Lou apertou o xale com as mãos, fechando-o mais para não ser atingida diretamente pelo vento e garoa gélidos. Ela andava pela calçada prestando atenção nos sapatos vermelhos estilo Lolita que usava, evitando olhar para as outras pessoas e já se arrependendo de ter escolhido uma saia colegial vermelha com rendas para ir trabalhar, pois o vento enregelava suas coxas sem piedade. Talvez uma meia-calça grossa tivesse dado um jeito de bloquear o frio. Ao passar por um beco com um estranho grupo formando uma roda, Louisa apertou a bolsa por baixo do xale, involuntariamente. Os caras ali eram maltrapilhos e sujos, e sorriram demoniacamente quando a viram passar. Ela já não sentia aquela urgência de chegar logo em casa quando saía do trabalho tarde da noite, com medo de encontrar alguém que a fizesse mal em algum dos milhares de cantos escuros da cidade. Sabia que não seria ela a se dar mal numa ocasião dessas.
O barulho da cidade – carros, ônibus, pessoas – a atordoava levemente, fazendo-a ter de se concentrar em coisas aleatórias para não entrar em pânico, como encarar as rachaduras finas na calçada irregular e cinza. Louisa queria chegar ao metrô antes que a chuva engrossasse e a atrapalhasse demais, encharcando suas roupas ou deixando-a doente. Das dezenas de lojas pelas quais passou em seu caminho, Louisa se deteve diante de uma: um estúdio de tatuagem com uma placa que dizia estar aberto pendurada do lado de dentro da porta. Lou não conseguia ver dentro do lugar, pois uma cortina roxa e pesada estava fechada atrás da vitrine que exibia diversos tipos de piercings e alargadores. Louisa lembrou-se de que tinha dinheiro e poderia fazer alguma modificação, só esperava não precisar de autorização de alguém, afinal tinha apenas dezesseis anos. Ela levou a mão pequena até a maçaneta redonda da porta escura e a girou, entrando com cautela. A primeira coisa que notou da parte de dentro foi o chão, que mais parecia um enorme tabuleiro de xadrez e as dezenas de molduras com ideias para tatuagens que cobriam as paredes daquele pequenino corredor, que terminava em uma área mais ampla. Louisa andou hesitantemente até lá, absorvendo cada detalhe do estúdio; sofás vermelhos de couro de ambos os lados da sala, uma mesinha com revistas em um canto e um grande vaso de plantas em outro, um balcão com pequenas portas de saloon vermelhas no meio, que dividia o espaço dos tatuadores e a sala de espera. Do outro lado do balcão uma bancada preta em L forrava a metade inferior das paredes, com toda a sorte de materiais para desenhar em cima, luvas pretas de látex e uma impressora ao lado de um computador pequeno. Louisa se sentia um pouco deslocada ali, parada no meio da sala de espera. Uma mecha de cabelos claros caiu em seu rosto, separando-se do coque frouxo que ela havia feito. Mantinha os olhos bem abertos à procura de alguém que a atendesse, mordiscando os lábios sem maquiagem. Louisa pigarreou, esperando que alguém a ouvisse. Dos fundos do estúdio, um homem na faixa dos trinta anos apareceu, polindo um taco de baseball de aço. Louisa se assustou de início, mas logo se esqueceu disso, focando apenas no que queria fazer. O homem vestia roupas simples, camiseta lisa bege e calças jeans rasgadas. Seus olhos eram de um verde profundo que contrastava lindamente com a pele negra, emoldurados por sobrancelhas arqueadas e grossas. Louisa notou que ele tinha três argolas douradas no lábio inferior, mexendo a do meio com a ponta da língua por dentro da boca. Ele sorriu e passou as mãos na cabeça raspada, andando até a sala de espera. Passou pelas portas de saloon, que bateram, indo e voltando. Ele estendeu uma das mãos enluvadas para ela, recolhendo-a rapidamente para tirar a luva e limpando o talco dela na calça antes de estendê-la novamente. — Olá! Sou o Jamie, vai uma tattoo aí? — Disse ele, sorrindo. Louisa sorriu de volta e apertou levemente a mão macia dele, sentindo o cheiro de perfume masculino amadeirado tomar o ar à sua volta. Ela gostou do modo descontraído dele logo de cara, sentindo-se mais confiante.— Oi, sou Lou. Eu queria é um piercing, aqui. — Louisa respondeu, indicando abaixo do lábio inferior, no meio. — Já escolheu o tipo que quer? — Não, eu só entrei aqui e decidi que queria um, mas não tenho nenhum em mente. Jamie riu baixinho e a levou para trás do balcão, abrindo uma das várias gavetas da bancada e mostrando tudo o que tinha, cada coisa em seu próprio saquinho estéril. Louisa pegou um Spike, ponderando entre ele e uma argola comum prateada. — Vou querer este. — Louisa estendeu o spike para ele.Jamie pegou o saquinho com o piercing e indicou que Lou o seguisse para os fundos da loja. Ele abriu uma cortina que escondia um cômodo e pediu que Lou entrasse e se sentasse na maca encostada na parede nos fundos. Louisa subiu nela e deixou os pés penderem, balançando. Ela pôs-se a observar enquanto Jamie ajeitava tudo numa mesinha ao lado. Colocando luvas limpas, ele empunhou uma pinça grande em uma mão e a agulha que usaria para furar na outra, olhando Louisa com olhos semicerrados.— É seu primeiro furo?— Sim. — Louisa sentia as mãos pegajosas de suor.— Serei rápido, então. — Você não vai marcar onde vai furar? — Não preciso, sou bom nisso. — Respondeu Jamie, piscando um olho para ela.Jamie prensou com uma pinça – semelhante às de intervenções cirúrgicas – o centro do lábio inferior dela, puxando para que pudesse ver o interior do lábio. Louisa mantinha os olhos enormes bem abertos, fitando Jamie de perto. Ele ergueu o olhar para ela e riu, vendo o medo que exalava dela.— Pode fechar os olhos, se isso a fizer se sentir melhor. Louisa aceitou a ideia e cerrou os olhos bem apertados. Sentiu quando a dor aguda atravessou seu lábio, permanecendo ali por alguns instantes antes de dar lugar a uma queimação leve, um tênue calor. Uma última pontada de dor a fez estremecer e estava feito; Louisa tinha um piercing. — Pode abrir os olhos. — Ela ouviu Jamie dizer.Louisa os abriu e viu que Jamie estendia um espelho de mão para ela, que o pegou e ergueu ao rosto, fitando seu reflexo assustado nele. O Spike despontava do centro embaixo de seu lábio, apontando para frente como um espinho de prata. Louisa ergueu um dedo para tocar, mas Jamie a advertiu para que não o fizesse antes de lavar as mãos, que o tocasse apenas quando fosse lavar a perfuração. Ela percebeu que ainda estava agarrada ao xale fechado firmemente e o deixou escorregar pelos ombros, sentindo o ar frio do estúdio atingir sua pele por cima da blusa de mangas compridas. Jamie recolhia as coisas que usou na perfuração, colocando na autoclave a pinça e jogando o resto em um lixo especial. Louisa abriu a bolsa para pegar o dinheiro e pagá-lo quando fitou uma das molduras na parede ao lado com diversos desenhos tribais de chamas. A do meio se destacava mais, com uma pequena espiral no centro da chama. — Acho que farei mais uma coisa aqui. — Sorriu Louisa....Ela descia com calma as escadas úmidas da estação de metrô, estampando um sorriso sonhador no rosto. Por baixo do xale, tocava a pequena tatuagem tribal em sua garganta, que ainda latejava levemente, coberta com plástico PVC. Louisa se juntou às poucas pessoas ali na plataforma esperando pelo trem, tocando a parte interna do lábio com a ponta da língua. Já o sentia inchar e comprou uma garrafa de água bem gelada, tomando-a quando o calor ao redor do furo começava a incomodar. Depois de sair do estúdio, parou numa farmácia para comprar pomadas antissépticas e enxaguante bucal para a limpeza do piercing. Louisa estava em um estado de felicidade tão estranho e entorpecido que não teve tempo de sentir aquela costumeira pressão no peito, que a acometia todos os dias desde que havia parado de ligar para um número que não a atendia, de alguém que sumira no mundo como se jamais tivesse existido. Louisa via o farol do trem no final do túnel e caminhou mais para perto da beirada da plataforma, suspirando. Estava preparada para mais um dia de cão.O vento arrastava o lixo que se juntava nas sarjetas pelo caminho, levando-o para o meio da rua. Já era tarde da noite quando Aiden saiu de casa com um papel verde neon em mãos contendo apenas um endereço que, pelo que sabia, era uma rede de túneis abandonados. Faltava pouco para chegar ao local e a ansiedade falava bem alto, presente em cada batida de seu coração.Naquele mesmo dia atendeu uma menina na livraria, provavelmente a oriental mais bonita que ele já vira: cabelos longos, lisos e escuros como a noite, olhos estreitos e brilhantes emoldurados por sobrancelhas interrogativas e cílios grossos de maquiagem, lançando sombras nas maçãs do rosto quando ela abaixava a cabeça. Aiden observava atentamente quando ela entreabria os lábios ao ler as sinopses dos livros pelos quais se interessava, voltando a serrá-los quando se voltava a Aiden para que ele colocasse os livros escolhidos numa cesta igual às de mercado. Ela franzia a pele marfim do nariz de ângulos retos e delicado
Ela deu dois passos – o bastante para estar quase colada nele – e tocou os lábios dele com a ponta do polegar, engolindo em seco.— Sua boca se parece com a do Tom Hardy. Sim, vamos dançar.“Quem é Tom Hardy?” Aiden se perguntava, mas não o fez para Rani. Ele segurou a mão dela e a seguiu para fora do esconderijo, esgueirando-se por entre as dezenas de pessoas ali. Em um canto afastado deles alguém tocava em um aparelho de discotecagem que aparentava ser caro. Aiden não conseguia ver quem estava atrás, apenas o brilho de tinta neon nas roupas da pessoa.Quando estavam quase no meio de todos, Rani se virou para ele e iniciou uma dança graciosa, tímida no início. Conforme se aproximavam mais, Aiden colocou suas mãos na cintura dela e arriscou dançar como os outros caras dali dançavam, vendo que não era tão difícil assim, logo sincronizando seus movimentos aos dela. Rani ainda tinha em mãos o copo azul, tomando dele de vez em quando. A bebida já estava que
— Você quer me levar para a cama, é isso?— Não exatamente. Tinha em mente ir a um cinema ou algo assim. — Aiden sentiu seu rosto ficar rubro e agradeceu por Rani estar deitada em seu ombro, sem vê-lo.— À essa hora só tem cinemas de filmes adultos abertos.Aiden suspirou, cansado.— Eu te levo para sua casa. Onde você mora?— Minha casa é o mundo.Rani de repente ficou mais pesada, escorregando a cabeça do ombro dele. Aiden a segurou, passando um braço por trás dela e a deitou no degrau, desmaiada.— Ah, que ótimo...Havia acabado de conhecê-la e já tinha de lidar com esse tipo de situação. Não sabia nada sobre Rani, sequer sabia para onde levá-la naquele estado. Um desespero crescente brotou em seu peito e Aiden pensou em entrar e procurar o tal Taru, mas não podia deixá-la sozinha. Ele pegou o celular e discou o número de Genesis, mas ele não atendeu; deveria estar dormindo. Passou os dedos nos cabelos dela,
De dentro do escritório do Distrito Policial, Elya observava seus homens tentando conter a manifestação violenta que havia estourado na avenida em frente ao prédio. Os manifestantes jogavam pedras, pedaços de madeira e tudo o que encontravam pela frente que poderia ser arremessado nos policiais em formação na frente do Distrito, protegendo-o de invasões. Ainda chovia um pouco, apenas algumas gotas finas que embaçavam o prédio de vidro e escorriam por ele melancolicamente.Elya estava em um dos últimos andares do edifício alto, observando a cena se desenrolar como que protagonizada por formigas. Viu claramente quando um coquetel molotov fora arremessado na parede de policiais e estourou nos escudos transparentes, fazendo-os recuarem devido ao álcool que ardia em chamas aos seus pés. A multidão gritava coisas que ele não ouvia com clareza e, sinceramente, não queria saber o que gritavam. Ele alisava a longa trança castanha posta por sobre um ombro, distraído. Sentia a dor lat
— É agora, vou sair de verdade. Prometo.Adelwise estava parada em frente à porta havia quase uma hora, com a mão na maçaneta. Sua respiração secava a garganta e rasgava os pulmões de nervoso. Adel abaixou a cabeça e escondeu-se atrás dos cabelos curtos cor de laranja, cansada. Desesperava-se só de pensar em sair e ter de enfrentar dezenas de pessoas pelo caminho até a farmácia – à dois quarteirões dali. Queria apenas ficar em casa e pintar seus quadros com imagens de seus sonhos ou fazer mais almofadas, mas Anmi não estava disponível naquele dia e Adel precisava de algumas coisas urgentemente. Sentia-se extremamente mal por ter de depender tanto de Anmi, que tinha mil e uma coisas para fazer todos os dias e ainda achava tempo para ajudá-la com os problemas provenientes de seu dom.Adel sentia uma gota de suor escorrer por sua coluna e ser absorvida pelo cós da calça jeans, causando arrepios nela. Dali da porta ela já sentia seu dom entrando em ação, captando os sentimen
A fumaça que se desprendia do cigarro formava coisas estranhas no ar gelado. O inverno chegaria com força naquele ano, dando indícios disso já naquele momento; o frio deixava as ruas quase desertas, o vento cortava o que encontrava pela frente, uivando por entre os prédios e levando o lixo de Ghonargon consigo.Zya levou o cigarro à boca novamente, distraído enquanto olhava pela janela do andar de cima da casa quase em ruínas, observando a rua completamente vazia. Raramente via alguém passar por ali, um veículo ou outro a atravessava, mas nunca se demorava. O ar gélido congelava a pele por baixo da jaqueta escura com as mangas arregaçadas, deixando-a com um tom arroxeado de frio. Ele conseguia ver o reflexo da tatuagem em seu peito pela jaqueta aberta, como se fosse alguma cópia espectral sua refletida no vidro embaçado da janela. Estava escuro demais naquela noite e, embora Zya preferisse permanecer no breu, acendeu uma vela para iluminar o andar superior da pequena casa.
Anmi esperava ansiosamente, parada um pouco depois da entrada da estação de trem abandonada. Ghonargon tinha muitas linhas de metrô, o que fez os trens ficarem obsoletos rapidamente. Ela apertava o cachecol em volta do pescoço nervosamente, olhando para os lados, à espera. Odiava ter que esperar Aksu sozinha ali e se arrependeu de marcar um encontro com ele naquele lugar tão vazio e largado...O lugar onde ela estava serviu, havia alguns anos, como um tipo de estacionamento de locomotivas, estando largadas nas linhas e fora delas. Alguns vagões avulsos se erguiam como esqueletos de casas de metal aqui e ali com plantas crescendo dentro e fora. Uma pequena parcela deles já se encontrava totalmente laranja de ferrugem e o metal estalava quando ventava forte ali embaixo, fazendo Anmi se assustar toda vez.Entediada, ela se pôs a observar e “catalogar” em sua mente o que havia ali embaixo, começando pelo chão cheio de entulho e coisas como saquinhos de lanches e garraf
O corredor estreito e cheio de livros fazia Aiden ter de andar de lado para espanar a poeira deles, limpando um por um com um pano. Herta ficaria no balcão naquele dia, enquanto ele iria passar o dia nas prateleiras menos visitadas dos fundos da livraria. Vez ou outra Aiden tinha uma crise de espirros, pensando que acabaria expelindo o cérebro pelo nariz. O corredor onde estava tinha livros dos dois lados e uma escada de madeira no final, que levava ao sótão da loja onde guardavam mais livros e servia também como uma espécie de escritório de Herta. O chão do corredor era de madeira avermelhada e as estantes eram rústicas e grossas para aguentar o peso dos livros, havia duas lâmpadas de luz amarelada e centenas de exemplares de todo o tipo de literatura. Era um corredor curto e claustrofóbico, mas ele não se importava de ficar um tempo sozinho ali.Aiden limpava os livros de capa dura metodicamente; tirava todos do lugar e empilhava no chão, passava o pano na prateleira e