Ela sentava-se na beira da mureta do prédio, olhando o fluxo de pessoas e veículos lá em baixo. O vento era forte ali em cima, varrendo seus cabelos para trás grosseiramente, enregelando suas pernas cobertas por um pequeno short preto e meia-calças da mesma cor. Louisa enrolava os dedos na barra do blusão de moletom de Henrik, absorta na visão do alto, das centenas de luzes piscando por todo o lugar a perder de vista. Nos primeiros dias ela se cansara de tentar ver as estrelas dali; o excesso de luz, poluição e nuvens carregadas não deixava passar nada. Os olhos azuis já não eram tão inocentes, não viam bondade e gentileza em quase nada e eram espertos demais para deixar passar um detalhe sequer, por mais ínfimo que fosse. Louisa poupava seus sorrisos, dando-os apenas aos irmãos e ao primo. Já não morava mais com Aiden e Genesis: Henrik e ela permaneceram apenas uma semana com os dois e então foram embora, pois acharam um apartamento três ruas distante deles. O lugar era bom, embora fosse quase a mesma coisa que o prédio de Gen – em uma rua escura e estreita, com pessoas estranhas passando por ela a noite toda e eventuais sons de violência ocorrendo. O apartamento em si era feio, mas Henrik e Lou deram seus toques pessoais a ele com o tempo. Estavam ali faria mais de três meses.
E nenhuma notícia de Zya.
Desde o dia em que Louisa chegou a Ghonargon, ela esperava Zya. Perdeu a conta de quantas mensagens mandou a ele, de quantas vezes o ligou e a ligação caiu na caixa postal. Com o passar dos dias, o sentimento de perda aumentava e a esperança diminuía, enchendo sua cabeça com mil e uma possibilidades e motivos pelos quais Zya não apareceu. Henrik já não dizia mais para não se preocupar, pois sabia não adiantava dizer tais palavras vazias e sem certeza. Afinal, ninguém sumia por meses a fio sem mais nem menos.
Em alguns momentos, desejava ardentemente ter sua antiga vida de volta, sentir o Sol esquentando sua pele e o som do riacho atrás do cemitério de Sunfalls, passar as tardes com Chris e Henrik e divagar durante as missas de Saul. Após algum tempo, Louisa já não se lembrava mais do rosto de Chris, não sentia falta dele e sabia que deveria se sentir mal com isso. Ao contrário de seus pais, cuja falta a rasgavam toda manhã quando Lou acordava e se lembrava onde estava e porque estava. Era estranho ter responsabilidades e ser adulta, embora mal tivesse completado dezesseis anos.
Fizeram um bolo coberto com glacê vermelho e confeitos brancos no dia de seu aniversário, na primeira semana em seu apartamento novo. Aiden a presenteara com maquiagens e um pequenino elefante azul que acendia uma luz débil e Gen a deu uma colcha de cama com um mandala enorme estampado, todo em tons psicodélicos. Por fim, Henrik a presenteou com uma grande caixa de macarons, que Louisa descobrira ser seu doce favorito. Ela se esforçou para que a ausência de Zya passasse despercebida, mas, ao se ver sozinha em seu quarto, um sentimento estranho de solidão a tomou, trazendo consigo um peso em seu peito.
Os dias passaram e ela ainda sentia tudo aquilo.
Estava de folga da loja de roupas alternativas naquele dia e planejara sair com Henrik para comer fora, mas ele precisava fazer hora extra no trabalho, o mesmo açougue onde Genesis trabalhava; que foi quem conseguiu espaço lá para Henrik. Então restava observar do alto a cidade no fim de tarde, antes que chovesse. Lou balançava as pernas para frente e para trás, pendendo acima da calçada há dez andares abaixo. Ali em cima o ar cheirava a melancolia e chuva, entrando em seus cabelos e roupas. Louisa gostava dos cheiros da cidade, como fumaça úmida, asfalto, comidas estranhas e perfume nas ruas principais. Nas menores, como a que ela morava, sempre tinha um pungente cheiro de urina e moradores de rua, embora não fosse forte e constante.
Louisa puxou as pernas para cima, abraçando os joelhos e encostando uma bochecha neles. Os olhos marejaram-se com tantas lembranças e com a mudança tão brusca em sua vida, embora já fizessem meses. As primeiras gotas grossas começavam a cair pesadamente, acertando-a com força devido ao local aberto onde estava. Louisa saiu da mureta e arrastou os pés pelo concreto da laje do prédio, descendo as escadas até o 5° andar onde ficava seu apartamento. As escadas estavam úmidas e Louisa escorregou mais de uma vez, segurando-se firme no corrimão para se estabilizar. As paredes frias e cinzentas a faziam pensar estar do lado de fora ainda, em meio às nuvens de chumbo.
Lou abriu a porta que dava acesso ao seu andar e a fechou atrás de si, deixando os olhos se acostumarem com a escuridão do corredor. O zelador prometera trocar as lâmpadas queimadas, mas faria três semanas que estavam assim e nada de trocar de fato. Lou andou seguramente até a segunda porta à direita; seu apartamento. Destrancou-a no escuro e entrou no lugar vazio. Apesar da familiaridade com o lugar, ainda sentia como se fosse uma casa estranha. Não pensava no apartamento como lar, mas como uma casa apenas.
A sala era bem simples, tendo dois sofás cobertos com mantas pretas com fios prateados formando desenhos em espiral – presente de Aiden quando se mudaram – e uma mesa de centro de tampo de vidro e pés de acrílico, um tapete que Louisa comprou em uma feira de usados, com listras em tons de preto e cinza. Não tinha TV, apenas uma pequena estante com alguns itens decorativos – dois cristais roxos e grandes, um lobo bege de cerâmica do tamanho de uma bola e alguns livros emprestados de Aiden. Louisa estava se aproximando bastante dele, como se fosse um irmão também. Aiden era delicado e gostava de ouvir, e Louisa descobriu que tinham muito em comum. Viviam todos como uma família deveria ser, combinando jantares, saindo para boates ou para comer em barraquinhas de comida oriental. Lou viciara-se rapidamente em um tempurá feito por uma garota que parecia ter a idade dela numa das tais barraquinhas próximas ao Mercado. A garota sempre caprichava nos camarões quando Lou ia comer ali, e colocava tempurás extras para viagem numa caixinha de isopor com uma sequência de caracteres japoneses desenhados a mão com caneta permanente. Louisa gostou daquela garota logo de início, pois parecia que viera de outro lugar assim como ela, que foi quem indicou Louisa para a loja de roupas onde Lou trabalhava agora. A dona era conhecida da menina dos tempurás e gostou de Lou, aceitando-a em sua loja. A compra de roupas alternativas era alta ali e quase sempre Lou recebia um bom dinheiro. Após algumas semanas almoçando todos os dias na barraquinha, ela descobriu que a menina dali se chamava Anmi e tinha uma prima que morava no mesmo prédio que Gen e Aiden. Anmi morava com a mãe que trabalhava como hostess em uma boate cara de um bairro rico de Ghonargon.
Anmi tinha os cabelos tingidos de vermelho e os mantinha longos, com uma franja que se arredondava nos cantos. Ela fazia um pequeno coque no topo da parte de trás da cabeça e deixava o resto solto, caindo ao longo das costas e ombros. Anmi gostava de usar grandes brincos de argola, brilho labial alaranjado e um blusão preto igual ao de Louisa – que na verdade era de Henrik. Ela sequer se sujava ao cozinhar na barraquinha. Anmi era mais alta que Lou, e tão esguia quanto. Ela lembrava uma menina saída de algum anime de colegiais. Anmi frequentava a escola daquele bairro e fez Louisa querer voltar a estudar, afinal não podia deixar de fazê-lo.
Deixando os pensamentos sobre Anmi de lado, Lou atravessou a sala e foi para a cozinha, pegou uma lata de refrigerante de cereja e saiu para a pequena varanda que tinha na sala. A varanda tinha cerca de um metro, com grades de ferro feias que pressionavam o abdômen dela quando Lou se debruçava para olhar as ruas lá embaixo. O vento – constante – fazia seus cabelos chicotearem seu rosto inexpressivo. Louisa tirou o blusão de Henrik e o jogou dentro da sala, no sofá mais próximo. Gostava da sensação do vento úmido na pele onde a blusinha preta de rendas por cima de um top vermelho não a cobria. Ela levou a lata à boca e sorveu um longo gole do refrigerante, cansada. Lou pegou seu celular roxo do bolso do short e desbloqueou a tela, fazendo o que sempre fazia naquela hora do dia: discava o número de Zya, tentando contato por minutos a fio.
— Inútil...
Sem sequer discar o número, Lou voltou a guardar o celular em seu bolso. Estava cansada de buscas infrutíferas. Já até procurou pelo amigo dele, Aksu, que ela sabia lutar artes marciais mistas clandestinamente, mas não achou nada.
Com o passar dos dias, ela começou a acreditar que os policiais restantes haviam pegado Zya no trem, quando este teve problemas. Não havia outra explicação, não havia motivos para que Zya sumisse ao chegar na cidade. Aquele era o primeiro dia em que Louisa Newton desistia de tentar contato, e sabia que no dia seguinte também não iria tentar. A angústia dava lugar ao ódio rapidamente. A lata vibrava em sua mão, vazia, sendo amassada pela mão pequena. Louisa a arremessou para cima do prédio em frente, entrou em casa e fechou a porta de vidro com força. Jogou-se ao sofá e fechou os olhos bem apertados, querendo que o dia acabasse logo.
O som dos carros e da atividade noturna da cidade embalou seus pensamentos distantes, indo a lugares que Louisa jamais achou que existissem em sua mente, lugares escuros e medonhos.
— É inútil. — Sussurrou Louisa, sem saber por que o fazia.
Dezenas de enormes peças de carne a serem carregadas os esperavam no caminhão, umas em cima das outras. Genesis amarrou firme o avental grosso e branco antes de calçar as luvas para iniciar o trabalho. As botas pesadas vez ou outra o desestabilizava, deslizando no chão úmido do galpão. Henrik, ao seu lado, estalava os dedos, pronto para trabalhar.— Quem precisa de academia quando se trabalha num açougue onde o chefe é um maldito que manda dois fazerem o trabalho de dez? — Resmungou Gen.— Ah, Gen. Levantar um peso extra é bom. — Riu Henrik, já descarregando a primeira peça e colocando-a por cima do ombro.— Parecem bois inteiros aí.Henrik já ofegava quando voltou, após pendurar a carne em um gancho. Genesis ainda estava parado, com a mão em uma das peças.— Cara, pega logo isso. Quando terminarmos, já podemos ir embora.Genesis encarou o irmão à sua frente; não era tão alto quando Gen, mas quase. Enquanto Genesis tinha cheios cabelos pretos, Henrik ti
A luz prateada do dia nublado entrava pelo buraco no telhado, de onde ainda pendiam telhas e lascas de madeira pontiagudas, bem no centro da sala. A parte de baixo da casa era feita de um único cômodo grande, escura e com paredes descascadas que um dia foram de um azul escuro penetrante, chão de madeira ressecada e riscada e janelas obstruídas com cortiça bege e velha. Mesas de escritório se apoiavam nas paredes, bambas e enfraquecidas pelo tempo. Uma cadeira de ferro com assento e encosto de tela estava empurrada a um canto, sozinha. Abaixo do buraco no teto, um tapete se desfazia pelo tempo, sujeira e água que se acumulava nele, desfiando e apodrecendo. O canto que um dia foi a cozinha não estava em melhores condições, tendo uma geladeira completamente enferrujada com a porta pendendo, onde uma família de ratos morava, um fogão no mesmo estado e os armários estavam no chão, quebrados. A escada de alvenaria estava inteira, com seu corrimão de ferro seguindo degrau por degrau para c
Lou apertou o xale com as mãos, fechando-o mais para não ser atingida diretamente pelo vento e garoa gélidos. Ela andava pela calçada prestando atenção nos sapatos vermelhos estilo Lolita que usava, evitando olhar para as outras pessoas e já se arrependendo de ter escolhido uma saia colegial vermelha com rendas para ir trabalhar, pois o vento enregelava suas coxas sem piedade. Talvez uma meia-calça grossa tivesse dado um jeito de bloquear o frio. Ao passar por um beco com um estranho grupo formando uma roda, Louisa apertou a bolsa por baixo do xale, involuntariamente. Os caras ali eram maltrapilhos e sujos, e sorriram demoniacamente quando a viram passar. Ela já não sentia aquela urgência de chegar logo em casa quando saía do trabalho tarde da noite, com medo de encontrar alguém que a fizesse mal em algum dos milhares de cantos escuros da cidade. Sabia que não seria ela a se dar mal numa ocasião dessas.O barulho da cidade – carros, ônibus, pessoas – a atordoava levemente,
O vento arrastava o lixo que se juntava nas sarjetas pelo caminho, levando-o para o meio da rua. Já era tarde da noite quando Aiden saiu de casa com um papel verde neon em mãos contendo apenas um endereço que, pelo que sabia, era uma rede de túneis abandonados. Faltava pouco para chegar ao local e a ansiedade falava bem alto, presente em cada batida de seu coração.Naquele mesmo dia atendeu uma menina na livraria, provavelmente a oriental mais bonita que ele já vira: cabelos longos, lisos e escuros como a noite, olhos estreitos e brilhantes emoldurados por sobrancelhas interrogativas e cílios grossos de maquiagem, lançando sombras nas maçãs do rosto quando ela abaixava a cabeça. Aiden observava atentamente quando ela entreabria os lábios ao ler as sinopses dos livros pelos quais se interessava, voltando a serrá-los quando se voltava a Aiden para que ele colocasse os livros escolhidos numa cesta igual às de mercado. Ela franzia a pele marfim do nariz de ângulos retos e delicado
Ela deu dois passos – o bastante para estar quase colada nele – e tocou os lábios dele com a ponta do polegar, engolindo em seco.— Sua boca se parece com a do Tom Hardy. Sim, vamos dançar.“Quem é Tom Hardy?” Aiden se perguntava, mas não o fez para Rani. Ele segurou a mão dela e a seguiu para fora do esconderijo, esgueirando-se por entre as dezenas de pessoas ali. Em um canto afastado deles alguém tocava em um aparelho de discotecagem que aparentava ser caro. Aiden não conseguia ver quem estava atrás, apenas o brilho de tinta neon nas roupas da pessoa.Quando estavam quase no meio de todos, Rani se virou para ele e iniciou uma dança graciosa, tímida no início. Conforme se aproximavam mais, Aiden colocou suas mãos na cintura dela e arriscou dançar como os outros caras dali dançavam, vendo que não era tão difícil assim, logo sincronizando seus movimentos aos dela. Rani ainda tinha em mãos o copo azul, tomando dele de vez em quando. A bebida já estava que
— Você quer me levar para a cama, é isso?— Não exatamente. Tinha em mente ir a um cinema ou algo assim. — Aiden sentiu seu rosto ficar rubro e agradeceu por Rani estar deitada em seu ombro, sem vê-lo.— À essa hora só tem cinemas de filmes adultos abertos.Aiden suspirou, cansado.— Eu te levo para sua casa. Onde você mora?— Minha casa é o mundo.Rani de repente ficou mais pesada, escorregando a cabeça do ombro dele. Aiden a segurou, passando um braço por trás dela e a deitou no degrau, desmaiada.— Ah, que ótimo...Havia acabado de conhecê-la e já tinha de lidar com esse tipo de situação. Não sabia nada sobre Rani, sequer sabia para onde levá-la naquele estado. Um desespero crescente brotou em seu peito e Aiden pensou em entrar e procurar o tal Taru, mas não podia deixá-la sozinha. Ele pegou o celular e discou o número de Genesis, mas ele não atendeu; deveria estar dormindo. Passou os dedos nos cabelos dela,
De dentro do escritório do Distrito Policial, Elya observava seus homens tentando conter a manifestação violenta que havia estourado na avenida em frente ao prédio. Os manifestantes jogavam pedras, pedaços de madeira e tudo o que encontravam pela frente que poderia ser arremessado nos policiais em formação na frente do Distrito, protegendo-o de invasões. Ainda chovia um pouco, apenas algumas gotas finas que embaçavam o prédio de vidro e escorriam por ele melancolicamente.Elya estava em um dos últimos andares do edifício alto, observando a cena se desenrolar como que protagonizada por formigas. Viu claramente quando um coquetel molotov fora arremessado na parede de policiais e estourou nos escudos transparentes, fazendo-os recuarem devido ao álcool que ardia em chamas aos seus pés. A multidão gritava coisas que ele não ouvia com clareza e, sinceramente, não queria saber o que gritavam. Ele alisava a longa trança castanha posta por sobre um ombro, distraído. Sentia a dor lat
— É agora, vou sair de verdade. Prometo.Adelwise estava parada em frente à porta havia quase uma hora, com a mão na maçaneta. Sua respiração secava a garganta e rasgava os pulmões de nervoso. Adel abaixou a cabeça e escondeu-se atrás dos cabelos curtos cor de laranja, cansada. Desesperava-se só de pensar em sair e ter de enfrentar dezenas de pessoas pelo caminho até a farmácia – à dois quarteirões dali. Queria apenas ficar em casa e pintar seus quadros com imagens de seus sonhos ou fazer mais almofadas, mas Anmi não estava disponível naquele dia e Adel precisava de algumas coisas urgentemente. Sentia-se extremamente mal por ter de depender tanto de Anmi, que tinha mil e uma coisas para fazer todos os dias e ainda achava tempo para ajudá-la com os problemas provenientes de seu dom.Adel sentia uma gota de suor escorrer por sua coluna e ser absorvida pelo cós da calça jeans, causando arrepios nela. Dali da porta ela já sentia seu dom entrando em ação, captando os sentimen