5. Chamas Tribais

Lou apertou o xale com as mãos, fechando-o mais para não ser atingida diretamente pelo vento e garoa gélidos. Ela andava pela calçada prestando atenção nos sapatos vermelhos estilo Lolita que usava, evitando olhar para as outras pessoas e já se arrependendo de ter escolhido uma saia colegial vermelha com rendas para ir trabalhar, pois o vento enregelava suas coxas sem piedade. Talvez uma meia-calça grossa tivesse dado um jeito de bloquear o frio. Ao passar por um beco com um estranho grupo formando uma roda, Louisa apertou a bolsa por baixo do xale, involuntariamente. Os caras ali eram maltrapilhos e sujos, e sorriram demoniacamente quando a viram passar. Ela já não sentia aquela urgência de chegar logo em casa quando saía do trabalho tarde da noite, com medo de encontrar alguém que a fizesse mal em algum dos milhares de cantos escuros da cidade. Sabia que não seria ela a se dar mal numa ocasião dessas. 

O barulho da cidade – carros, ônibus, pessoas – a atordoava levemente, fazendo-a ter de se concentrar em coisas aleatórias para não entrar em pânico, como encarar as rachaduras finas na calçada irregular e cinza. Louisa queria chegar ao metrô antes que a chuva engrossasse e a atrapalhasse demais, encharcando suas roupas ou deixando-a doente. 

Das dezenas de lojas pelas quais passou em seu caminho, Louisa se deteve diante de uma: um estúdio de tatuagem com uma placa que dizia estar aberto pendurada do lado de dentro da porta. Lou não conseguia ver dentro do lugar, pois uma cortina roxa e pesada estava fechada atrás da vitrine que exibia diversos tipos de piercings e alargadores. Louisa lembrou-se de que tinha dinheiro e poderia fazer alguma modificação, só esperava não precisar de autorização de alguém, afinal tinha apenas dezesseis anos. 

Ela levou a mão pequena até a maçaneta redonda da porta escura e a girou, entrando com cautela. A primeira coisa que notou da parte de dentro foi o chão, que mais parecia um enorme tabuleiro de xadrez e as dezenas de molduras com ideias para tatuagens que cobriam as paredes daquele pequenino corredor, que terminava em uma área mais ampla. Louisa andou hesitantemente até lá, absorvendo cada detalhe do estúdio; sofás vermelhos de couro de ambos os lados da sala, uma mesinha com revistas em um canto e um grande vaso de plantas em outro, um balcão com pequenas portas de saloon vermelhas no meio, que dividia o espaço dos tatuadores e a sala de espera. Do outro lado do balcão uma bancada preta em L forrava a metade inferior das paredes, com toda a sorte de materiais para desenhar em cima, luvas pretas de látex e uma impressora ao lado de um computador pequeno. Louisa se sentia um pouco deslocada ali, parada no meio da sala de espera. Uma mecha de cabelos claros caiu em seu rosto, separando-se do coque frouxo que ela havia feito. Mantinha os olhos bem abertos à procura de alguém que a atendesse, mordiscando os lábios sem maquiagem. Louisa pigarreou, esperando que alguém a ouvisse. 

Dos fundos do estúdio, um homem na faixa dos trinta anos apareceu, polindo um taco de baseball de aço. Louisa se assustou de início, mas logo se esqueceu disso, focando apenas no que queria fazer. 

O homem vestia roupas simples, camiseta lisa bege e calças jeans rasgadas. Seus olhos eram de um verde profundo que contrastava lindamente com a pele negra, emoldurados por sobrancelhas arqueadas e grossas. Louisa notou que ele tinha três argolas douradas no lábio inferior, mexendo a do meio com a ponta da língua por dentro da boca. Ele sorriu e passou as mãos na cabeça raspada, andando até a sala de espera. Passou pelas portas de saloon, que bateram, indo e voltando. Ele estendeu uma das mãos enluvadas para ela, recolhendo-a rapidamente para tirar a luva e limpando o talco dela na calça antes de estendê-la novamente. 

— Olá! Sou o Jamie, vai uma tattoo aí? — Disse ele, sorrindo. 

Louisa sorriu de volta e apertou levemente a mão macia dele, sentindo o cheiro de perfume masculino amadeirado tomar o ar à sua volta. Ela gostou do modo descontraído dele logo de cara, sentindo-se mais confiante.

— Oi, sou Lou. Eu queria é um piercing, aqui. — Louisa respondeu, indicando abaixo do lábio inferior, no meio. 

— Já escolheu o tipo que quer? 

— Não, eu só entrei aqui e decidi que queria um, mas não tenho nenhum em mente. 

Jamie riu baixinho e a levou para trás do balcão, abrindo uma das várias gavetas da bancada e mostrando tudo o que tinha, cada coisa em seu próprio saquinho estéril. Louisa pegou um Spike, ponderando entre ele e uma argola comum prateada. 

— Vou querer este. — Louisa estendeu o spike para ele.

Jamie pegou o saquinho com o piercing e indicou que Lou o seguisse para os fundos da loja. Ele abriu uma cortina que escondia um cômodo e pediu que Lou entrasse e se sentasse na maca encostada na parede nos fundos. Louisa subiu nela e deixou os pés penderem, balançando. Ela pôs-se a observar enquanto Jamie ajeitava tudo numa mesinha ao lado. Colocando luvas limpas, ele empunhou uma pinça grande em uma mão e a agulha que usaria para furar na outra, olhando Louisa com olhos semicerrados.

— É seu primeiro furo?

— Sim. — Louisa sentia as mãos pegajosas de suor.

— Serei rápido, então. 

— Você não vai marcar onde vai furar? 

— Não preciso, sou bom nisso. — Respondeu Jamie, piscando um olho para ela.

Jamie prensou com uma pinça – semelhante às de intervenções cirúrgicas – o centro do lábio inferior dela, puxando para que pudesse ver o interior do lábio. Louisa mantinha os olhos enormes bem abertos, fitando Jamie de perto. Ele ergueu o olhar para ela e riu, vendo o medo que exalava dela.

— Pode fechar os olhos, se isso a fizer se sentir melhor. 

Louisa aceitou a ideia e cerrou os olhos bem apertados. Sentiu quando a dor aguda atravessou seu lábio, permanecendo ali por alguns instantes antes de dar lugar a uma queimação leve, um tênue calor. Uma última pontada de dor a fez estremecer e estava feito; Louisa tinha um piercing. 

— Pode abrir os olhos. — Ela ouviu Jamie dizer.

Louisa os abriu e viu que Jamie estendia um espelho de mão para ela, que o pegou e ergueu ao rosto, fitando seu reflexo assustado nele. O Spike despontava do centro embaixo de seu lábio, apontando para frente como um espinho de prata. Louisa ergueu um dedo para tocar, mas Jamie a advertiu para que não o fizesse antes de lavar as mãos, que o tocasse apenas quando fosse lavar a perfuração. 

Ela percebeu que ainda estava agarrada ao xale fechado firmemente e o deixou escorregar pelos ombros, sentindo o ar frio do estúdio atingir sua pele por cima da blusa de mangas compridas. Jamie recolhia as coisas que usou na perfuração, colocando na autoclave a pinça e jogando o resto em um lixo especial. Louisa abriu a bolsa para pegar o dinheiro e pagá-lo quando fitou uma das molduras na parede ao lado com diversos desenhos tribais de chamas. A do meio se destacava mais, com uma pequena espiral no centro da chama. 

— Acho que farei mais uma coisa aqui. — Sorriu Louisa.

...

Ela descia com calma as escadas úmidas da estação de metrô, estampando um sorriso sonhador no rosto. Por baixo do xale, tocava a pequena tatuagem tribal em sua garganta, que ainda latejava levemente, coberta com plástico PVC. Louisa se juntou às poucas pessoas ali na plataforma esperando pelo trem, tocando a parte interna do lábio com a ponta da língua. Já o sentia inchar e comprou uma garrafa de água bem gelada, tomando-a quando o calor ao redor do furo começava a incomodar. Depois de sair do estúdio, parou numa farmácia para comprar pomadas antissépticas e enxaguante bucal para a limpeza do piercing. Louisa estava em um estado de felicidade tão estranho e entorpecido que não teve tempo de sentir aquela costumeira pressão no peito, que a acometia todos os dias desde que havia parado de ligar para um número que não a atendia, de alguém que sumira no mundo como se jamais tivesse existido. Louisa via o farol do trem no final do túnel e caminhou mais para perto da beirada da plataforma, suspirando. 

Estava preparada para mais um dia de cão. 

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