Entro no apartamento sem me dar o trabalho de acender as luzes. A luz da TV na pequena sala de estar ilumina o rosto pálido e ossudo de meu pai. Seu olhar está fixo na tela, mas não de um jeito concentrado, só de um jeito… vazio.
— Oi, pai. — Tento forçar uma simpatia na voz, uma falsa felicidade por estar de volta nesse muquifo apertado e mofado.
Como se fosse uma recompensa chegar em casa e encontrar meu pai, que nem levantou do sofá o dia inteiro, porque é como se já fossem uma coisa só, fundidas num ranço de depressão e descaso.
Sinto a culpa me consumir quando penso nisso e me repreendo mentalmente.
— Você comeu alguma coisa? — pergunto, tirando os sapatos perto da porta e largando as sacolas do mercado em cima do pequeno balcão da cozinha.
Nada.
Solto um suspiro cansado, aprendi a me acostumar com seu silêncio. Quase não me lembro mais do homem forte que ele costumava ser, um líder nato. O que me sobrou foi um homem pálido, apático, uma versão desgastada do homem que eu admirava, do pai que me mimava.
Acho que a última vez que ele falou alguma coisa foi há duas semanas atrás, quando o zelador bateu na nossa porta dizendo que tinha correspondência para Jorge Mendes, e ele murmurou que o nome Mendes não significava mais nada.
No começo, eu tentava convencê-lo do contrário, nosso sobrenome significava que éramos fortes, que iriamos reconquistar o que era nosso, mas a esperança morreu. Se um dia nosso sobrenome abria portas, agora ele parece fechá-las na nossa cara.
Abro a geladeira e vejo a marmita que tirei para ele ali ainda, intacta.
— Tem que comer, pai…
Tiro uma marmita do freezer para descongelar, em algum momento ele vai ter que comer alguma coisa. Esquento para mim a marmita já descongelada que ele deveria ter comido.
— Achei que eu fosse enlouquecer hoje no trabalho — digo, mesmo que ele não tenha perguntado nada. — Acho que se eu sobreviver a mais um mês naquele café, posso até colocar me aposentar por estresse pós-traumático.
Rio sem humor. Meu pai nem pisca. Não digo mais nada, só coloco a comida quente na frente dele e me sento ao seu lado. Quando vou pegar o controle no centro da mesa, para procurar outro canal, percebo um papel que não estava ali quando eu saí pela manhã.
Não preciso pegar para ler com atenção, as palavras se destacam mesmo a distância “notificação de despejo”.
Engulo em seco e me forço a ignorar mais esse problema. Dou uma garfada só para constatar que perdi a fome. A vontade é arremessar o pote contra a parede, mas não posso me dar o luxo de desperdiçar nenhuma refeição.
— Quer beber alguma coisa, pai? Posso passar um café ou fazer um chá. — Ofereço mais para me distrair. Eu queria mesmo é uma garrafa de vinho, dispensava até a taça.
Como ele não responde, decido que não tenho forças para nada além de encher um copo com água da torneira. Entorno todo o conteúdo de uma vez só, tentando lembrar quantas horas faz desde que bebi água pela última vez.
Levo um copo igualmente cheio para meu pai. Coloco logo ao lado da notificação e escolho ignorá-la por mais um tempinho.
Jorge finalmente tem alguma reação. Ele pisca e desvia o olhar da tela, focando em mim pela primeira vez em… sei lá. Meses?
— Não posso te ajudar.
Pisco surpresa, sua voz rouca parece partida. Soa grave exatamente como a voz de alguém que não fala nada há muito tempo. É a voz de um homem cansado.
— O quê? — pergunto, atordoada.
— Sei que você está se matando para pagar as contas, mas não posso ajudar, Bella. Falhei com você.
Eu não queria chorar, mas um soluço comprime meu peito e as lágrimas só deslizam. Não estou surpresa com suas palavras, mas acho que eu ainda guardava um resquício de esperança, um desejo secreto de que um dia ele olharia para mim, desse mesmo modo, mas diria que é hora de sacudir a poeira, dar a volta por cima.
— Pai, não fala assim… — peço, como se isso o fizesse repensar tudo, dar alguns passos para trás e perceber que ainda sou sua filha, que ainda preciso dele.
— Se sua mãe ainda estivesse aqui, ela teria arrumado um jeito.
Mas ela arrumou. Um jeito só para ela. Nos abandonou como se não fossemos nada. Casou com outro homem rico e detestável.
Meu impulso é sempre querer dizer que não foi culpa dele. O problema é que nunca soube determinar até que ponto isso era verdade. Até que ponto eu realmente acredito nisso? Quantas vezes o isentei da culpa só como forma de empatia, como uma maneira de tirá-lo desse buraco?
Quando, talvez, eu devesse ter acreditado nas vezes em que ele se esforçou para me convencer de que devia ter prestado mais atenção, ter sido mais atento e cuidadoso.
Ele tinha bocas para alimentar, a minha era uma delas.
Mas nós tínhamos sido vítimas de um golpe, só que cansei de convencê-lo a enxergar isso. Ele sabe melhor do que eu o que diziam as letras miúdas antes de assinar aquela fusão, talvez tenha sido mesmo irresponsabilidade sua. Ou talvez outra coisa tenha acontecido, talvez algo por baixo dos panos, algo impossível de se prever.
Eu conhecia o homem por trás disso, ele sempre foi famoso por sua forma agressiva de expandir a empresa.
Afinal, ninguém é demitido e perde toda a participação na própria empresa assim, jogando limpo e fazendo seu trabalho.
No entanto, não digo nada. Que bem faria? Apenas seguro a mão fria de meu pai e aperto contra minhas palmas suadas.
— Vou dar um jeito, sou boa nisso. — Prometo sem acreditar em nenhuma palavra que sai da minha boca.
— Como requisito indispensável à manutenção da condição de herdeiro legítimo blablablá o beneficiário deverá contrair matrimônio com e manter o vínculo conjugal pelo período mínimo de doze meses a contar da data da celebração da união civil.— Eu sei, eu já li — murmurei, afundando no sofá de couro.— Não terminei — meu melhor amigo, Enzo, ralha. — Durante a vigência do matrimônio, o beneficiário deverá preservar a integridade e a reputação pública do nome Vasconcellos, abstendo-se de condutas que possam comprometer a imagem da família ou da empresa, direta ou indiretamente.— Traduzindo: um marido não vai pra balada, não traí, não bebe, não trepa…— Trepa com a esposa pelo menos.— Que esposa? Você acha mesmo que eu vou conseguir seguir qualquer coisa que esteja aí? — Minha voz sai mais aguda do que eu gostaria.Passei o dia inteiro pensando nisso. Ou mais especificamente, pensando em como me livrar disso.— Seria mesmo tão ruim eu recusar? Eu ainda teria as coisas que estão no meu n
“A Imperial Catering Services, empresa referência em eventos de alto padrão, está em busca de garçonetes profissionais para atuar em um coquetel exclusivo no prestigiado Lee Palace Hotel.”As palavras ainda se embaralhavam na minha memória.Isso era ruim. Péssimo. Catastrófico. Eu conhecia a Imperial Catering Services e conhecia o Lee Palace Hotel. Já havia contratado um e participado de coquetéis no outro, mas parece que foi em outra vida.Porque foi. Eu era outra Isabella naquele tempo, é isso que alguns zeros do lado certo da vírgula fazem por você. O Lee Palace Hotel brilha como um castelo moderno sob a iluminação dourada da fachada. Suas enormes portas de vidro refletem a sofisticação dos convidados que entram, vestindo roupas que custam bem mais do que eu consigo ganhar em um ano inteiro.Respiro fundo antes de cruzar a entrada lateral destinada aos funcionários, o estômago dando piruetas de ansiedade. Eu já me sinto humilhada antes mesmo de começar o serviço.A sala de funcio
Nunca fui surpreendido facilmente e olha que já estive em situações constrangedoras ou particularmente preocupantes. Já lidei com acionistas furiosos, modelos chorando por atenção, brigas, escoltas, reviravoltas inusitadas.Mas nenhuma dessas experiências me preparou para o que eu poderia sentir quando reencontrasse Isabella Mendes. Talvez porque eu nunca considerei reencontrá-la. Mas aqui estamos.Os olhos dela ainda têm o mesmo brilho feroz de que eu me lembrava, os cílios longos lhe conferindo um aspecto delicado e feminino, contrastando com o misto de choque e algo mais, algo muito parecido com ódio.Bella se desvencilha do meu toque e finalmente presto atenção no que ela veste. Um uniforme preto com uma bandeja a tiracolo,
O apartamento está escuro e silencioso quando chego, pelo corredor percebo a porta do quarto do meu pai fechada e o sofá disponível para que eu me arraste até ele e despenque igual fruta podre. Meus pés estão latejando, os ombros e braços rígidos de tanto equilibrar bandejas e a dor de cabeça parece uma sinfonia preenchendo todo o interior do meu crânio.Mas eu sobrevivi. E fui paga por isso.Não era muito dinheiro, mas qualquer quantia sempre é bem-vinda.O coquetel foi exatamente como eu esperava: um desfile de hipocrisia, arrogância e sorrisos falsos. Alguns poucos rostos me reconheceram e nenhum deles teve o impacto que eu temia. Todos eles me atingiram de maneira superficial.Ex
O silêncio do apartamento de cobertura é opressor. Quando jogo as chaves sobre o aparador ao lado da porta e afrouxo a gravata sinto a pressão da noite pesar sobre mim.Não sei dizer o que me incomodou mais: o encontro inesperado com Bella, ou o jeito que ela me olhou. Como se eu fosse a personificação de tudo o que havia dado errado em sua vida.Eu não era um erro, sabia disso. No instante em que ela falou comigo, sua voz engatilhou tantas memórias, tantas declarações. Não tinha como eu ser seu erro.Mas naquele momento, parados naquele corredor, ela me convenceu.Pego um copo e me sirvo com uísque, não que eu já não tenha tomado o suficiente naquele coquetel, a
O celular vibra em cima da mesa da cozinha enquanto lavo a louça do café da manhã. Olho de relance para a sala, onde meu pai não desgruda os olhos da TV, e quando espio o celular a tela já apagou. Como não tenho pressa para ler mais uma notificação de cobrança, termino de lavar minha louça com calma.Quando enfim pego o celular, antes mesmo de desbloquear a tela, sinto uma esperança como se fosse um raio me acertando. A notificação que ignorei poderia ser uma oferta de trabalho temporário da agência.O dinheiro que recebi do coquetel no final de semana passado tinha aliviado várias contas atrasadas, eu estava até me convencendo de que poderia usar só um pouquinho para sair essa noite. Não tanto para comemorar, não tinha nada a ser celebrado, eu ainda continuo devendo dinheiro, vivendo num apartamento caindo aos pedaços, mas eu preciso tanto de uma distração.
O alívio de Bella durou pouco. Quando ela finalmente me vê ali, o vermelho sobe por seu busto, seu pescoço, orelhas e bochechas. De repente, me vejo muito consciente do quanto a pele dela deve estar quente e preciso contar o impulso de tocá-la.Ela está linda e eu me agarrei a todo o meu autocontrole para não interceptá-la mais cedo. Mas deu para notar como ela precisava disso, de um espaço, de um momento só dela. Algumas coisas nunca mudam.Enzo tenta mediar a situação enquanto Bella e Lucca discutem sobre sua atitude invasiva. Não me intrometo mais porque a culpa é de Enzo, ele foi quem a viu primeiro, uma coincidência e tanto, quase boa demais para ser verdade. Lucca é um babaca e teria merecido se eu tivesse batido nele de verdade.
Engulo a vontade de chorar, porque seria um erro fatal demonstrar o quanto as palavras de Dante me machucam.Pelo visto, não foi à toa que ele me superou tão rápido. Se teve sangue-frio para me pedir em casamento, só como uma estratégia para sei lá o quê ele está planejando, dispensando meu amor, é porque ele não é mesmo mais o Dante que eu conhecia, ou que acreditava conhecer.“São negócios” ele disse. As palavras ainda ecoam na minha mente.Ouvi essa frase mais vezes do que fui capaz de contar. Quando perdi tudo, era sempre sobre negócios. As pessoas parecem esquecer que por trás de empresas existem pessoas de carne e osso, que também lutam, que também sofrem, que também amam.Eu nunca mais amaria Dante de novo. Isso era óbvio.Último capítulo