascida morava e atingiu seu ventre com a força de uma explosão. A mãe delirou em febre e espasmos por todo o período de gestação e que seu ventre se abriu como uma porta quando o nascimento teve seu doloroso início: garras, os apêndices, a fumaça, e então, Yaharerg. As lendas contam que ela destruiu muitos sitiadores de Rukinfillir, concedendo poderes anormais aos que a adoraram como uma deusa, sob o custo de rituais e pactos. Seus fiéis, os rukianos, é claro, negavam e diziam que ela havia nascido de um parto virgem, quando um grande raio de luz atingiu uma mulher a beira da morte e lhe concedeu a chance de dar vida ao seu bebê ainda em seu ventre, como sinal de esperança.

            Um dos iniciados no culto de Yaharerg, obviamente, era Nazariv, e ele havia sacrificado algo quase hediondo à entidade para ter o direito de canalizar sua energia através daquele livro. E, enfim, achou um feitiço bom o bastante que faria um serviço limpo e não levantaria suspeitas de nada. Devagar ele murmurava as palavras no dialeto rukiano, ignorado pelo resto do grupo, até que o chefe notou o comportamento estranho e evasivo de Nazariv, mais ao canto.

– Ei! Você! Achou alguma coisa interessante? – Ele gritou para Nazariv, que o ignorou e continuou lendo o feitiço.

– O que é aquilo em cima dele?! – Farzan olhou para Nazariv, assustado, pois um medonho brilho esverdeado e doentio pairava acima dele, e o som de facas puxadas da bainha foi ouvido.

– Maldito porco rukiano! Se misturou ao nosso grupo! Aquela é a imagem da deusa profana daquela gente! Peguem-no! – Gritou um dos membros do grupo que tinham rixa com os rukianos.

            Não tiveram tempo. Nazariv se voltou para eles, e junto, virou a imagem sombria e maligna de Yaharerg na direção deles, que os olhava de forma assustadora com seu único olho. Os tentáculos atados na esfera que era a cabeça se moveram violentamente enquanto a luz verde aumentou de intensidade, e num clarão, todos desapareceram.

            Ou quase: o feitiço em si consistia em transformar a vítima (ou vítimas) no último objeto que tocaram, e numa rápida inspeção, Nazariv concluiu que todos haviam sido pegos: havia mais facas ao chão, alguns viraram estátuas, outros rochas, e havia os que se tornaram livros. Ele conferiu os artefatos um a um, e quando abria a capa, as palavras nas páginas (em um dialeto que Nazariv não entendia) desenhavam o rosto amedrontado das vítimas, expressões de pânico e surpresa eternizadas em papel e caracteres que não lhe interessavam. Largou ali os livros que antes eram pessoas, subiu as escadas e ativou novamente o dispositivo na estátua do deus dragão. Quando a passagem secreta sumiu, ele proferiu um novo feitiço, que explodiu a estátua e destruiu o dispositivo secreto, espalhando pedacinhos de pedra e pequenas engrenagens para todos os lados.

            Ao sair, pegou a guia do touro encouraçado do chefe, montou no animal e cavalgou na direção de Yongard. Quase seis ou sete dias de viagem estavam à sua espera, e a estrada para o castelo à sua frente.

            Não tinha tempo a perder.

                                                           ----

            Aos pés da fonte do castelo, em Yongard, Liriel estava sentada e olhava para o alto da grande estátua da família: o Leão dourado de Fogo e Ferro, símbolo divino de seu pai e sua linhagem, a casa de Lovedyge, a Virtude do Leão. Seu pai já se fora há dois dias em viagem, acompanhado de seus asisstentes e de dois enormes guerreiros que eram parte de um dos países envolvidos no conflito e onde precisavam dele e da diplomacia de um desconhecido. Quisera que ele pudesse mandar algum assistente de volta, pois ficar sob a constante vigia de Aggrive e Makrin era assustador. Podia jurar que, há segundos atrás, ela sentira um arrepio congelante seguido de um sussurro assustador ao pé do ouvido, uma risadinha sórdida e venenosa que a deixou com dores de estômago.

            Talvez a única coisa que a deixou de fato melhor foi olhar para o broche que seu pai encomendara para ela na ferraria do Distrito Cinzento. A jóia era realmente bonita, um trabalho de mestre, mas não fora feita pelo homem enorme de dois metros de altura e cabelo preto feito carvão que martelava vigorosamente os escudos, as espadas, e todo o resto. Nem pela sua filha, a garota musculosa que Liriel achara que fosse um garoto mal encarado e carrancudo. Não, a peça foi feita por outro residente daquela casa: um rapaz, alto, cuja cor do cabelo era difícil distinguir, pois parecia louro de perto, a distância parecia castanho e sob outro ângulo parecia ruivo. Pelo que ela vira na loja, quando foi na companhia do pai e alguns guardas, ele ia e vinha pelo estabelecimento com um animal grande, do tamanho de um gato, empoleirado em seu ombro, de aparência bizarra e quase assustadora, mas muito bem treinado e até mesmo carinhoso. Dissera que seu nome era Perryk, e o animal era Agrur, e o rapaz atendeu a todos muito bem e tinha um sorriso gentil sempre que conversava com o rei ou com os guardas, ou quando dava sugestões de equipamentos.

            Liriel também notara que seu pai se admirava com interesse pelas invenções do garoto, objetos intrincados de aparência complexa e que pareciam funcionar de uma forma fora do comum, e conforme o garoto contava o objetivo de um “cuco”, ela percebeu que ele era inteligente acima do comum para um rapaz da idade dele. Não que tivesse visto muitos rapazes na vida, mas mesmo assim ele parecia ser um em um milhão. E quem sabe não estava disponível...

            Estava cogitando sair de fininho e encontrar o rapaz, bolando um estranho e complicado plano para chamar a atenção de seu pai, quando ouviu passos se aproximando, junto com vozes. Eram Aggrive e Makrin, e ela não queria ser vista por aqueles dois nem sob ameaça, portanto decidiu se esconder o mais rápido que podia atrás de um arbusto denso de topiaria que decorava o jardim ao redor da fonte.

            As vozes se aproximaram até que foi capaz de ouvir a conversa, observando as formas de ambos através dos poucos buracos que o arbusto tinha.

– A caravana vai chegar em três dias, então? – Aggrive perguntou, sua ansiedade visível em sua postura.

– Precisamente, irmã – Makrin confirmou com um aceno de cabeça – E alguns dias depois dela, um grupo de arqueólogos, ou o que restou deles, onde Nazariv estará infiltrado como foi mandado. Eu creio que ele deva ter dado um fim nos pobres coitados... – Makrin riu de desdém, o veneno de sua voz – Bando de idiotas. Tentando encontrar os segredos dos ridículos deuses dragões. A era dos dragões acabou, os tolos ainda não sabem disso, mas buscam algum sinal dos idiotas cultistas do Princípio.

– Corajosos, devo admitir – Aggrive comentou, um respeito relutante na voz – Mas não nos servem de nada, logo vão desistir desse trabalho ingrato. Quando os templos de Yaharerg se expandirem para outras colônias de nosso povo, teremos mais influência.

– Um passo de cada vez, irmã, um passo de cada vez. Agora, diga-me: tudo pronto para o jantar de amanhã?

– Sim, mandei uma de minhas aias recolher as ervas que precisava, e já me livrei da mesma para não haver suspeitas de nada. Tente não comer nada do pernil de javaporco amanhã...

            Os dois partilharam uma risada medonha, e Liriel sentiu um arrepio gelado descer pela sua pele clara, enquanto Aggrive e Makrin continuavam a andar, saindo do jardim e indo para outro lado onde a menina não poderia vê-los. Ela demorou mais dez minutos antes de sair de seu esconderijo e correr para seu quarto em pânico. Pelos corredores, se forçou a andar moderadamente depressa para não levantar suspeitas de ninguém que carregasse a marca de sua madrasta nos uniformes.

            Lembrar-se desse detalhe lhe causava fortes náuseas, pois remetia a um dos pedidos de casamento que Aggrive fez a seu pai após a cerimônia. Ela “pediu”, num tom exigente, que metade da guarda do castelo fosse concedida a ela como parte de um pequeno corpo de segurança às suas ordens imediatas, em quem ela poderia confiar. “Não é nada pessoal, Madrolan, querido”, ela dissera, “eu quero ter certeza de que poderei ter autonomia caso o castelo seja sitiado e você seja necessário em outro canto”. Desde então, o estranho brasão na forma de um cão em cores azuis e brancas fora bordado em metade dos uniformes dos guardas do castelo, e Liriel nunca mais se sentiu segura. Sua relação com a madrasta sempre fora caótica. A mulher despedia seu tempo em atormentá-la com comentários depreciativos, na ausência de Madrolan, e na frente dele, sempre soltava sugestões passivas e humilhantes como “algum dia chegará a ser como eu”, ou “quem sabe não se torna tão boa quanto à mamãe na arte de cozinhar”, se referindo a si mesma. Ela odiava que Aggrive pensasse em si mesma como sua “mãe”, depois de ter obrigado os criados a sumirem com todas as pinturas e gravuras de Beriel, sua verdadeira mãe, que morrera quando a menina tinha apenas sete anos de idade. Uma solidão injusta para uma garota ser privada de uma mãe carinhosa, e no lugar dela, ter uma madrasta como Aggrive, que sempre exigia demais dos criados, não era boa com ninguém e desprezava qualquer demonstração de carinho de Madrolan.

            O único consolo que Liriel tinha era quando ficava sozinha com o pai, ou trancada no quarto e protegida da madrasta, segurando o pingente de safira que sua mãe lhe deixara antes de morrer. E Liriel teria chegado ao seu quarto para ficar na companhia de seu pingente, se não tivesse esbarrado em Aggrive no meio do caminho.

– Tome mais cuidado, sua pestinha mal educada – Aggrive ralhou com a menina enquanto desamassava seu vestido – Por que tanta pressa, garota?

– Eu estava indo pro meu quarto, não que isso seja da sua conta – Liriel retrucou e voltou a andar.

– É da minha conta, sou a rainha deste castelo – Aggrive a seguiu enquanto andavam pelo corredor, falando com autoridade – Pode me odiar o quanto quiser, menina, não vou a lugar nenhum por sua causa.

– Então por que está me seguindo? – Liriel respondeu e virou o rosto para trás para olhar a inimiga – Além disso, é bom que tenha enfatizado: do castelo, não do reino de Mekkingard. Você não tem, nem nunca demonstrou, a etiqueta de uma rainha legitima.

– Ora, garota tola, convenhamos: se eu não tivesse o requisito de esposa do governante, eu não estaria aqui, não acha?

– Eu acho – Liriel falou apressada, às portas de seu quarto – que meu pai mais queria uma concubina desleixada do que uma mulher decente. Daí, engoliu o que você tinha a oferecer – E bateu a porta na cara de Aggrive, conseguindo um rosnado furioso da madrasta, e ouviu os passos dela pelo corredor, se afastando pouco a pouco.

            A princesa trancou a porta, esperou as próprias pernas pararem de tremer, e correu se jogar em sua enorme cama, chorando um pouco enquanto sentia os poucos tremores restantes no corpo. Se odiava por ser tão covarde.Sempre que entrava em conflito, o corpo de Liriel sofria tremores de ansiedade violentos, uma resposta automática ao medo que sentia de brigas, combates, e coisas semelhantes. Vira seu pai em batalhas, simuladas, a uma distância segura, e achava que podia morrer a qualquer momento. E, sem que Madrolan soubesse, Aggrive mostrara a ela livros com gravuras de batalhas e matanças sem fim, num dia onde ela se dispusera a “educar” a menina sobre a história das guerras pós era dos reis dragões. Como resultado ela teve semanas de pesadelos envolvendo mortes, combates, coisas de pura violência, viscerais ao limite que uma mente infante poderia suportar. E a consequência daquilo a longo prazo foi a reação de seu corpo entrar em estado imediato de alerta e auto preservação sempre que era exposta a coisas do tipo, sentindo-se pronta para correr e fugir ou desmaiar devido ao excesso de adrenalina. E, se discutia mais do que devia com Aggrive, ela facilmente entrava em pânico e começava a correr, chorando copiosamente e sentido o estômago pronto para vomitar.

            A única coisa capaz de acalmar sua mente era o pingente de Beriel, que agora a garota segurava contra o peito e olhava para o teto, respirando fundo e tentando pensar em outra coisa. Seu plano, sim, seu plano. Usar Perryk para chamar a atenção do pai... Mas não poderia fazer isso se tivesse de comparecer ao jantar da noite seguinte, então como dar andamento?

            “A menos que eu não esteja presente...”, Liriel pensou enquanto um sorriso atrevido se desenhava em seu rosto delicado. Um plano ousado, de fato, era aquele. E não podia esperar nem mais um segundo, ou seria tarde demais.

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