A luz prateada do dia nublado entrava pelo buraco no telhado, de onde ainda pendiam telhas e lascas de madeira pontiagudas, bem no centro da sala. A parte de baixo da casa era feita de um único cômodo grande, escura e com paredes descascadas que um dia foram de um azul escuro penetrante, chão de madeira ressecada e riscada e janelas obstruídas com cortiça bege e velha. Mesas de escritório se apoiavam nas paredes, bambas e enfraquecidas pelo tempo. Uma cadeira de ferro com assento e encosto de tela estava empurrada a um canto, sozinha. Abaixo do buraco no teto, um tapete se desfazia pelo tempo, sujeira e água que se acumulava nele, desfiando e apodrecendo. O canto que um dia foi a cozinha não estava em melhores condições, tendo uma geladeira completamente enferrujada com a porta pendendo, onde uma família de ratos morava, um fogão no mesmo estado e os armários estavam no chão, quebrados. A escada de alvenaria estava inteira, com seu corrimão de ferro seguindo degrau por degrau para cima.
No andar de cima – que mais parecia um sótão – a sujeira não era tão presente, e o chão em volta do buraco tinha grades velhas protegendo-o para que ninguém caísse na sala. Algumas lascas de madeira do telhado tocavam o chão, rangendo com o vento forte lá de fora. Era como se algo tivesse caído do céu para dentro da casa, abrindo um enorme rombo nela.
Algumas roupas estavam penduradas em uma arara no canto do sótão-quarto, objetos pessoais e móveis em bom estado o mobiliavam e as paredes não estavam tão deterioradas.
Como se alguém vivesse ali.
Escondido nas sombras, um colchão de casal fora colocado em cima de engradados de plástico para que não tivesse contato direto com o chão. Em cima da cama improvisada, travesseiros e edredons limpos se misturavam. O lugar ainda tinha resquícios de ter sido moradia de uma mulher muito jovem: os móveis eram femininos e desenhos delicados cobriam as paredes, desde passarinhos até retratos orientais e lagos com carpas coloridas.
Zya encarava o teto, deitado na cama. Fitava as chamas pintadas nas telhas, intercalando tons de vermelho e laranja. O desenho fora feito com tinta spray, o que dava um ar enevoado à pintura. Seu peito subia e descia com a respiração tranquila, enquanto o som do vento uivando gelado fora da casa o fazia estremecer. Zya puxou o edredom e se cobriu com ele, virando para a parede. Seus cabelos negros se espalhavam na cama, se destacando nos lençóis vermelhos. A luz diurna se esvaía rapidamente, dando lugar a uma noite chuvosa, pois já caíam alguns pingos grossos. Zya fechou os olhos firmemente, mentalmente cansado. Passou o dia inteiro sem saber o que faria, andando de um lado para o outro em seu esconderijo em ruínas. Por fim, despira-se e deitou na cama, desistindo de fazer qualquer coisa naquele dia.
Ele ergueu uma das mãos e tocou a cicatriz grosseira que o cortava da maçã do rosto até o queixo, seguindo-a com as pontas dos dedos. Ainda sentia a dor de ter reimplantado dentes – em um cirurgião que mais parecia um açougueiro, mas que era conhecido seu. O tal açougueiro não tinha caninos do mesmo tamanho que os de Zya e teve de usar maiores, dando um aspecto vampiresco a ele após ter reconstruído o que fora estragado. Quando os tocava com a língua, sentia um arrepio percorrer sua arcada dentária ainda sensível, arrepiando sua pele. Fazia alguns dias que os havia implantado e agradecia pela sensação horrível de dor e sensibilidade estar diminuindo, mas ainda estava lá, cutucando sua gengiva.
Lembranças de meses antes se arrastaram faceiras para sua mente, devagar. Zya se deixou lembrar-se de tudo, sem se forçar a espantar tais pensamentos.
Ao recobrar a consciência após o acidente de trem, Zya se pôs para fora dali o mais rápido que podia, arrancando o pedaço de ferro que estava fincado em sua boca. Ele se arrastou para fora do vagão após pegar um casaco grosso de lã marrom escura de uma mala que se abrira e espalhara tudo no corredor. Já era noite quando ele acordou, sentindo-se quente e com fagulhas passeando por seu corpo. Logo que sua mente se clareou, elas sumiram e Zya sentiu as dores absurdas do acidente. Mexia a língua bifurcada pela lasca de metal, avaliando os estragos feitos no interior da boca.
Algumas pessoas – sobreviventes – se juntavam ao redor de uma fogueira improvisada enquanto eram atendidas por médicos que esperavam meios de levar a todos ao hospital mais próximo. Estavam no meio do nada, com a companhia de animais e cadáveres presos dentro do trem. Zya se arrastou até estar próximo às pessoas ao redor da fogueira e se deixou ser examinado por um enfermeiro com ares de exaustão quase extrema, com o rosto escondido em uma máscara hospitalar com pontos escuros de sujeira. A dor nublava fortemente sua visão, fazendo Zya beirar o desespero. Sentia o sangue brotar do ferimento horrendo e escorrer por seu pescoço e peito, com as bordas da pele rompida queimando. A única coisa que o tal enfermeiro poderia fazer ali, sem materiais, era limpar o corte com soro e tentar estancar o sangramento com gaze, rezando para que não infeccionasse.
Após ter sido levado – sem saber como, pois voltou a perder a consciência – para um hospital público de Ghonargon, teve a pele suturada e nada mais. Ele sabia que aquele lugar estava à beira de ser fechado e não tinham cirurgiões que restaurassem seu rosto, então teve de procurar por conta própria por alguém que o “ajeitasse”. Saiu do hospital e foi ver seu antigo conhecido “cirurgião açougueiro” que o ajudou sem nada cobrar, pois estava em débito com Zya havia algum tempo. Com exceção da cicatriz irregular e grossa, não se percebia que seu maxilar fora quase partido em dois. Zya permaneceu com o homem por alguns dias, percebendo que perdera boa parte do paladar após o acidente. Quando se viu livre dos cuidados de seu conhecido, Zya pensou em procurar por Aksu ou até mesmo Louisa, mas não podia. Tinha medo de ser visto e se dar mal. Decidiu esconder-se na casa abandonada de Kenya até que se sentisse seguro para sair e procurar por amigos. O lugar o trazia lembranças que rasgavam seu peito, mas com o passar dos dias tal rasgar foi diminuindo e os olhos negros que apareciam em sua mente deram lugar aos azuis límpidos e inocentes que o fitavam com curiosidade. Não negava que sentia uma culpa avassaladora por não a procurar, sabia que ela deveria estar odiando-o, sem saber o que havia acontecido, mas sentia que não era hora de se arrastar cidade afora ainda. A casa de Kenya era longe dos pontos mais movimentados, ficando em uma rua onde tinha poucas casas, pois o forte dali eram galpões alugados. Precisava procurar por Aksu, deixar que o amigo o ajudasse como sempre fazia sem sequer pensar duas vezes.
Ainda com a mão no rosto, sentia os ossos despontando na pele. Não se importava em comer direito, alimentando-se com besteiras que roubava escondido do mercado decrépito ali perto.
Deixando os olhos fecharem com o sono, Zya adormeceu pensando em quando a vida seria menos rude com ele.
Pensando em quando a sorte lhe sorriria de novo, fitando-o com olhos azuis.
Lou apertou o xale com as mãos, fechando-o mais para não ser atingida diretamente pelo vento e garoa gélidos. Ela andava pela calçada prestando atenção nos sapatos vermelhos estilo Lolita que usava, evitando olhar para as outras pessoas e já se arrependendo de ter escolhido uma saia colegial vermelha com rendas para ir trabalhar, pois o vento enregelava suas coxas sem piedade. Talvez uma meia-calça grossa tivesse dado um jeito de bloquear o frio. Ao passar por um beco com um estranho grupo formando uma roda, Louisa apertou a bolsa por baixo do xale, involuntariamente. Os caras ali eram maltrapilhos e sujos, e sorriram demoniacamente quando a viram passar. Ela já não sentia aquela urgência de chegar logo em casa quando saía do trabalho tarde da noite, com medo de encontrar alguém que a fizesse mal em algum dos milhares de cantos escuros da cidade. Sabia que não seria ela a se dar mal numa ocasião dessas.O barulho da cidade – carros, ônibus, pessoas – a atordoava levemente,
O vento arrastava o lixo que se juntava nas sarjetas pelo caminho, levando-o para o meio da rua. Já era tarde da noite quando Aiden saiu de casa com um papel verde neon em mãos contendo apenas um endereço que, pelo que sabia, era uma rede de túneis abandonados. Faltava pouco para chegar ao local e a ansiedade falava bem alto, presente em cada batida de seu coração.Naquele mesmo dia atendeu uma menina na livraria, provavelmente a oriental mais bonita que ele já vira: cabelos longos, lisos e escuros como a noite, olhos estreitos e brilhantes emoldurados por sobrancelhas interrogativas e cílios grossos de maquiagem, lançando sombras nas maçãs do rosto quando ela abaixava a cabeça. Aiden observava atentamente quando ela entreabria os lábios ao ler as sinopses dos livros pelos quais se interessava, voltando a serrá-los quando se voltava a Aiden para que ele colocasse os livros escolhidos numa cesta igual às de mercado. Ela franzia a pele marfim do nariz de ângulos retos e delicado
Ela deu dois passos – o bastante para estar quase colada nele – e tocou os lábios dele com a ponta do polegar, engolindo em seco.— Sua boca se parece com a do Tom Hardy. Sim, vamos dançar.“Quem é Tom Hardy?” Aiden se perguntava, mas não o fez para Rani. Ele segurou a mão dela e a seguiu para fora do esconderijo, esgueirando-se por entre as dezenas de pessoas ali. Em um canto afastado deles alguém tocava em um aparelho de discotecagem que aparentava ser caro. Aiden não conseguia ver quem estava atrás, apenas o brilho de tinta neon nas roupas da pessoa.Quando estavam quase no meio de todos, Rani se virou para ele e iniciou uma dança graciosa, tímida no início. Conforme se aproximavam mais, Aiden colocou suas mãos na cintura dela e arriscou dançar como os outros caras dali dançavam, vendo que não era tão difícil assim, logo sincronizando seus movimentos aos dela. Rani ainda tinha em mãos o copo azul, tomando dele de vez em quando. A bebida já estava que
— Você quer me levar para a cama, é isso?— Não exatamente. Tinha em mente ir a um cinema ou algo assim. — Aiden sentiu seu rosto ficar rubro e agradeceu por Rani estar deitada em seu ombro, sem vê-lo.— À essa hora só tem cinemas de filmes adultos abertos.Aiden suspirou, cansado.— Eu te levo para sua casa. Onde você mora?— Minha casa é o mundo.Rani de repente ficou mais pesada, escorregando a cabeça do ombro dele. Aiden a segurou, passando um braço por trás dela e a deitou no degrau, desmaiada.— Ah, que ótimo...Havia acabado de conhecê-la e já tinha de lidar com esse tipo de situação. Não sabia nada sobre Rani, sequer sabia para onde levá-la naquele estado. Um desespero crescente brotou em seu peito e Aiden pensou em entrar e procurar o tal Taru, mas não podia deixá-la sozinha. Ele pegou o celular e discou o número de Genesis, mas ele não atendeu; deveria estar dormindo. Passou os dedos nos cabelos dela,
De dentro do escritório do Distrito Policial, Elya observava seus homens tentando conter a manifestação violenta que havia estourado na avenida em frente ao prédio. Os manifestantes jogavam pedras, pedaços de madeira e tudo o que encontravam pela frente que poderia ser arremessado nos policiais em formação na frente do Distrito, protegendo-o de invasões. Ainda chovia um pouco, apenas algumas gotas finas que embaçavam o prédio de vidro e escorriam por ele melancolicamente.Elya estava em um dos últimos andares do edifício alto, observando a cena se desenrolar como que protagonizada por formigas. Viu claramente quando um coquetel molotov fora arremessado na parede de policiais e estourou nos escudos transparentes, fazendo-os recuarem devido ao álcool que ardia em chamas aos seus pés. A multidão gritava coisas que ele não ouvia com clareza e, sinceramente, não queria saber o que gritavam. Ele alisava a longa trança castanha posta por sobre um ombro, distraído. Sentia a dor lat
— É agora, vou sair de verdade. Prometo.Adelwise estava parada em frente à porta havia quase uma hora, com a mão na maçaneta. Sua respiração secava a garganta e rasgava os pulmões de nervoso. Adel abaixou a cabeça e escondeu-se atrás dos cabelos curtos cor de laranja, cansada. Desesperava-se só de pensar em sair e ter de enfrentar dezenas de pessoas pelo caminho até a farmácia – à dois quarteirões dali. Queria apenas ficar em casa e pintar seus quadros com imagens de seus sonhos ou fazer mais almofadas, mas Anmi não estava disponível naquele dia e Adel precisava de algumas coisas urgentemente. Sentia-se extremamente mal por ter de depender tanto de Anmi, que tinha mil e uma coisas para fazer todos os dias e ainda achava tempo para ajudá-la com os problemas provenientes de seu dom.Adel sentia uma gota de suor escorrer por sua coluna e ser absorvida pelo cós da calça jeans, causando arrepios nela. Dali da porta ela já sentia seu dom entrando em ação, captando os sentimen
A fumaça que se desprendia do cigarro formava coisas estranhas no ar gelado. O inverno chegaria com força naquele ano, dando indícios disso já naquele momento; o frio deixava as ruas quase desertas, o vento cortava o que encontrava pela frente, uivando por entre os prédios e levando o lixo de Ghonargon consigo.Zya levou o cigarro à boca novamente, distraído enquanto olhava pela janela do andar de cima da casa quase em ruínas, observando a rua completamente vazia. Raramente via alguém passar por ali, um veículo ou outro a atravessava, mas nunca se demorava. O ar gélido congelava a pele por baixo da jaqueta escura com as mangas arregaçadas, deixando-a com um tom arroxeado de frio. Ele conseguia ver o reflexo da tatuagem em seu peito pela jaqueta aberta, como se fosse alguma cópia espectral sua refletida no vidro embaçado da janela. Estava escuro demais naquela noite e, embora Zya preferisse permanecer no breu, acendeu uma vela para iluminar o andar superior da pequena casa.
Anmi esperava ansiosamente, parada um pouco depois da entrada da estação de trem abandonada. Ghonargon tinha muitas linhas de metrô, o que fez os trens ficarem obsoletos rapidamente. Ela apertava o cachecol em volta do pescoço nervosamente, olhando para os lados, à espera. Odiava ter que esperar Aksu sozinha ali e se arrependeu de marcar um encontro com ele naquele lugar tão vazio e largado...O lugar onde ela estava serviu, havia alguns anos, como um tipo de estacionamento de locomotivas, estando largadas nas linhas e fora delas. Alguns vagões avulsos se erguiam como esqueletos de casas de metal aqui e ali com plantas crescendo dentro e fora. Uma pequena parcela deles já se encontrava totalmente laranja de ferrugem e o metal estalava quando ventava forte ali embaixo, fazendo Anmi se assustar toda vez.Entediada, ela se pôs a observar e “catalogar” em sua mente o que havia ali embaixo, começando pelo chão cheio de entulho e coisas como saquinhos de lanches e garraf