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Capítulo 4: Força conquistada pela raiva

                                             4: Força conquistada pela raiva

         Aquela noite estava, decididamente, ficando cada vez pior e mais estranha a medida que passavam-se as horas escuras. Primeiro, Aggrive havia escutado uma barulheira esquisita vinda da cozinha, e ao chegar lá não encontrou ninguém que não fossem as cozinheiras, que disseram que havia pequenos ratos-escorpiões zanzando pelos armários e precisaram eliminar as pequenas pragas. Depois, ouviu correria pelos corredores, e alguns dos empregados disseram que viram os malditos ratos-escorpiões andando para os dormitórios, e que dariam um jeito neles em definitivo.

             “Bando de incompetentes idiotas, se essas pragas malditas continuarem a se proliferar nas ruas sujas daquela cidade infeliz eu juro que vou botar tudo a baixo! E quem reclamar vai sofrer igualmente!”, Aggrive rosnou para si mesma conferindo todos os corredores para ter certeza de que não haviam sinais daquelas pragas de ratos-escorpiões. As florestas ao redor de Yongard forneciam não apenas caça, mas também pequenas pragas, como insetos ou roedores. A maioria dos quais eram altamente venenosos, e não tanto ligavam para sujeira como outras criaturas pequeninas: quanto mais limpo um ambiente, mais fácil achavam para se locomover e encontrar comida. E Aggrive, desde que se mudara para o reino anos atrás, tinha total pavor daquelas criaturas rastejantes, e exigia que elas fossem eliminadas o mais rápido possível.

            Pensando em como aquelas aberrações selvagens eram tóxicas com seus ferrões, resolveu checar a princesinha irritante. “Seria conveniente para meu plano, é claro...”, ela refletiu pelos corredores, indo em direção ao quarto de Liriel, “mas francamente... Se ela acabar morrendo por algo tão trivial e patético, aquele idiota do Madrolan vai me matar, ele dá mais valor a essa pestinha do que a mim, não é o momento certo pra deixar aquela peste em tamanho grande morrer”. Às portas do quarto de Liriel, Aggrive abriu lentamente a porta usando sua chave mestra secreta sem fazer ruído. A luz que havia no quarto, fornecida por algumas velas, permitiu à esposa do rei avaliar o suntuoso quarto da afiliada: cheio de mobília, almofadas, bichos de pelúcia... E na cama, a forma do corpo pequeno da menina metido em baixo das cobertas, imóvel, como se deveria esperar de alguém dormindo e de costas para as portas. Com um dar de ombros, fechou a porta e trancou-a novamente. Se ela tivesse sido mais exigente em sua inspeção, teria descoberto o amontoado de bichos de pelúcia estrategicamente colocados para se parecem com Liriel, e se o tivesse descoberto, ela certamente teria gritado mais alto que um olifante, com força o bastante para rachar todas as vidraças do castelo.

            Agora, pretendia acordar seu irmão Makrin, para poder voltar aos planos que tinha com ele. Sentia-se impaciente, e a chegada de seu filho a deixava ansiosa e entusiasmada, pois finalmente seus planos estariam se movendo.

             “E quando aquele idiota do Madrolan chegar, não haverá mais um reino para ele!”, ela pensou, um sorriso mórbido em seu rosto se desenhando lentamente nas sombras.

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            Pela manhã, Perryk acordou num salto, o coração quase saindo pela boca. Teve um pesadelo, dos ruins, e a última coisa de que se lembrava era um estranho olho vindo em sua direção. A presença daquele olho medonho era algo cruel, que Perryk sentiu como se rasgasse sua pele e semeasse coisas ruins em sua carne. Ele se forçou a acordar, quando achava que seria pego finalmente. E, quando acordou, estava em sua cama. Em seu quarto.

            Como viera parar ali? Lembrava-se da noite passada, saíra para caminhar e decidiu observar as estrelas na velha torre abandonada, como sempre fazia. Levara seu caderno de anotações e desenhos que usava no momento... E ele estava ali, no criado mundo, junto com sua pena negra. O que mais acontecera? Sim, ele se lembrava de ter levado seu animal de estimação, o ratagarto Agrur. O animal sempre esteve com ele desde saíra daquele ovo estranho. Era um animal leal, inteligente, comportado e protetor. E, na noite passada, ele falara. “Impossível, eu devo ter ido pra cama depois da visita esquisita daquela forasteira...”, Perryk pensou, tentando colocar os pensamentos em sua cabeça no lugar. Até que a porta de seu quarto rangeu vagarosamente ao se abrir, e lá vinha Agrur. Carregando uma grande bandeja de café da manhã. Ele nunca fizera isso antes.

– Bom dia, garoto – Agrur disse enquanto colocava a grande bandeja numa mesinha que havia ali – Finalmente acordou. Achei que depois de bater sua cabeça ontem à noite você não acordaria por um tempo. Mas, ao menos você respirava.

– Você fala... – Foi tudo o que Perryk conseguiu dizer, enquanto observava seu bicho de estimação andar pelo quarto,

– Bem, sim, eu falo sim – Agrur deu de ombros, como se aquilo não fosse um grande feito – A gente aprende depois de alguns anos, sabe? Quando você saía e eu ficava por aqui, eu me metia a ler seus livros. Aprendi um bocado, você tem bom gosto de qualquer forma, seus estudos sobre os lordes e deuses dragões são interessantes.

– Você fala... – Ele repetiu estupidamente, sem poder acreditar.

– Sim, você já disse isso – Argru respondeu, se sentindo um pouco incomodado e tentando mudar de assunto – Foi difícil conseguir pegar tudo isso na cozinha sem que aquela lambisgóia da sua colega ruiva me visse. Ainda bem que eu aprendi um ou dois truques de malabarismo, e eu sou bem furtivo quando preciso. Enfim, eu recomendo que coma enquanto está quente: ovos, bacon, pão doce e cidra. Vai ajudar a recuperar o seu machucado na cabeça.

– Você fala...

– Eu sei, eu falo, será que pode não fazer um drama disso, por favor?

– Por que raios você não me falou isso? Não me contou antes?! – Perryk quase gritou de irritação. Não fora um sonho. Não fora nem um pesadelo. Seu bicho de estimação falava e tinha um comportamento humanoide e quase de mordomo.

– Você nunca perguntou antes – O ratagarto respondeu secamente.

– Mas que droga de resposta, hem? – O garoto reclamou, indignado com aquela informação – Como você me trouxe de volta pra casa? Eu tenho o dobro do seu tamanho.

– Mas você não tem a minha força, nem os meus poderes – Agrur respondeu simplesmente enquanto limpava as mãos devagar – Não vejo porque não deveria te explicar algumas coisas, então. Entenda, garoto – Ele se serviu de uma fatia de pão doce com fatias de bacon –, um ratagarto é um animal diferente. Há milênios e milênios atrás, segundo os assuntos escritos e descrições históricas nos seus livros, a minha espécie foi criada pelos príncipes draconitas estudiosos da alquimia. Queriam uma espécie de servo, ou ajudante, que servisse para vários propósitos e tudo o mais. Combinando a essência e o sangue de répteis que eram familiares dos dragões, com o sangue e a alma de certos roedores, e então combinaram com o cérebro de corvos. Somos uma espécie de quimera, por assim dizer, com várias habilidades e imbuídos de uma pequena quantidade de magia que nos serve muito bem em diversas ocasiões, nos dando poderes bem singulares.

– Eu sei disso – Perryk o interrompeu com impaciência – Eu li todos os meus livros mais de uma vez.

– Eu já estou chegando na parte onde eu falo sobre meus poderes, então tenha paciência – O ratagarto abocanhou seu pão com bacon e voltou a falar quando engoliu a comida – Nós nos desenvolvemos com o dobro da idade natural de todas as criaturas no mundo. Eu tenho aproximadamente quase trinta e cinco anos, e nesse tempo em que eu amadureci eu desenvolvi várias habilidades, como falar, andar com as minhas pernas e usar minhas mãos para agarrar e, eu andei tentando escrever durante essa noite.

– Mas não havia nenhum registro acerca dos ratagartos saberem falar.

– Eu sei disso. Os livros dizem que as conversas entre dragões e ratagartos eram quase num nível telepático. Mas, ainda assim, eu falo. Eu encontrei algumas pequenas lascas do meu ovo, e eu tive de comê-las. Isso me ajudou a avançar e me lembrar de muitas coisas, mas eu não achei tudo, não havia cascas suficientes então não deu muito certo. Você diria que isso é... “Incompleto”, minha memória hereditária está incompleta, pois se eu tivesse comido o ovo todo, eu teria falado com você mais cedo.

– Eu não sabia que precisava comer as cascas do seu ovo...

– Oh, não tem importância – Ele fez um gesto displicente com as mãos – Eu já me lembro do suficiente pra saber disso ou daquilo, como saber usar alguns dos meus poderes. Como por exemplo... – Agrur andou até uma gaveta de um cômodo, abriu-a e removeu de um compartimento secreto uma faca cinzenta e reluzente, o cabo coberto em couro macio – Isso aqui.

– Uma faca? Você sabe que o Altruz produz esse tipo de coisas, não é?

– O seu ceticismo é um pouco contraditório com o seu fervor em acreditar nos dragões – Agrur bufou de irritação – Eu forjei isso. Forjei usando os meus pêlos, você deveria ter percebido – E entregou a faca para o rapaz.

            Perryk pegou aquela bizarra faca com extremo cuidado. Olhando para a lâmina, de grossura moderada e fio de corte caprichosamente trabalhado, notou que a parte chata da lâmina possuía estranhos desenhos, riscos, confirmando que havia sido feita dos pêlos do animal. Ele lera a respeito em seus livros, mas não sabia como isso era feito, e não sabia como os pêlos podiam ser moldados assim. Sequer tinha certeza se era boa idéia confiar na durabilidade de uma arma tão estranha. Mas, era inegável, era uma bela e reluzente arma, a empunhadura era equilibrada e o peso era médio, uma arma mais para se defender do que atacar agressivamente.

            Aquilo tudo era informação demais para processar, era muita coisa acontecendo e o rapaz quase sentiu-se nauseado por tentar entender tudo de uma vez. Resolveu comer alguma coisa e fazer algumas perguntas para encaixar as peças no lugar.

– Você disse – Perryk falou enquanto mastigava pão com bacon – que comer a casca do seu ovo te faz lembrar-se das coisas... Como?

– Bem... – Agrur coçou o queixo peludo e escamoso antes de responder – É estranho. É como encaixar peças de um quebra-cabeça numa tela de pintura montando um quadro completo, sabe? Onde deveria haver algo, uma árvore ou pedra sendo jogada num lago, não há. E quando eu consumi algumas das cascas que achei, eu me lembrei, e consegui colocar a árvore e a pedra onde deveriam estar. Em seus livros, eu creio que isso seja chamado de memória ancestral ou coisa parecida.

– Se você tivesse comido todos os pedaços do seu ovo, de onde saiu, você se lembraria de mais coisas?

– Creio eu que sim. Eu acho que já te disse isso.

– De que tipo de coisas?

– Garoto... Como é que eu vou saber que coisas eu seria capaz de lembrar se eu não me lembro delas agora?

– É... Acho que você tem razão.

– Eu tenho razão, de fato. Mas eu sei de algumas coisas a seu respeito. Como, por exemplo, a sua força estranha e mudança de atitude conforme seu aniversário se aproxima.

– E o que você pode me dizer sobre isso?

– Primeiro de tudo: tem algo diferente em você. Não tenho certeza, mas eu li algumas coisas, raças de humanos das montanhas que possuíam grande força e comportamento agressivo. Deveria perguntar ao ferreiro sobre isso, ele talvez conheça seus pais.

– É provável... Eu sou o mais alto da cidade pra um cara da minha idade – Perryk refletiu um pouco – E sim, o Altruz conheceu meus pais, ele é meu tutor desde que sou pequeno e eles tiveram de me deixar com ele.

– Compreensível. Ele nunca te disse nada, não é?

– Não que eu me lembre.

– Curioso... – Agrur mexeu seus bigodes com velocidade, pensativo – A segunda coisa é que você vai ficar com um pavio muito curto nos próximos dias, até seu aniversário passar. Conforme mais irritado, mais forte. E isso vai escalar até um nível alto o bastante que, dependendo da situação, você seja capaz de matar alguém com um único soco. Então, é melhor tomar cuidado...

            Ambos ficaram em completo silêncio quando ouviram passos subindo pela escada. Agrur rapidamente pulou em seu poleiro e passou a mastigar rapidamente uma grande fatia de pão doce, e Perryk olhou para ele surpreso. A mudança foi quase instantânea, como se ele treinasse aquele nível de discrição todos os dias.

            No momento seguinte, Grivian abria a porta e olhava-o com certa irritação. Era sempre assim.

– Aquela forasteira maluca, de ontem à noite – A ruiva apontou para trás com o polegar – Ela tá aqui e quer falar com você.

– O quê? Por quê?

– E eu vou lá saber, molenga? Eu tô o dia todo desde que eu acordei trabalhando na forja o melhor que eu posso porque o papai tá acabado na cama depois da bebedeira de ontem à noite pra comemorar – Ela parecia cansada, levemente chateada com o pai. Grivian nunca se zangava com Altruz, ele era seu herói e ela o admirava com todas as suas forças. Mas ser forçada a trabalhar sozinha estava consumindo seu suposto bom humor – Eu vou precisar trocar de avental e pegar outras ferramentas, então mexe essa bunda daí e vai lá atender aquela estranha.

– Seu senso de prioridades é tocante, ruiva – Perryk suspirou, incomodado, mas começou a trocar de roupa ali mesmo.

– Tenha um pouco mais de decência! – Grivian falou alto, tapando o rosto com as mãos para evitar olhar o colega tirando a camiseta.

– Foi você quem veio entrando no meu quarto. Tenha você um pouco de decência.

– Argh, que seja! Apenas vá logo... – Ela se virava para sair, não sem antes lançar um cauteloso olhar para a comida no quarto de Perryk – Onde arrumou isso? Eu não vi você descer.

– Exato, você não viu – Perryk retrucou, pensando rápido numa resposta para tirar a atenção dela – Não tenho que te dar muita satisfação, sabe? E já te contei mais do que eu deveria...

– Que droga, Perryk! Vá pra baixo de uma vez! – E ela saiu, bufando e pisando duro enquanto ocultava o rosto em sua cabeleira ruiva.

            Ele suspirou, massageou as têmporas calmamente e voltou a trocar de roupa. Agrur parecia pensativo enquanto comia, e não fez nenhum comentário. Ainda dava a sensação de ser uma alucinação que o estranho animal pudesse falar, mas acontecera à luz do dia, e Perryk não estava sonhando.

            Dando de ombros, terminou de se vestir e saiu do quarto, descendo as escadas calmamente e pensando no que poderia querer a forasteira. E, quando finalmente chegou à oficina de forja de Altruz, com seu calor e fornos exalando vapor e fumaça, lá estava a forasteira: vestida como na noite passada, em roupas completamente negras e ocultando seu rosto, os olhos verdes expostos por uma nesga de tecido aberto em baixo de um capuz fundo, como uma máscara feita de ataduras. Até mesmo suas mãos estavam ocultas em luvas de tecido negro e fino, deixando-a com um extremo ar de mistério e até mesmo terror. Alguém cuja única visão exposta eram seus olhos com certeza tem algo a esconder, algo terrível, e Perryk sabia que ali havia alguma coisa errada.

            Ele a cumprimentou educadamente, que respondeu acenando a cabeça, e logo pôs-se a conversar.

– Você precisa de meus serviços, senhora...? – Ele perguntou cauteloso, sem saber o que esperar.

– Senhorita, por favor... – Liriel tentou ganhar tempo com aquela correção, tentando imaginar algum nome que lhe fizesse jus – Pode me chamar de Farandel.

– Tudo bem, então. O que a traz aqui, senhorita Farandel?

– Soube que você é um ótimo artesão, com jeito de ourives e talento para produzir e consertar coisas. Eu tenho um objeto que precisa de reparo.

– Oh, claro, tudo bem. Dê-me o... Objeto, e eu posso arrumar qualquer problema que ele tenha em menos de cinco horas.

– Na verdade não está aqui. É valioso demais pra eu levá-lo pelas ruas, nunca se sabe quem vai ter uma visão dele ou tentar afanar meus pertences.

– Um argumento justo... Então onde está?

– Em meu quarto, numa pousada que pude alugar. Se puder me acompanhar...

            Extremamente desconfiado, Perryk pediu alguns minutos para que pudesse buscar sua bolsa de ferramentas, em seu quarto. Quando lá chegou, confirmou que não fora um sonho ou alucinação: Agrur estava agora lendo um de seus livros, olhando as páginas atentamente, virando-as quando terminava de ler.

– Vai a algum lugar, rapaz? – Ele perguntou de lado, sua atenção exclusivamente no livro.

– Uma cliente misteriosa e tudo o mais... Ela me pediu pra fazer reparos nalguma coisa preciosa dela, alguma jóia muito cara e valiosa, ou algo do tipo.

– A forasteira de ontem à noite, suponho.

– Acertou em cheio.

– Não lhe parece suspeito nem nada?

– Parece, sim... – Perryk falou em voz baixa, suspirando, enquanto checava todos os itens em sua mochila e bolsa de ferramentas – Mas é melhor eu ir e não perder os clientes do Altruz.

– Já que insiste... Mas devo te alertar, tome cuidado com sua raiva. Na velocidade em que está evoluindo, vai ter a força de trinta homens em menos de cinco dias.

– O que é que pode acontecer pra me irritar a esse ponto? É só uma jóia bizarra que precisa de reparo. Enfim, comporte-se, e eu não consigo acreditar que eu estou falando isso pro meu bicho de estimação...

            Balançando a cabeça para si mesmo, Perryk desceu as escadas e foi para a oficina novamente. A estranha ainda estava lá, imóvel como uma estatua de tecido e mármore rosado da pouca pele do rosto que podia ver, os olhos como esmeraldas. “Farandel...”, Perryk meditou a respeito, “esse nome vem de um feudo bem longe de Mekkingard, talvez das terras ao Oeste de Ghanbangard, ou algo mais longe ainda que eu não conheça”. Talvez viesse de uma terra realmente distante de Mekkingard, e por quê uma viajante teria perdido seu tempo vindo até Mekkingard, à cidade central do reino, Yongard, apenas para visitar um pretenso artesão, isso era muito estranho.

            Mas, que mais poderia fazer? Se era uma cliente, então, poderia conseguir algum dinheiro. E se a tal jóia, ou seja lá o que fosse, era tão valiosa, o pagamento devia ser bom. “E além do mais, se ela precisa disso com urgência, é porque a jóia se quebrou quando estava pela cidade”, Perryk pensou, dando uma justificativa para a situação toda.

            Perryk seguiu a estranha Farandel, indo pelas ruas do Distrito Cinzento, até chegar à pousada onde ela estava hospedada. Não era nenhuma de que Perryk se lembrasse de ter recomendado, mas, pelo menos, tinha uma taverna embaixo da pousada, então era um bônus para ela. Quando entraram, havia pouco movimento, um ou dois clientes, em mesas distantes uma da outra, e Liriel pediu a Perryk que esperasse numa mesa enfiada num dos cantos do salão, a mais afastada possível e com uma bela cobertura. Dando de ombros, ele se sentou à mesa e esperou.

            A princesa correu pelas escadas para chegar ao seu quarto, apressada e ansiosa que estava para que seu plano funcionasse. Tudo estava indo bem até ali, e era surpreendente que o rapaz tivesse concordado com aquela idéia louca tão rapidamente. A primeira parte, a fácil de fazer, trazê-lo à pousada para poder convencê-lo a ajudá-la. Se não funcionasse, poderia recorrer ao uso das ervas tranqüilizantes que comprara na botica que achara naquela manhã, e agora pegava em seus pertences como último recurso, junto com seu broche e uma sacola de moedas. “Se não for pelo bolso, vai pela bebida...”, ela pensou, sorrindo de forma matreira enquanto punha suas coisas numa bolsinha e se dirigia novamente ao salão da taverna. O rapaz ainda estava lá, tamborilando os dedos no tampo da mesa e recusando educadamente uma caneca de cerveja que um dos bêbados no local lhe oferecia.

            Desceu as escadas, chamou a garçonete e fez um pedido rapidamente e enfatizou que queria urgência no preparo. Feito isso, ela voltou à mesa onde Perryk esperava pacientemente, lendo alguma coisa num caderno de notas que tirara de dentro de sua bolsa.

– Bem, lamento pela demora, senhor... – Liriel falou ao se sentar à mesa, ajeitando-se para ficar oculta o melhor que podia, mas sem precisar de muito esforço para tal devido ao lugar onde a mesa se encontrava.

– Não sou “senhor”, senhorita – Perryk corrigiu-a com um sorriso educado – Eu tenho apenas 17 anos, pode me tratar por “você”, se quiser.

– E quem seria você, exatamente? – Liriel achou divertida aquela atitude.

– Perryk, aprendiz indireto do ferreiro Altruz, o melhor ferreiro do Distrito Cinzento e, arrisco dizer, da cidade de Yongard e do reino de Mekkingard.

– Muito confiante, eu diria. Já vi os trabalhos dele em ocasiões passadas, são muito bem feitos. Já os seus, eu só ouvi falar.

– Já veio à Yongard antes?

– Por assim dizer...

– E de onde você é, exatamente?

– Vim da terra natal de minha mãe... – Liriel disse. E a resposta era parcialmente verdade: até onde a garota sabia, sua mãe Farandel (que era o nome falso que ela usava agora) vinha de terras distantes onde não havia exatamente um reino, mas um conjunto de clãs, e as terras por lá eram de um verde exuberante no verão, dourado no outono, o branco mais profundo no inverno e, então, as cores mais brilhantes na primavera. Ela sabia pouco, nem mesmo se lembrava do nome do país e dos territórios, mas constantemente o via em seus sonhos – Uma pena eu não ter um mapa, se não poderia te mostrar o local.

– Seriam as terras de Ghanbangard? – Perryk arriscou.

– Por que diz isso?

– Seu nome, Farandel, tem ares estrangeiros daquela terra. Pelo menos é o que eu ouvi dizer, especialmente em se tratando da rainha e da filha dela, a princesa Liriel.

            Ao ouvir seu nome, a princesa precisou se forçar a segurar o riso ou engolir em seco. Seu plano deveria tomar início depois que a comida viesse, pois, assim, não haveria ninguém que pudesse vir perturbá-los e ela poderia remover a cobertura do rosto.

            Tentou, então, mudar de assunto e passou a conversar um pouco com ele, para conhecê-lo melhor e tentar jogar com as cartas que tinha. Pouco a pouco, aprendeu mais sobre ele, e logo, a comida vinha na direção deles. Liriel tentou disfarçar (sem sucesso) seu estômago roncando, pois não comia bem desde a noite passada, acostumada que estava à fartura da mesa do castelo. “Tomara que estejam todos bem lá sob a tirania daquela megera”, ela refletiu, enquanto se servia cautelosamente de grandes nacos de carne suculenta, mal passada e feita com temperos locais. Antes que pudesse aplicar uma generosa mordida em sua refeição, notou o garoto a observá-la com um ar divertido no rosto.

– O que foi?

– Pretende comer usando esse véu no rosto?

– Ah... – A deixa de que precisava, enfim, se apresentou. Prontamente removeu a parte inferior do véu escuro que cobria seu rosto, e voltou a se concentrar na comida.

– Você me parece vagamente familiar... – Perryk comentou enquanto punha fatias de carne no pão temperado.

– “Vagamente familiar...”? – Liriel perguntou, sentindo uma pequena pontada de ultraje olhando seu interlocutor por cima do grande copo de cidra que tinha na mão.

– É... Se parece com a princesa Liriel, aqui do reino. Talvez ela tenha sangue do povo de sua terra natal.

Eu sou a princesa, seu idiota – Liriel chiou entre os dentes enquanto jogava na mesa o broche que ele mesmo fizera e lhe fora dado de presente – Eu sou a princesa Liriel Feskridt dos Passos de Fada, filha do Rei Madrolan Lovedyge da Virtude do Leão.

            Perryk olhou para o broche, reconhecendo a jóia finalmente, e olhou para a garota, que devagar expunha algumas porções de seu cabelo preto levemente ondulado devido ao calor da roupa preta. Realmente, não havia dúvida alguma sobre isso: deveria ter reconhecido a garota quando pôde observar seus olhos mais de perto na luz do dia, quando vira Liriel pela primeira vez, quando da visita do rei à oficina de Altruz, notara que os olhos dela tinham uma rara “coroa” de pingos dourados ao redor da pupila, dando aos olhos verdes um aspecto único. E, agora, ali estava ela, lhe lançando uma expressão mal humorada enquanto esperava que dissesse algo.

            Perryk ficava, no entendo, olhando dela para o broche, do broche para ela, num irritante ciclo de incredulidade e checagem, ao ponto de ele pegar uma faca posta na mesa e fazer um pequeno corte nas costas da mão direita, assustando a princesa que engoliu um grito de surpresa.

– Por que você fez isso? – Ela chiou um sussurro de apreensão.

– Não é um sonho... A princesa tá aqui, comigo, numa taverna relativamente limpa e segura, com comida temperada que ela sequer deve ter experimentado na vida chique dela, vestida como uma ladra noturna e quer que eu arrume uma jóia que sequer precisa de reparo... – Perryk disse num rompante de ansiedade, hiperventilando e assustando mais ainda a princesa.

– Acalme-se, seu idiota! – Liriel mandou, chiando seus sussurros irritados – Vai chamar atenção desse jeito, ninguém pode saber que eu estou aqui!

– E por que você está aqui, vossa alteza? – Ele retrucou, irritado com ela – Podia ter vindo com guardas até a loja do Altruz, ou me chamado ao castelo e eu teria ido. Além disso, alteza, a jóia nem mesmo apresenta um único defeito ou dano.

– É uma longa história, então pode por favor ficar calmo?

– Me conte, então – Ele respirou fundo para se acalmar. Aquela situação era por demais ridícula, até mesmo surreal, e considerando a manhã que tivera até ali, tudo parecia piorar a cada momento.

– O rei está de viagem, uma espécie de conferência diplomática e ele está agindo de juiz, você sabe – O rapaz concordou, e a princesa continuou falando baixo – A esposa dele é um inferno, tenta ser o arquétipo de mãe carinhosa e rainha benevolente, mas falha o tempo todo, ela é um horror, é maligna! O problema é que não é só isso, mas eu ouvi ela planejando destronar meu pai e dar um fim em mim.

– A rainha está planejando um golpe na coroa?

– Ela não é a rainha coisa nenhuma! – Liriel chiou mais uma vez um sussurro, agora realmente irritada – Ela é a esposa do rei, e nada além disso. A rainha morreu há muito tempo, e essa megera se casou com meu pai porque ele não tinha nada mais pra fazer!

– Tudo bem, calma... – Perryk levantou as mãos com as palmas voltadas para Liriel, um gesto de rendição – Se ela é tão má assim como diz, eu entendo que não goste dela... Mas um golpe na coroa pra tomar o reino? Como ela pretende fazer isso?

– Arrumar um casamento comigo e o filho ilegítimo dela que ela gerou antes de conhecer meu pai. O conselheiro, irmão dela, disse que ele viria depois da caravana viajante, daqui a dois dias. E você, você pode me ajudar.

– Hem? – Perryk estava assustado agora, não confuso.

– Você me ouviu, Perryk: você pode me ajudar a fazer com que o papai me dê ouvidos sobre a Aggrive. Eis o meu plano... – Sua voz foi diminuindo até sumir ao perceber que três pessoas diferentes entravam na taverna naquele momento. Guardas, do castelo, e quando se aproximaram da mesa ela viu num lampejo o emblema de Aggrive em seus uniformes. Rapidamente ocultou o rosto de novo e impediu Perryk de olhar na direção deles – Aqueles guardas são perigosos. São de confiança de Aggrive... Não podemos ficar aqui por muito tempo, vou chamar a garçonete e dizer que vamos para o meu quarto.

– Nós vamos?

– Vamos.

            Liriel se levantou, falou brevemente com a garçonete depois de segui-la por alguns segundos, depois arrastou Perryk para o andar de cima o mais discreta que pôde enquanto sentia sua pele suar frio. E Perryk, por sua vez, tentava não levantar suspeitas pela curiosidade de saber até onde aquela loucura iria. Não acreditava de todo na princesa, mas temia discordar de “vossa alteza” e acabar pagando caro por isso. E mesmo que houvesse um tom de urgência na voz dela, ele tinha de se certificar de que aquilo nada mais era do que uma birra contra a madrasta ou algo realmente sério.

            Pelo sim, pelo não, Perryk se viu forçado a cooperar com Liriel momentaneamente até ter as respostas que queria e uma brecha para sair dali. Seguiu a princesa de perto, tendo sua mão puxada para frente pela mão pequena dela, e sentiu que possuía ossos frágeis. Entrou no quarto com ela, aguardou sentado numa cadeira perto da porta, enquanto ela andava para frente e para trás, esperando o serviço da garçonete, que logo veio e os deixou com uma bandeja de comida refeita, mais porções de carne e, agora, além da garrafa de cidra, uma garrafa de vinho vermelho. Perryk torceu o nariz para o vinho, e Liriel ficou observando a bebida com uma expressão esquisita no rosto.

            Tomando a decisão que tinha de tomar para dar prosseguimento ao seu plano de proteção do reino, começou a remover toda aquela camada de roupa preta que vestia, ficando apenas com sua camiseta preta de seda e a calça justa, e agora não restava dúvida alguma ao rapaz: era mesmo a princesa Liriel Feskridt: das vezes que a vira, e foram muito poucas, notara como ela era pequena, o rosto de formato delicado e o cabelo preto e solto por cima dos ombros, a pele clara e de aparência sensível que seria capaz de deixar uma cicatriz em evidência por anos caso se machucasse. “Parece um pêssego...”, ele refletiu consigo mesmo enquanto comia um pouco de pão com carne e queijo semi-derretido.

            Ela se virou para ele e voltou a falar.

– Olha, eu sei que é difícil de acreditar, mas desde que Aggrive veio ao castelo, como esposa do meu pai, ela passou não apenas a atormentar a mim, mas a todos os funcionários. Ela “pediu” ao papai, mais como uma ordem velada do que qualquer coisa, que metade dos guardas e soldados do castelo tivessem de obedecer exclusivamente às ordens dela. Meu pai concordou com aquilo, vendo a lógica estranha dela como racional. Depois passou a me perseguir e meu pai não acredita em mim. Já tiveram brigas, mas nunca consegui provar que ela é má de fato.

– Tá, beleza... – Perryk falou enquanto comia – E aquela história sobre o golpe real? De ela tomar a coroa?

– Eu já ia chegar nessa parte. Eu estava sentada na fonte, olhando a água, e ouvi passos se aproximando, as vozes dela e do irmão odioso dela. Me escondi e ouvi a coisa toda, pretendem usar o jantar de hoje pra me envenenar ou coisa parecida, e eu fugi. Se não aceitar me casar com o filho dela, Aggrive vai fazer alguma coisa pra me tratar como traidora, e como meu pai a essa altura já deve estar na tal conferência diplomática de guerra, levaria semanas pra voltar.

– Pra onde ele foi? O rei, digo.

– Bravahrin, além do Oceano do Meio indo para as Terras de Neve dos reinos bárbaros.

– É... Isso é um problema... – Perryk coçou o queixo, tomou um gole de cidra e pensando na situação – Não acha que, se ele ficar sabendo do que aconteceu com você aqui, a partir dos funcionários do castelo que ainda são leais a ele, e por conseqüência, à você, ele não encontraria uma forma de voltar bem rápido?

– Duvido muito que ficasse sabendo. Quando Aggrive ou Makrin descobrirem que sumi, vão prender todos os funcionários do castelo que não disserem nada a meu respeito, arrisco dizer que vão matá-los. E podem fazer isso sem que ninguém de fora dos muros do castelo saiba. E até isso acontecer, Mekkingard pode se tornar um assentamento de Rukinfillir, o que causaria problemas com os dois reinos mais próximos.

– Sei, conheço as desavenças com os nativos daquelas terras... Mas me parece meio... Exagerado, sabe? Ela vai fazer tudo isso – Ele gesticulou as mãos de um jeito amplo – só pra poder tomar o reino e ficar com todas as riquezas? Arriscar perder a vida num futuro de longa data numa guerra por causa de cobiça?

– Ela já estaria longe, aproveitando o ouro, pode ter certeza.

– Certo, entendi... Então, ela é má e meticulosa. Conheço alguém assim, a Grivian.

– Quem é Grivian?

– A ruiva, filha do Altruz.

            Liriel se segurou para não sorrir ou dar uma risadinha. Notara que ambos, a filha do ferreiro e o rapaz não se davam muito bem, e ali Perryk fizera aquela piada ou tentando menosprezar a situação ou porque a garota não estava ali para se defender.

            Fosse o que fosse, ela tinha de se manter séria. Sentou-se na cama, suspirou fundo e olhou para ele.

– Mantenha o foco no meu problema, por favor. Eu dei algumas ordens pra um funcionário do castelo, um mordomo, que agora estará ausente dos serviços internos e vai ficar numa outra pousada. Quando você topar e aceitar meu acordo pro plano, eu vou enviar a ele uma mensagem, que vai enviar uma mensagem pro meu pai usando alguns cristais de comunicação que consegui. Foram caros, então vai valer a pena. Quando papai souber, vai voltar de imediato e vai ter que me ouvir!

– Primeiro de tudo, princesa – Perryk a interrompeu devagar – Não é quando, é se eu concordar, eu não sei que plano maluco é esse. Segundo: você não tem provas de que a sua madrasta está realmente planejando algo desse nível, roubar o reino enquanto o rei está longe e tudo mais, você só tem sua palavra, e isso não basta. Terceiro: que plano é esse que precisa especificamente de mim?

– Eu já ia chegar nessa parte... – Liriel respondeu, subitamente sentindo-se tímida como nunca antes, forçando-se a sussurrar qualquer coisa que Perryk não pôde ouvir.

– “Mento”? “Vidar”? Tá falando de quê? – Perryk já sentia o cheiro de problemas naquela história toda, pressentindo o que viria a seguir.

– Casamento... – A princesa teve de esconder o rosto – Fazer meu pai voltar porque eu engravidei de alguém que não é nem um príncipe nem um nobre...

            Um silêncio tenso correu pelo quarto. Liriel olhava para os próprios pés descalços, cogitando se devia tentar uma abordagem mais agressiva e decidida depois de ouvir aquela loucura saída da boca de uma princesa, enquanto Perryk olhava na direção dela, mas não via nada. Sua expressão teria sido cômica em outra situação: os olhos bem abertos, arregalados, o nariz mais aberto numa tentativa de respirar fundo e a boca encolhida e retorcida como se tivesse chupado um limão. Ele ainda lambeu os lábios um pouco, mordeu o lábio inferior, levantou o dedo indicador da mão direta, mas nada disse.

– Eu vou... – Ele começou a falar devagar como se tivesse acabado de acordar – Eu vou sair deste quarto, fingir que não ouvi nada disso, e talvez fugir de Mekkingard o mais rápido que eu puder porque eu não quero me envolver nessa loucura toda.

– Não, espera! – Liriel falou apressada.

– Eu agradeço pela refeição, agradeço pelo... “Curioso” convite que me faz, mas por forças maiores do que você, que são meu bom senso e minha racionalidade falando comigo, eu preciso mesmo recusar. Foi um prazer conhecê-la, princesa Liriel – E já ia até a porta, agarrando a maçaneta.

– Não é pra valer! – Ela agarrou seu braço esquerdo, sentindo o braço do rapaz totalmente tenso – Não a segunda parte, é claro, e há protocolos que garantem a separação sem acusações de transgressão! Além do mais, há um templo ao norte de Sazzadrav que faz casamentos pra gente da nossa idade! Dá pra contornar! Por favor não foge!

– Você acaso cogitou, princesa... – Perryk rosnou de súbito, virando-se devagar para Liriel – Ao menos pensou que havia um plano minimamente mais racional do que essa loucura toda que você pensou? – Os olhos do rapaz exibiam um brilho avermelhado estranho, a expressão de raiva em seu rosto teria assustado os guardas do castelo mais corajosos, e Liriel se sentiu frente a frente com um animal enfurecido – Eu poderia ter conseguido provas, você poderia ter procurado alguma espécie de investigador, um espião, ou qualquer coisa. Mas, não, você preferiu uma idéia absurda e estúpida que poderia ter me causado problemas sérios antes mesmo de você encontrar uma solução pra coisa toda.

            A cada passo na direção dela que Perryk dava, avançando, Liriel recuava e se sentia acuada, tendo a parede às costas e engatinhando pela cama para tentar se proteger, encolhendo-se. O rapaz colocou o pé direito na cama, sua bota de caminhada fazendo peso, apoiou o braço direito no joelho, e abaixou-se o suficiente para ficar cara a cara com a princesa.

– Você por acaso pensou nisso? Que eu poderia ter problemas MUITO sérios antes mesmo de você conseguir provar que era tudo falso e com o intuito de provar a culpa da sua madrasta idiota?

– Eu... Eu não sei...

– Exato, você não sabe. Eu sou só um artesão que aprendeu sozinho a fazer seu trabalho, eu produzo pequenas jóias, eu ensino crianças sobre história e leio aventuras fantásticas pra elas, cuido do meu tutor que me criou desde pequeno quando ele precisa de mim por perto. Mas se eu aceitar seguir esse seu plano idiota, posso acabar morto, Altruz pode ir preso por ter me criado, e Grivian, por mais que eu desgoste dela, pode se dar mal demais mesmo sem ter envolvimento algum com essa coisa toda. Você pensou nisso? Para uma princesa, você parece conhecer muito pouco dos protocolos reais de aprisionamento, acusação, julgamento e todo o resto.

– Sua idéia, de contratar um espião, ela parece bem melhor... – Liriel respondeu chorosa, escondendo boa parte do rosto e sentindo o maior medo de toda a sua vida. Nem mesmo os livros de guerras de Aggrive lhe causaram aquela sensação.

            Em resposta à princesa, Perryk se direcionou para a bandeja de comida, posta numa mesinha pela garçonete. Pegou primeiro uma das canecas, e resolveu testar sua força. Segundo Agrur, sua força era derivada da raiva, e agora, ele se sentia muito irritado, cansado que estava de Grivian abusar dele, agora a própria princesa lhe fazia pouco caso, querendo um casamento falso e uma gravidez falsa, tudo para chamar a atenção do rei. Tal situação era tão absurda que seu sangue fervia, a incapacidade da princesa de ter pensado em algo mais racional o deixava furioso, e segurando a caneca com as duas mãos, partiu-a em dois pedaços, com um sonoro plec de madeira se rompendo.

            A princesa emitiu um suspiro audível e profundo o suficiente para lhe causar uma crise de tosse. Como aquilo acontecera? Aquele rapaz magricela de mãos ágeis teve a força de um lutador para partir uma caneca de madeira sólida ao meio como se fosse um mero projeto de argila fina. E agora segurava uma faca nas mãos, que ele entortava sem exibir nenhum corte na palma da mão, até quebrar a lâmina. Como aquilo era possível?

– Você vê, princesa Liriel Fiskridt dos Passos de Fada, filha do Rei Madrolan Lovedyge da Virtude do Leão – Perryk falou em voz baixa, zombando da forma como ela se apresentara tamanha sua raiva – Eu não sou tão frágil assim. Imagine o estrago que eu faria no seu precioso pai caso ele ordenasse a prisão do Altruz e da Grivian, por terem relação comigo porque eu me envolvi com você num casamento ilegítimo e numa suposta relação amorosa com a princesa. Você tem idéia do risco que corre aqui? Agora? – Ela balançou a cabeça afirmativamente, com o medo a impedindo de falar – E eu nem posso sair na rua assim... – Ele olhou para as próprias mãos, levemente trêmulas. Olhou para a janela e pensou numa rota de fuga mais apropriada para o momento – Você que pague pela conta, princesa Liriel. A família real desceu no meu conceito, tudo graças a você – Ele tentou abrir a janela, um pouco emperrada, e empregou sua força absurda que tinha no momento, apenas para quebrar o vidro num estrondo medonho.

            Ambos se encolheram no quarto, com Perryk fechando forte seus olhos e respirando fundo, se concentrando em ouvir para se certificar de que não teria problemas. Mas teria, os funcionários na taverna ouviram aquilo e já começavam a se perguntar o que acontecera. Depois, passos, alguma conversa com os guardas que Liriel olhara com apreensão no salão.

– Aqueles guardas, princesa – Ele falou em voz baixa, tentando se acalmar – Por acaso estão a serviço de Aggrive? – Ela acenou um “sim” com a cabeça – Então junte as suas coisas, calce seus sapatos e se apresse.

– Aonde vamos? – Assustada com aquela ordem urgente, ela saiu de seu estupor de medo e começou a vestir seus sapatos leves.

– Pra qualquer lugar que seja longe daqui. Se vierem e eu estiver aqui, terei de responder perguntas ao dono da taverna e causar problemas pro Altruz. Se você estiver aqui sozinha, vai ter de responder perguntas não apenas ao dono da taverna furioso pela janela e caneca, mas aos guardas também, você vai entrar em pânico e logo todo o seu maldito plano cai por terra quando te arrastarem de volta ao castelo nas garras da sua madrasta. Melhor tirar você daqui e te mandar de volta pro castelo durante a noite do que garantir uma execução pra mim por casamento ilegítimo.

– Espera, o quê? – Liriel se assustou com aquela afirmação. “Me levar de volta? Pro castelo???”, pensava freneticamente enquanto juntava suas coisas.

– Você me ouviu, não posso te enfiar no meu quarto ou nalgum outro lugar, vão reconhecer a “forasteira de preto” e vão me fazer perguntas, e eu tenho uma certa reputação por aqui, conhecem meu rosto. E no momento eu não estou no melhor dos meus estados pra responder absolutamente nada.

– Não acha que está exagerando? – Ela perguntou, mas engoliu em seco quando ouviu os passos pelo corredor vindo na direção do quarto, as vozes dos guardas junto com a voz do proprietário.

            A princesa sentiu o rapaz lhe agarrar a cintura num movimento súbito com um forte aperto, guinchando de surpresa enquanto ele se dirigia a janela. Num lampejo de consciência, deixou uma bolsinha de dinheiro para cobrir as dívidas de tudo o que consumira e pelas coisas quebradas, e no momento seguinte sentia o vento chicotear seu rosto quando Perryk pulou pela janela segurando a garota como se fosse um saco de batatas nos ombros, e punha-se a correr pelas vielas e becos do Distrito Cinzento. Ela se controlou para não gritar, mas não pôde evitar de ficar dando soquinhos nas costas dele para externar sua indignação com aquele tratamento. Ela parou de imediato quando sentiu ele sacolejar seu corpo violentamente e deixou-a tonta.

            Liriel não podia ver para onde estavam indo, mas aparentemente ele conhecia um caminho para qualquer local que não fosse visto por muitas pessoas, indo depressa e velozmente. Ela podia, sim, ver o movimento nalgumas ruas quando havia brechas entre os prédios por trás dos becos onde passavam, e se Perryk arriscasse sair dos becos daquele jeito, teriam problemas. Ela sentia seus músculos tensos, mas ele parecia mais calmo, apenas com pressa.

            Finalmente, depois de uns bons quarenta minutos correndo e correndo sem parar, virando em zigue-zague pelos becos sem conta, evitando encontrar pessoas por acidente para não ter de dar explicações, Perryk baixou o corpo de Liriel devagar e deixou-a recuperar o fôlego e o equilíbrio. Estavam perto de uma enorme tábua de madeira, que o rapaz moveu para um lado e revelou uma “passagem secreta”. Quando conseguiu, a princesa entrou e esperou por Perryk sentada no degrau mais baixo da escadaria. Sua visão se perdeu um pouco olhando para cima, tonta como estava depois de ser levada por tanto tempo numa corrida frenética daquelas.

– Consegue andar? – Ele perguntou com voz baixa.

– Em alguns minutos... – Liriel respondeu, ofegante.

– Consegue subir pelo menos até o terceiro andar? Lá tem uma cama, apesar de velha e mofada, pode dormir lá um pouco.

– O que? Por quê? Vai sair?

– Volto nalguns minutos – E ele realmente saiu, sem dizer mais nada.

            Ela ficou sentada ali alguns minutos, checando seus pertences para se certificar de que nada ficara para trás. Por sorte, nada foi esquecido, mas agora seu dinheiro estava reduzido demais para seu gosto (não que ela estivesse sem nenhuma quantia muito grande, mas, para ela, perder uma grande bolsa pagando a coisa toda da pousada era quase um desperdício). “Talvez eu cobre alguma taxa dele... Irresponsável”, ela resmungou baixinho consigo mesma, sentido o corpo parcialmente dolorido pelo tratamento de saco de batatas que teve. Mas pôde se levantar e carregar seus poucos pertences até onde Perryk lhe dissera.

            Ali, no terceiro andar, parecia que houvera a um bom tempo uma modesta biblioteca, com os livros espalhados pelo chão e as páginas rasgadas aqui e acolá. Alguns escombros, cadáveres de insetos aqui e ali, que fizeram Liriel torcer o nariz de desgosto. A cama, por sua vez, tinha uma aparência ainda pior, mas era estranhamente bem cuidada... “Será que ele vem aqui com freqüência?”, pensou, alisando o colchão velho e levemente empoeirado.

            Pondo suas coisas devagar numa mesinha velha e embolorada perto da cama desarrumada, começou a se despir para deitar-se um pouco, até lhe ocorrer que não deveria dormir sem roupa num colchão daqueles, preferindo manter um camisolão de seda que trouxera. E agora, avaliando suas coisas, pensou que poderia se vingar do tratamento que recebeu de Perryk: ainda possuía as ervas tranqüilizantes, sua garrafa de água, e logo, já preparava sua pequena travessura. “Não vou deixar que ele me ameace como fez, se não quis me ajudar, e se não o fará, então posso dar um jeito nele”, ela pensou, enquanto chacoalhava sua garrafa de água já com as ervas esmigalhadas dentro da água. Ela o faria beber aquilo, e depois, sua pequena vingança. Agora, podia tirar um cochilo e relaxar o corpo, pena que não havia uma coberta com a qual poderia se cobrir e ficar um pouco mais aquecida. Aquele camisolão era confortável e elegante, mas péssimo para manter sua temperatura corporal, e aquele estranho prédio onde estavam tinha ventilação demais, parecia quase gelado em comparação com as ruas.

                                                           ----

            Perryk recolhia algumas coisas em casa, evitando falar com Grivian sempre que podia. Ela também não queria conversa, já que tinha de fazer todo o trabalho sozinha naquele dia, enquanto Altruz estava tomando o café da manhã tardio no quarto e se recuperava da bebedeira. Teve uma breve conversa com ele, para ver se estava tudo bem, e perguntou da melhor forma que conseguiu usando de discrição total se ele podia ouvir conversas vindas do quarto dele, enquanto Altruz estava dormindo.

– Garoto... – Altruz respondeu devagar, ainda zonzo, com um sorriso bobo no rosto enquanto comia os ovos mexidos – Eu construí esse prédio de forma adequada. Não há som que vá atrapalhar o sono dos outros enquanto estiverem em seus quartos. Nem que você arrumasse uma namorada eu seria capaz de ouvir a barulheira que viria.

– Você me conhece, eu não pretendo fazer nada tão vulgar assim enquanto estiver debaixo do seu teto, Altruz – Perryk assegurou com um sorriso envergonhado.

– Mas pretende fazer muitas coisas quando for dono de si mesmo, não é?

– Pode-se dizer que sim.

– Certo, garoto, certo – Altruz riu um pouco, gemeu sentindo a cabeça doer e voltou a comer.

            Perryk riu um pouco, e saiu do quarto dele. Depois, voltou ao seu quarto e checou todas as suas coisas que juntara para ficar escondido por uns dias no seu esconderijo. Agrur ainda estava lá, lendo, como se não houvesse saído do lugar ou se movido. Mas o livro, esse já era outro.

– Você parece realmente agitado, garoto – Agrur perguntou por cima do ombro, sem se virar, enquanto lia o livro – Os níveis de força em você oscilam feito um enxame de abelhas de fogo, dá pra sentir daqui. Aconteceu alguma coisa?

– Você vai me dar algum sermão chato de horas e horas? – Perryk perguntou enquanto fechava a porta para conversar com o ratagarto.

– Eu por acaso pareço seu pai pra te dizer algo do tipo? – Agrur virou-se e olhou o rapaz com ceticismo – Desembucha, Perryk: é grave?

– A princesa Liriel tentando me seduzir, me arrastar pra um casamento arranjado ilegal para o reino de Mekkingard usando os métodos de algum mercenário de Sazzadrav e me forçando a fugir com ela pra escapar de dar explicações pro dono de uma pousada por que arruinei uma caneca, uma faca e uma janela, e temendo que os guardas do castelo a serviço da “rainha má” que quer usar a princesa pra tomar o reino e roubar suas riquezas parece grave pra você? – Perryk respirou fundo alguns segundos depois de dizer tudo aquilo, apoiando o peso do corpo nas mãos que estavam escoradas nas coxas.

– Eu estou tentando digerir toda essa informação, mas parece surreal demais...

– Vindo de você, um bicho de estimação que fala, “surreal” parece quase piegas.

– Ponto pra você, garoto. Deixa eu recapitular, pra ver se eu entendi direito... A princesa, a princesa desse reino onde vivemos, que mora no castelo que é a capital de Mekkingard, aqui de Yongard, tentou seduzir você?

– Mais ou menos isso.

– Ainda é bem difícil de engolir isso, garoto... – Agrur balançou a cabeça e fechou o livro. Pulou do assento alto onde estava e começou a andar pelo quarto com as mãos nas costas – Pelo que entendi, a rainha quer tomar o reino, usando a princesa Liriel como veículo pra isso, certo?

– Precisamente.

– E ao que eu sei, até onde entendi, a princesa Liriel agora está escondida no Distrito Cinzento, depois de ter se encontrado com você e te feito uma oferta de... Casamento?

– Isso.

– E pra quê?

– Na cabeça dela, isso iria atiçar a atenção do rei Madrolan, o pai dela, e depois de enviar uma mensagem pra ele usando um cristal de comunicação, ele teria de vir às pressas.

– Não passou pela cabeça dela contratar alguém para matar a madrasta ou algo assim? Convenhamos, você não tem jeito de marido.

– E ela queria engravidar.

– Oh.

– É, “oh”.

– E o que vai fazer agora?

– Me esconder, junto com ela, até a poeira baixar e eu poder despachar ela de volta pro castelo.

– A acusação que ela fez contra a madrasta é muito séria... – Agrur balançou a cabeça pensativo – Talvez seja melhor dar uma chance e ver o que acontece. E eu vou com você, pra garantir que fique seguro.

– Tem certeza? – Perryk não estava nem preocupado de que Agrur pudesse se envolver mais do que já estava naquela bagunça: se sentiu agradecido pelo apoio.

– É claro, afinal, se eu não estiver por perto, quem vai cuidar de você?

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