Dezenas de enormes peças de carne a serem carregadas os esperavam no caminhão, umas em cima das outras. Genesis amarrou firme o avental grosso e branco antes de calçar as luvas para iniciar o trabalho. As botas pesadas vez ou outra o desestabilizava, deslizando no chão úmido do galpão. Henrik, ao seu lado, estalava os dedos, pronto para trabalhar.
— Quem precisa de academia quando se trabalha num açougue onde o chefe é um maldito que manda dois fazerem o trabalho de dez? — Resmungou Gen.— Ah, Gen. Levantar um peso extra é bom. — Riu Henrik, já descarregando a primeira peça e colocando-a por cima do ombro.— Parecem bois inteiros aí.Henrik já ofegava quando voltou, após pendurar a carne em um gancho. Genesis ainda estava parado, com a mão em uma das peças. — Cara, pega logo isso. Quando terminarmos, já podemos ir embora. Genesis encarou o irmão à sua frente; não era tão alto quando Gen, mas quase. Enquanto Genesis tinha cheios cabelos pretos, Henrik tinha fios dourados, delicados e curtos, olhos claros e pele queimada de sol, que se embranquecia a cada dia, pois ali não parecia existir sol. Genesis sempre tivera a pele clara, não condizendo com os habitantes de Sunfalls. Ali Aiden e ele se camuflavam, enquanto Henrik chamava atenção por sua pele dourada. Puxando a peça de carne, Genesis a levou até um gancho mais para dentro do galpão e voltou, pegando outra e mais outra.Em pouco mais de uma hora já haviam descarregado tudo, lavando com uma mangueira dentro do baú do caminhão para tirar os resquícios de carne e sangue e foram para o vestiário tirar as roupas sujas e úmidas. O vestiário parecia como qualquer parte daquele galpão, com azulejos e pisos brancos, divisões de concreto para um pouco de privacidade entre cada chuveiro e armários ligeiramente enferrujados. Gen despiu-se e deixou o avental em um carrinho de roupas sujas, para ser lavado ainda naquele dia, mas não por ele. Abriu o chuveiro e teve a má sorte de constatar que ele não esquentava. — Está gelado aí? — Perguntou Henrik, ofegando embaixo da água igualmente fria.— Sim, aí pelo jeito está também...— Não ligo, só quero tirar esse cheiro de carne crua de mim.Seguiam pelas ruas secundárias e becos em direção às suas casas. Henrik levava um embrulho pardo, um bom pedaço de carne. Dia sim e dia não a carne que sobrava era dividida entre os açougueiros para não ser deixada no galpão e estragar.
— Vou assar isso. Quer jantar lá em casa hoje? — Disse Henrik.— Não vai dar. O Aiden está meio mal, acho que está gripado. — Ah, entendo. A Lou deve estar brava comigo porque tive de fazer hora extra, e ela queria ter saído para fazer algo.— Ela podia ter ido fazer companhia ao Aiden. — Nem sei se ela foi, mas deve ter ido comer tempurá na Anmi ou ficou o dia todo vendo a cidade do topo do nosso prédio. São as coisas que ela gosta de fazer.Genesis comprimiu os lábios; andava preocupado com a melancolia latente de Louisa, com os sorrisos cada dia mais escassos e hábitos estranhos sendo adquiridos, como sentar-se perigosamente na amurada do prédio. — Vamos sair nesse fim de semana? — Sugeriu Gen, pensando em algum lugar legal. — Sim. Algum lugar em mente?— Não, mas podemos ver um. Sair e andar para ver o que terá de bom. — Combinado. Chegaram ao apartamento de Genesis e despediram-se. Henrik esperou Gen entrar e foi embora. Chegou em dez minutos e entrou apressado, pois a trégua que a chuva dera já havia acabado. Diferente do prédio de Genesis, aquele tinha um elevador normal e mais apartamentos por andar. Chegou ao seu andar e percebeu que as luzes estavam queimadas ainda. Pensava que, se quisesse ter luz ali, teria ele mesmo que trocar as lâmpadas. Destrancou a porta e entrou, vendo Louisa jogada em um sofá com uma perna por cima do braço dele e a outra caindo para fora dos assentos. Os cabelos cobriam seu rosto e ela ressonava tranquila, dormindo. Ele sentou ao lado de Louisa, tirando as madeixas claras do rosto dela. Louisa se mexeu e acordou, abrindo bem pouquinho os olhos azuis, fitando-o.— Oi. — Sorriu Henrik.— Comi sozinha na Anmi hoje. — Resmungou ela, sentando-se.— Trouxe para mim?— Não. — Eu tive que trabalhar hoje, mesmo. Se não precisasse você sabe que eu não iria. — Tá, tudo bem. — Vou fazer o jantar. Estou tão esfomeado que você não faz nem ideia.Henrik se levantou e foi para a cozinha. Louisa sentia-se bem ouvindo os barulhos familiares de Henrik cozinhando, mexendo nas panelas e pratos. As habilidades de Henrik na cozinha haviam aumentado e ele já fazia muitas coisas além de bolinhos e macarrão. Louisa esfregou os olhos, sonolenta. Recostou no sofá e ficou encarando o espaço vazio da estante onde deveria ter uma TV. Fazia falta quando ela já não tinha livros novos para ler ou qualquer outra coisa a fazer. Sentindo o cheiro bom de comida, Louisa sentiu o estômago roncando de fome. Não tinham mesa na cozinha, e comiam na mesa de centro, mas Louisa gostava. Olhando para as mãos, ela encarou as cicatrizes, sentindo falta da energia azul crepitando.A luz prateada do dia nublado entrava pelo buraco no telhado, de onde ainda pendiam telhas e lascas de madeira pontiagudas, bem no centro da sala. A parte de baixo da casa era feita de um único cômodo grande, escura e com paredes descascadas que um dia foram de um azul escuro penetrante, chão de madeira ressecada e riscada e janelas obstruídas com cortiça bege e velha. Mesas de escritório se apoiavam nas paredes, bambas e enfraquecidas pelo tempo. Uma cadeira de ferro com assento e encosto de tela estava empurrada a um canto, sozinha. Abaixo do buraco no teto, um tapete se desfazia pelo tempo, sujeira e água que se acumulava nele, desfiando e apodrecendo. O canto que um dia foi a cozinha não estava em melhores condições, tendo uma geladeira completamente enferrujada com a porta pendendo, onde uma família de ratos morava, um fogão no mesmo estado e os armários estavam no chão, quebrados. A escada de alvenaria estava inteira, com seu corrimão de ferro seguindo degrau por degrau para c
Lou apertou o xale com as mãos, fechando-o mais para não ser atingida diretamente pelo vento e garoa gélidos. Ela andava pela calçada prestando atenção nos sapatos vermelhos estilo Lolita que usava, evitando olhar para as outras pessoas e já se arrependendo de ter escolhido uma saia colegial vermelha com rendas para ir trabalhar, pois o vento enregelava suas coxas sem piedade. Talvez uma meia-calça grossa tivesse dado um jeito de bloquear o frio. Ao passar por um beco com um estranho grupo formando uma roda, Louisa apertou a bolsa por baixo do xale, involuntariamente. Os caras ali eram maltrapilhos e sujos, e sorriram demoniacamente quando a viram passar. Ela já não sentia aquela urgência de chegar logo em casa quando saía do trabalho tarde da noite, com medo de encontrar alguém que a fizesse mal em algum dos milhares de cantos escuros da cidade. Sabia que não seria ela a se dar mal numa ocasião dessas.O barulho da cidade – carros, ônibus, pessoas – a atordoava levemente,
O vento arrastava o lixo que se juntava nas sarjetas pelo caminho, levando-o para o meio da rua. Já era tarde da noite quando Aiden saiu de casa com um papel verde neon em mãos contendo apenas um endereço que, pelo que sabia, era uma rede de túneis abandonados. Faltava pouco para chegar ao local e a ansiedade falava bem alto, presente em cada batida de seu coração.Naquele mesmo dia atendeu uma menina na livraria, provavelmente a oriental mais bonita que ele já vira: cabelos longos, lisos e escuros como a noite, olhos estreitos e brilhantes emoldurados por sobrancelhas interrogativas e cílios grossos de maquiagem, lançando sombras nas maçãs do rosto quando ela abaixava a cabeça. Aiden observava atentamente quando ela entreabria os lábios ao ler as sinopses dos livros pelos quais se interessava, voltando a serrá-los quando se voltava a Aiden para que ele colocasse os livros escolhidos numa cesta igual às de mercado. Ela franzia a pele marfim do nariz de ângulos retos e delicado
Ela deu dois passos – o bastante para estar quase colada nele – e tocou os lábios dele com a ponta do polegar, engolindo em seco.— Sua boca se parece com a do Tom Hardy. Sim, vamos dançar.“Quem é Tom Hardy?” Aiden se perguntava, mas não o fez para Rani. Ele segurou a mão dela e a seguiu para fora do esconderijo, esgueirando-se por entre as dezenas de pessoas ali. Em um canto afastado deles alguém tocava em um aparelho de discotecagem que aparentava ser caro. Aiden não conseguia ver quem estava atrás, apenas o brilho de tinta neon nas roupas da pessoa.Quando estavam quase no meio de todos, Rani se virou para ele e iniciou uma dança graciosa, tímida no início. Conforme se aproximavam mais, Aiden colocou suas mãos na cintura dela e arriscou dançar como os outros caras dali dançavam, vendo que não era tão difícil assim, logo sincronizando seus movimentos aos dela. Rani ainda tinha em mãos o copo azul, tomando dele de vez em quando. A bebida já estava que
— Você quer me levar para a cama, é isso?— Não exatamente. Tinha em mente ir a um cinema ou algo assim. — Aiden sentiu seu rosto ficar rubro e agradeceu por Rani estar deitada em seu ombro, sem vê-lo.— À essa hora só tem cinemas de filmes adultos abertos.Aiden suspirou, cansado.— Eu te levo para sua casa. Onde você mora?— Minha casa é o mundo.Rani de repente ficou mais pesada, escorregando a cabeça do ombro dele. Aiden a segurou, passando um braço por trás dela e a deitou no degrau, desmaiada.— Ah, que ótimo...Havia acabado de conhecê-la e já tinha de lidar com esse tipo de situação. Não sabia nada sobre Rani, sequer sabia para onde levá-la naquele estado. Um desespero crescente brotou em seu peito e Aiden pensou em entrar e procurar o tal Taru, mas não podia deixá-la sozinha. Ele pegou o celular e discou o número de Genesis, mas ele não atendeu; deveria estar dormindo. Passou os dedos nos cabelos dela,
De dentro do escritório do Distrito Policial, Elya observava seus homens tentando conter a manifestação violenta que havia estourado na avenida em frente ao prédio. Os manifestantes jogavam pedras, pedaços de madeira e tudo o que encontravam pela frente que poderia ser arremessado nos policiais em formação na frente do Distrito, protegendo-o de invasões. Ainda chovia um pouco, apenas algumas gotas finas que embaçavam o prédio de vidro e escorriam por ele melancolicamente.Elya estava em um dos últimos andares do edifício alto, observando a cena se desenrolar como que protagonizada por formigas. Viu claramente quando um coquetel molotov fora arremessado na parede de policiais e estourou nos escudos transparentes, fazendo-os recuarem devido ao álcool que ardia em chamas aos seus pés. A multidão gritava coisas que ele não ouvia com clareza e, sinceramente, não queria saber o que gritavam. Ele alisava a longa trança castanha posta por sobre um ombro, distraído. Sentia a dor lat
— É agora, vou sair de verdade. Prometo.Adelwise estava parada em frente à porta havia quase uma hora, com a mão na maçaneta. Sua respiração secava a garganta e rasgava os pulmões de nervoso. Adel abaixou a cabeça e escondeu-se atrás dos cabelos curtos cor de laranja, cansada. Desesperava-se só de pensar em sair e ter de enfrentar dezenas de pessoas pelo caminho até a farmácia – à dois quarteirões dali. Queria apenas ficar em casa e pintar seus quadros com imagens de seus sonhos ou fazer mais almofadas, mas Anmi não estava disponível naquele dia e Adel precisava de algumas coisas urgentemente. Sentia-se extremamente mal por ter de depender tanto de Anmi, que tinha mil e uma coisas para fazer todos os dias e ainda achava tempo para ajudá-la com os problemas provenientes de seu dom.Adel sentia uma gota de suor escorrer por sua coluna e ser absorvida pelo cós da calça jeans, causando arrepios nela. Dali da porta ela já sentia seu dom entrando em ação, captando os sentimen
A fumaça que se desprendia do cigarro formava coisas estranhas no ar gelado. O inverno chegaria com força naquele ano, dando indícios disso já naquele momento; o frio deixava as ruas quase desertas, o vento cortava o que encontrava pela frente, uivando por entre os prédios e levando o lixo de Ghonargon consigo.Zya levou o cigarro à boca novamente, distraído enquanto olhava pela janela do andar de cima da casa quase em ruínas, observando a rua completamente vazia. Raramente via alguém passar por ali, um veículo ou outro a atravessava, mas nunca se demorava. O ar gélido congelava a pele por baixo da jaqueta escura com as mangas arregaçadas, deixando-a com um tom arroxeado de frio. Ele conseguia ver o reflexo da tatuagem em seu peito pela jaqueta aberta, como se fosse alguma cópia espectral sua refletida no vidro embaçado da janela. Estava escuro demais naquela noite e, embora Zya preferisse permanecer no breu, acendeu uma vela para iluminar o andar superior da pequena casa.