Capítulo 3 - Isabella Mendes

Entro no apartamento sem me dar o trabalho de acender as luzes. A luz da TV na pequena sala de estar ilumina o rosto pálido e ossudo de meu pai. Seu olhar está fixo na tela, mas não de um jeito concentrado, só de um jeito… vazio.

— Oi, pai. — Tento forçar uma simpatia na voz, uma falsa felicidade por estar de volta nesse muquifo apertado e mofado.

Como se fosse uma recompensa chegar em casa e encontrar meu pai, que nem levantou do sofá o dia inteiro, porque é como se já fossem uma coisa só, fundidas num ranço de depressão e descaso.

Sinto a culpa me consumir quando penso nisso e me repreendo mentalmente.

— Você comeu alguma coisa? — pergunto, tirando os sapatos perto da porta e largando as sacolas do mercado em cima do pequeno balcão da cozinha.

Nada.

Solto um suspiro cansado, aprendi a me acostumar com seu silêncio. Quase não me lembro mais do homem forte que ele costumava ser, um líder nato. O que me sobrou foi um homem pálido, apático, uma versão desgastada do homem que eu admirava, do pai que me mimava.

Acho que a última vez que ele falou alguma coisa foi há duas semanas atrás, quando o zelador bateu na nossa porta dizendo que tinha correspondência para Jorge Mendes, e ele murmurou que o nome Mendes não significava mais nada.

No começo, eu tentava convencê-lo do contrário, nosso sobrenome significava que éramos fortes, que iriamos reconquistar o que era nosso, mas a esperança morreu. Se um dia nosso sobrenome abria portas, agora ele parece fechá-las na nossa cara.

Abro a geladeira e vejo a marmita que tirei para ele ali ainda, intacta.

— Tem que comer, pai…

Tiro uma marmita do freezer para descongelar, em algum momento ele vai ter que comer alguma coisa. Esquento para mim a marmita já descongelada que ele deveria ter comido.

— Achei que eu fosse enlouquecer hoje no trabalho — digo, mesmo que ele não tenha perguntado nada. — Acho que se eu sobreviver a mais um mês naquele café, posso até colocar me aposentar por estresse pós-traumático.

Rio sem humor. Meu pai nem pisca. Não digo mais nada, só coloco a comida quente na frente dele e me sento ao seu lado. Quando vou pegar o controle no centro da mesa, para procurar outro canal, percebo um papel que não estava ali quando eu saí pela manhã.

Não preciso pegar para ler com atenção, as palavras se destacam mesmo a distância “notificação de despejo”.

Engulo em seco e me forço a ignorar mais esse problema. Dou uma garfada só para constatar que perdi a fome. A vontade é arremessar o pote contra a parede, mas não posso me dar o luxo de desperdiçar nenhuma refeição.

— Quer beber alguma coisa, pai? Posso passar um café ou fazer um chá. — Ofereço mais para me distrair. Eu queria mesmo é uma garrafa de vinho, dispensava até a taça.

Como ele não responde, decido que não tenho forças para nada além de encher um copo com água da torneira. Entorno todo o conteúdo de uma vez só, tentando lembrar quantas horas faz desde que bebi água pela última vez.

Levo um copo igualmente cheio para meu pai. Coloco logo ao lado da notificação e escolho ignorá-la por mais um tempinho.

Jorge finalmente tem alguma reação. Ele pisca e desvia o olhar da tela, focando em mim pela primeira vez em… sei lá. Meses?

— Não posso te ajudar.

Pisco surpresa, sua voz rouca parece partida. Soa grave exatamente como a voz de alguém que não fala nada há muito tempo. É a voz de um homem cansado.

— O quê? — pergunto, atordoada.

— Sei que você está se matando para pagar as contas, mas não posso ajudar, Bella. Falhei com você.

Eu não queria chorar, mas um soluço comprime meu peito e as lágrimas só deslizam. Não estou surpresa com suas palavras, mas acho que eu ainda guardava um resquício de esperança, um desejo secreto de que um dia ele olharia para mim, desse mesmo modo, mas diria que é hora de sacudir a poeira, dar a volta por cima.

— Pai, não fala assim… — peço, como se isso o fizesse repensar tudo, dar alguns passos para trás e perceber que ainda sou sua filha, que ainda preciso dele.

— Se sua mãe ainda estivesse aqui, ela teria arrumado um jeito.

Mas ela arrumou. Um jeito só para ela. Nos abandonou como se não fossemos nada. Casou com outro homem rico e detestável.

Meu impulso é sempre querer dizer que não foi culpa dele. O problema é que nunca soube determinar até que ponto isso era verdade. Até que ponto eu realmente acredito nisso? Quantas vezes o isentei da culpa só como forma de empatia, como uma maneira de tirá-lo desse buraco?

Quando, talvez, eu devesse ter acreditado nas vezes em que ele se esforçou para me convencer de que devia ter prestado mais atenção, ter sido mais atento e cuidadoso.

Ele tinha bocas para alimentar, a minha era uma delas.

Mas nós tínhamos sido vítimas de um golpe, só que cansei de convencê-lo a enxergar isso. Ele sabe melhor do que eu o que diziam as letras miúdas antes de assinar aquela fusão, talvez tenha sido mesmo irresponsabilidade sua. Ou talvez outra coisa tenha acontecido, talvez algo por baixo dos panos, algo impossível de se prever.

Eu conhecia o homem por trás disso, ele sempre foi famoso por sua forma agressiva de expandir a empresa.

Afinal, ninguém é demitido e perde toda a participação na própria empresa assim, jogando limpo e fazendo seu trabalho.

No entanto, não digo nada. Que bem faria? Apenas seguro a mão fria de meu pai e aperto contra minhas palmas suadas.

— Vou dar um jeito, sou boa nisso. — Prometo sem acreditar em nenhuma palavra que sai da minha boca.

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