Capítulo Três: A dor

Capítulo Três

A dor

— Eu não queria te arrumar problemas, Gui – murmurei, duas horas depois, enquanto encarávamos mais um engarrafamento na ponte.

Assim que saímos do apartamento, Guilherme me pusera dentro do carro, ligara a rádio e retornara. Ele me afastou da confusão e voltou sabe-se lá o porquê. Quase uma hora depois, estava de volta ao carro, o rosto fechado em uma carranca e mais algumas malas, demonstrando o quão duradoura seria sua estada na casa do pai. Talvez para sempre.

Eu sabia que, além de deixar a mãe dele em maus lençóis, isso complicaria a sua vida. A faculdade e o estágio dele eram no Rio e enfrentar as barcas ou os engarrafamentos todos os dias, nos horários que deveriam ser feitos, não seria fácil.

Claro, também tinha minha própria faculdade e o meu emprego. Mas poderia me desfazer do meu trabalho e procurar algo em Niterói, indo para o Rio para ter minhas aulas e voltando sem engarrafamentos para Niterói, onde trabalharia até a hora necessária.

Guilherme não teria a mesma facilidade. Ele tinha horários confusos na faculdade, matérias pela manhã e pela noite, dependendo do dia da semana. E quando não tinha aulas a noite, ficava até tarde no escritório. Precisava desse estágio para adquirir a experiência na área que queria – da qual não entendia nada, embora ele me explicasse e sempre me esforçava para entender.

Estava complicando a vida de todos apenas porque era covarde o suficiente para voltar à minha casa. Encarar aquela que chamara de mãe e que me dissera que eu fora um erro em sua vida.

Olhei pela janela, tentando manter meus pensamentos em ordem. Estava começando a escurecer quando saímos da Tijuca em direção à Ponte Rio-Niterói. Ainda admiramos parte do crepúsculo no inicio do engarrafamento, o estonteante espetáculo do sol de verão quase eterno que a cidade ostentava, virando avermelhado no além-mar. Não havíamos trocado uma palavra sequer até aquele momento.

— Sinto muito, Gui – murmurei novamente, olhando-o. Ele estava encarando a estrada à nossa frente em uma concentração forçada para não olhar em minha direção. – Não queria nada disso. Eu disse que não queria te arrumar problemas. Podia ter arrumado outro lugar pra ficar, você não...

Ele me cortou, a voz tão congelante que me fez estremecer:

— Não diga “não precisava ter saído de lá por mim” ou eu realmente vou ficar zangado com você.

Eu estava me saindo bem. Muito bem, na verdade, com as lágrimas. Mas, naquele momento, olhei para o encontro escuro entre o céu e o mar pela janela e deixei que uma escapasse. E depois a outra. Funguei, olhando pra cima, tentando controlá-las.

— Essa é a verdade, Gui – disse, com a voz afetada pela invasão emocional. – Nada disso era necessário. Eu ia conseguir me virar.

O carro estivera parado no último minuto e isso deu-lhe confiança suficiente para me olhar e me arriscar um sorriso desprovido de alegrias.

— Acho que nós tivemos uma conversa parecida ontem, não? – perguntou-me. – Nós somos um casal, Michelle. Se um tem um problema, esse também pertence ao outro e cruzamos isso juntos.

Não adiantaria discutir, mas ainda achava uma atitude precipitada. Poderia ter ido para a casa de seu pai sem ele e ficar lá com Mari sem problemas, e ele poderia continuar com a rotina dele. Mas a teimosia estava ali. A mesma da irmã.

— Ele nem sequer é meu pai de verdade – murmurou. – E se importa mais que ela.

Arregalei os olhos e prendi a respiração. Por uns momentos, havia esquecido que Guilherme não conhecera seu pai biológico. Dona Lara, também, não fazia questão de falar sobre ele. Não havia sequer uma foto.

O Senhor Silvério não poupava carinhos com Gui. Havia entrado na vida de Guilherme quando este ainda estava na barriga da mãe e o criara como o filho que nunca tivera. Registrara-o como próprio, porém nunca mentira. Disse-lhe que, talvez, um dia ele se perguntasse por que era tão diferente do pai e não queria que ele tivesse o choque que, bom, eu tivera. No fundo, esperava pelo dia que Gui ansiasse descobrir quem era o pai biológico, mas esse dia nunca veio. E nunca viria, na minha opinião. Com um pai como o Seu Silvério, ninguém precisaria de mais nada.

— Não fale assim, Gui – reclamei. – Ela só... Não gosta de mim. – ele riu, mas era a mais pura verdade. – Como que ela vai fazer agora? Era o Seu Silvério que pagava as contas, não?

Ele concordou com a cabeça, voltando a olhar para o caminho. Finalmente estávamos no pedágio.

— Ela vai dar um jeito. Pode voltar a trabalhar como gestora, você sabe. É só isso que ela sabe fazer: controlar a vida das pessoas.

Depois disso, resolvi ficar quieta. Nada que dissesse iria sequer amenizar o que ele estava sentindo. E eu não era a pessoa certa para julgá-lo, já que eu estava lidando com minhas próprias mágoas. Só não queria que aquilo estivesse acontecendo por minha culpa.

Ficamos em silêncio por mais um tempo, até passarmos pelo pedágio. Ele suspirou e relaxou os ombros, acelerando um pouco mais o carro,

— Vou pedir pra me aliviarem no trabalho no próximo semestre – declarou. – Aí eu me formo. Quando isso acontecer, Mi... – olhou-me

Sorri de lado e concordei com a cabeça. Milhões de conversas com esse teor aconteceram para que eu não tivesse dúvidas sobre o que estava falando.

A vontade desesperada que ele tinha de firmar seu compromisso comigo em um casamento tinha algumas vertentes muito fortes. Uma das principais era o ciúme e a necessidade que tinha de mostrar a todos que era com ele que eu estava, o que não era exatamente necessário, mas ele preferia assim. A segunda era a vontade de ser pai. Dona Lara vivia dizendo que eu engravidaria para mantê-lo, mas, naquele relacionamento, eu tinha muito menos vontade de ter um bebê que ele. Embora ele conseguisse me contagiar com sua fantasia, éramos sensatos o suficiente de não tentar nada até que realmente fosse a hora. Por último, simplesmente, porque Gui tinha que mostrar ao mundo que um casamento podia dar certo. E eu achava perfeito que tivesse tanta certeza sobre nós.

— Tudo está mudando tão rápido que eu quase não consigo acompanhar – confessei, olhando o mar pela janela do carro, onde passava meus dedos quase como se pudesse acariciar o vento lá fora – Ontem de manhã, eu estava apenas começando um dia normal. Aí me descobri adotada e fingi que estava tudo bem até...

Guilherme riu.

— Foi o “fingindo que está tudo bem” que caiu mais rápido – olhou pra mim com aquele sorriso impecável de quem sabia que me conhecia bem o suficiente para desvendar qualquer segredo que ainda pudesse guardar.

Dei de ombros, ainda olhando o mar. A ponte acabou e estávamos a caminho do apartamento onde Seu Silvério e Mariana moravam, bem à beira-mar. O percurso não demorou muito. Para nossa surpresa, Seu Silvério aguardava na porta do prédio com um sorriso imenso no rosto. Assim que Guilherme desceu do carro, ele o abraçou-o, dando-lhe tapinhas no ombro.

— Bem vindo, rapaz – saudou-o. – Não tenho certeza se a decisão foi acertada, de cabeça quente, mas bem vindo – seu olhar recaiu em mim e seu sorriso alargou-se um pouco mais. – E você, moça? Não vai dar um abraço no seu sogrão?

Era impossível não sorrir. Seu Silvério, assim como adorava Gui, tinha uma opinião bem diferente de sua ex-esposa sobre mim. Ele me adorava. Não sabia explicar, mas ele fora muito mais pai pra mim nos últimos anos, enquanto estava acompanhada de Gui ou Mariana, que meu pai fora durante toda minha vida.

Passei meus braços ao redor do corpo rechonchudo de meu sogro. Nós já havíamos dito que ele precisava de dietas e de cuidar do coração, mas a todos os nossos argumentos, era a mesma resposta. “Bobagem” ele dizia. “O dono de um restaurante tem que provar seus quitutes”.

Quitutes que lhe roubariam a vida qualquer dia desses. Mas isso era bobagem para ele.

— Obrigada – eu disse. De súbito, percebi que eu falara essa palavra muitas vezes nas últimas horas.

— Não por isso! – Praticamente urrou, com sua voz grave e forte. Eu, como sempre que ele fazia isso, encolhi-me um pouco, com uma risada presa na garganta.

Sem perceber, estava sorrindo.

— Eu não sabia o que fazer, pai – Gui murmurou, meio angustiado. – Se você ouvisse as coisas que ela estava dizendo, teria feito até pior.

Sacudiu as mãos no ar e pegou minha mala, enquanto Guilherme pegava alguma das coisas que trouxera. Peguei meu violão, abraçando-o e, assim, nós três encaminhamo-nos para os elevadores.

— Quando as mulheres começam a trocar injúrias umas contra as outras, nós nos afastamos sem tomar partido – disse.

Guilherme ia retrucar, mas fui eu que abri a boca:

— Não troquei injúria alguma – resmunguei.

Ele riu gostosamente e, naquele momento, o elevador abriu-se para nós. Entrei primeiro, como dizia a etiqueta que aquela família levava tão afinco. Seu Silvério entrou logo atrás de mim e Guilherme em seguida.

— Mariana não vem para casa hoje, vocês bem já devem saber disso – resmungou o aviso. Não gostava das maneiras de Mariana, mas não a impedia. Sexta-feira era religiosamente o dia dela sair e se divertir, não importava o que acontecesse. – Então Michelle pode ficar com o quarto dela até que possamos ajeitar o de visitas para ela amanhã. – Com a informação, Guilherme já estava com a boca aberta, pronto para retrucar – Nada de crianças fazendo crianças dentro da minha casa.

A carranca de Guilherme foi impagável. Eu, mesmo envergonhada, não evitei o riso.

O elevador parou e abriu as portas direto ao hall de entrada do apartamento. Seu Silvério comprara todo o andar e fizera-os construir um único apartamento com bastante infra-estrutura. Ou ostentação. Provavelmente a última opção, visto que o apartamento foi comprado na época da separação e ele queria mostrar que estava bem, coisa que nunca ficara.

Eu não sabia porque Seu Silvério e Dona Lara terminaram, mas ele ainda gostava bastante dela. Quando podia, perguntava para Guilherme sobre a ex-mulher e ficava muito feliz com as respostas sucintas dele. Qualquer coisa nova de Dona Lara era suficiente para lhe colocar um sorriso no rosto e fazê-lo ficar com um humor tão bom que Mariana aproveitava para tirar-lhe algumas notas e ir às compras, isso quando ela mesma não ia até a Tijuca apenas para levar boas notícias da mãe e pedir suas recompensas.

Entramos no apartamento claro e aconchegante. A sala era o primeiro cômodo; “para receber bem as visitas” como Seu Silvério dizia. A TV era tão grande que quase ocupava quase toda uma parece. Os sofás eram de tons leves, combinando. Mas, no canto da sala, destoando de todo o resto, estava um indiscreto pufe que só podia ser uma aquisição nova de Mariana. Rosa choque. Por mais que eu detestasse a cor, desejava sentar-me nele.

— Bom. Guilherme sabe onde é seu quarto e Michelle sabe onde é o de Mariana. Vou me deitar. – Seu Silvério disse, abandonando a mala em cima do sofá – Nada de me desobedecerem – olhou para Guilherme, que só sorriu inocentemente. – Boa noite.

— Boa noite – respondemos, ambos. Assim que ele sumiu pelo corredor que levava aos quartos, nós dois nos encaramos e caímos na gargalhada.

Guilherme deixou a mochila ao lado da que o padrasto abandonara e jogou-se no sofá, espreguiçando-se com vontade. Depois, olhou pra mim com um sorriso e chamou-me. Sorri, ainda sem muito humor, e caminhei até ele, deitando com minhas costas encostadas em seu peito, deixando que ele me abraçasse por trás e desse alguns beijinhos em meu pescoço.

— Vai dar tudo certo agora, está bem? – sussurrou na minha orelha, fazendo questão de arranhar minha bochecha com seu cavanhaque, como eu gostava.

Estranhamente, ao invés de sentir os mesmos calafrios na barriga, senti uma pontada bastante forte nas costas. Remexi-me, desconfortável e Gui se ajeitou no sofá, achando que a posição não devia estar agradável pra mim. Acabei deitada sobre o próprio sofá, o braço dele de encosto pra minha cabeça. Ele ficou de lado, a mão carinhosamente sobre a minha barriga.

O beijo foi inevitável. Minhas mãos foram aos seus ombros, ele apertava levemente minha cintura. A dor em minhas costas retornou e eu me remexi e encerrei o beijo, ganhando um olhar divertido dele.

— Okay – disse, o humor claro na voz. – Tudo bem, você não quer que ele nos pegue, certo?

Sorri, disfarçando a dor que estava indo e voltando. Encostei meus lábios nos seus mais uma vez, voltando a deitar a cabeça em seu braço.

— Acho que foi um dia longo – Murmurei. – Nós devíamos ir dormir.

Ele fez bico e seu olhar foi de encontro ao relógio da parede.

— Está tão cedo... – sussurrou, ao reparar que nem eram nove da noite. Antes que eu percebesse, seus lábios estavam em meu pescoço. – A gente bem que podia fazer alguma coisa antes de deitar.

A sugestão era tão explícita quanto o carinho insinuante na minha barriga que estremeci, deixando um sorriso arteiro chegar aos meus lábios, mas logo desapareceu com o barulho de uma batida de porta.

Sentei-me, olhando para o corredor onde Seu Silvério desaparecera, arrancando uma risada de Guilherme. Bati na barriga dele, fazendo-o rir mais ainda.

— Cala a boca, Gui – empurrei-o, levantando-me e recolhendo minha mala e meu violão para ir ao quarto de Mariana.

Guilherme levantou-se meio exasperado, segurando minha mão.

— Espera, Mi! – chamou. – Desculpa, vai? Foi engraçado!

Sua justificativa apenas me fez revirar os olhos. Sem encontrar o que dizer, dei-lhe língua.

Então, aconteceu a reação mais estranha que meu corpo tivera nos últimos dezenove anos: larguei tudo que havia pego até aquele momento, sentei-me derrotada sobre o sofá, apoiando os cotovelos sobre as minhas coxas e o rosto sobre as mãos. O choro foi apenas consequência.

Guilherme rapidamente ocupou o lugar ao meu lado e abraçou-me com força. Afundei meu rosto em sua blusa, molhando-a enquanto eu soluçava.

— Calma, Mi – pediu-me. Mesmo assim eu continuava chorando copiosamente. – Mi, meu amor, vai passar – continuou, passando os dedos pelos meus cachos disformes. – Eu sei que está tudo meio fora de lugar agora, mas eu prometo pra você que vou ajeitar tudo. Eu juro. Por favor, não chora.

Eu queria não chorar. Não mesmo. E, ao mesmo tempo que as palavras dele me confortaram, me mais deram vontade de chorar. Eu o amava demais, tanto que sua falta me doía. E tê-lo colocado em meio aquela confusão, vê-lo tão chateado e perdido quanto eu, estava me ferindo.

Horas depois, acordei no quarto de Mariana, devidamente coberta. O choro e toda a pressão deviater despertado o meu sono, e acabei apagando no abraço carinhoso de Guilherme, mas agora minha dor nas costas estava mais forte e dificilmente voltaria a dormir.

Levantei-me, bocejando. Resolvi tomar um banho em meio a madrugada e, caso isso não melhorasse minhas dores, tentaria me distrair com o violão até que o dia amanhecesse e tivesse alguém para me levar ao médico.

O banho pouco demorou e não resolveu meu problema. Depois de tentar várias roupas, a que menos irritou as costas foi um vestido preto que tinha cordas de amarrar atrás, deixando a parte dolorida com pouco contato com o pano, mesmo que ele não fosse pra dormir. Eu não dormiria mesmo.

Sentei-me sobre a cama e tentei tatear a área que me incomodava, sem muito sucesso. Estava doendo em dois pontos, na clavícula em ambos os lados. A dor estava aumentando e se expandindo para baixo pelas minhas costelas.

Respirei fundo, tentando ignorar. Levantei-me e olhei pela janela, encarando o mar à minha frente. Tinha uma vista linda do Rio de Janeiro, mesmo a noite. Subitamente, veio uma vontade de descer do prédio e sentar na areia, dedilhando meu violão enquanto admirava o mar. Sai do quarto em silêncio e dirigi-me à entrada. A chave estava pendurada ao lado da porta, então abri e sai em direção ao elevador.

Eram quase cinco da manhã quando sentei-me na areia. Se estivesse com sorte, o que podia apostar que não, veria um belo nascer do sol na hora que se aproximava. E, naquele canto de mundo, seria um espetáculo particular, já que não havia quase ninguém por perto.

Preferi ficar bem em frente ao prédio, caso alguém acordasse me procurando, poderia facilmente identificar minha silhueta pela janela. Isso significava que estava entre um casal muito contente aos beijos e um rapaz um bocado mais novo que eu, parecendo bastante reflexivo com sua touca tampando boa parte do cabelo loiro, alémde suas orelhas. Estranhamente, peguei-me olhando pra ele por mais tempo que deveria e não saberia gaguejar um motivo se me perguntassem.

Sacudi a cabeça e encarei o mar à minha frente, para então olhar dar uma olhada no violão e me distrair. Depois de uns dez minutos passando os dedos por suas cordas, a dor nas minhas costas foi forte o suficiente pra me curvar sobre ele e gemer.

O garoto loiro apareceu no meu campo de visão, ajoelhando-se à minha frente com a testa enrugada de preocupação. Com delicadeza, afastou meu cabelo do rosto. Quis dizer-lhe que estava tudo bem e que era só uma dor boba, mas quando levantei o olhar, minha voz ficou presa. Seus olhos verdes prenderam minha atenção e travaram minha garganta. Eram idênticos aos meus.

Era isso que ele queria ver quando afastou meus cabelos e me encarava, o olhar preso nos meus olhos, tal qual o meu nos dele, com uma assombrosa feição de admiração. Um sorriso se fez em seu rosto e pareceu respirar aliviado. A dor me veio mais uma vez e ele me segurou pelos ombros antes que me curvasse.

— Está acontecendo, não está? Está na hora? – perguntou-me, mas não sabia do que estava falando. Certamente devia ser algum louco. Era bem vestido demais, com seu jeans escuro e blusa vermelha, para ser mendigo ou trombadinha. Ou, talvez, ainda estivesse sonhando. – Está doendo muito?

Embora estivesse assustada com sua presença e com muita dor, havia algo nele que me fazia querer responder. Algo real. Algo mais real que todo o resto que já havia conhecido.

— Um pouco – respondi, embora fosse bem mais que um pouco. Ele sorriu, sabendo que eu estava mentindo. – Eu devo ter dormido de mau jeito ou algo do gênero.

Ele riu, abaixando a cabeça e quebrando nosso contato visual. O vento frio trouxe um pouco de luz do nascer do Sol e balançou os cabelos dourados que saiam por debaixo da toca do garoto à minha frente. Seu sorriso tinha algo de muito familiar, então me peguei comparando-o ao meu próprio.

Soaria muito louco se perguntasse a um desconhecido se ele tinha algum parente perdido? Uma irmã, talvez uma prima? Tenho certeza que sim, mas o teria feito se outra onda de dor não tivesse me atingido.

— Você não faz mesmo ideia do que está acontecendo, faz? – perguntou-me. Não fazia ideia do que ele estava falando. Era apens uma maldita dor nas costas. – Olha, você não vai querer que ninguém veja isso, então... Acho que você deveria ir ao mar.

Afastei-me dele, assustada. Agora tinha certeza que ele era louco.

— O... O que? – gaguejei, meio tonta pela dor.

O garoto revirou os olhos. Pegou meu violão, colocando o de lado. Com isso, segurou minha mão.

Suas mãos eram macias e ainda bastante infantis, mas além de tudo aquilo, havia algo diferente naquele contato. Algo que me fazia manter os olhos presos onde ele passava os dedos pela minha palma.

— Sei que tudo está confuso agora, mas logo vai se acertar – sussurrou. Sua voz pareceu mais clara e poderosa. De alguma forma, havia uma certeza plena no que dizia. – Se você for ao mar agora, a água salgada talvez amenize sua dor. Vou estar bem atrás de você, se você precisar.

Peguei-me concordando com a cabeça. Havia alguma lógica inegável no que dzia, embora não pudesse identificar o quê. Levantei-me e ele acompanhou meu movimento, levando meu violão com ele. Comecei a caminhar para a água e ele não me seguiu, apenas concordando com a cabeça em incentivo.

A onda pegou meu pé enquanto o sol começava a lançar sua primeira luz sobre aquela cidade. Entrei no mar, molhando minha roupa por um conselho dado por um desconhecido. Quando a água estava pouco acima da minha cintura, dobrei os joelhos e deixei que a água cobrisse meu corpo até o pescoço, entrando em contato com a área dolorida.

Como se houvessem cortes, senti queimar e, logo em seguida, uma dormência. Foi só por um momento. No segundo em que eu finalmente relaxei, a dor voltou tão forte que me fez arquear e levantar o corpo, sentindo a pele de minhas costas rasgando e a água se movimentando de forma estranha, balançando ao meu redor como se alguém estivesse remando atrás de mim.

A tontura me pegou e senti que ia desfalecer. No momento em que meus joelhos cederam, os braços do garoto da touca me envolveram, impedindo-me de me afogar.

Ele estivera bem atrás de mim. Assim como prometera.

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