3

— Aurora, Aurora!

Olhei para o lado e vi minha amiga Isadora. Ela estava com um vestido azul-celeste longo, seu cabelo loiro estava solto e caminhava acenando para mim.

— Pensei que não viria Rora! — Me abraçou.

— Isa, você não tem ideia do que acabou de acontecer, aquele sem vergonha do Sandro tentou me estuprar. — Disse chorando, me lembrando da cena daquele maldito tocando meu corpo.

— O quê? — Ela respondeu desacreditada.

Contei o que havia acontecido, ela me abraçou e chorou comigo.

— Vamos dar um jeito, Rora, naquela casa você não volta mais. Já sei o que fazer!

— O que você tem em mente?

— Tenho a autorização assinada por meus pais para viajar e minha passagem já foi comprada, você só precisa entrar no ônibus em meu lugar.

— Está louca? Você perderá a sua viagem!

— Compro outra e viajo amanhã, além disso, as aulas na faculdade só vão começar na próxima semana.

— E o que seus pais vão dizer? — Perguntei preocupada, tinha meus problemas, mas não queria que minha amiga arrumasse encrenca com os pais por minha culpa.

— Não se preocupe, eu invento uma desculpa, falo que perdi a viagem porque me distraí na loja de conveniência, dou um jeito.

— Não sei nem o que dizer, Isa, você é a melhor amiga que poderia ter. Me fala quanto custou a passagem, vou te pagar, para você comprar a sua amanhã.

— Claro que não, fique como um presente para a sua liberdade, eu sei o quanto você sofreu naquela casa e sei que não quero que você volte para lá, agora vá logo, porque agora quem não pode perder o ônibus é você!

— Isa, já falei que te amo hoje?

— Não, mas sei que me ama. — Sorriu — Me diz, o que tem dentro de sua bolsa?

— São meus lacinhos, documentos e o dinheiro que economizei esse tempo todo.

— Não tem nenhuma roupa? Pega as minhas.

— Claro que não! — Respondi mais que depressa, Isa já tinha feito muito por mim, não seria justo me aproveitar dela. — Quando chegar lá, eu compro, afinal, não sei ainda para onde vou e não posso sair por aí, carregando muitas coisas.

— Então quero que fique pelo menos com isso. — Tirou da carteira algumas notas de dinheiro.

— Eu não posso aceitar. Não se preocupe, eu tenho um pouco aqui.

— Por favor, Rora, estou te dando de coração, afinal, estou indo para casa de minha tia, lá não terei despesa alguma e meus pais me mandaram uma boa mesada todo mês. — Apesar de não serem ricos, os pais de Isa tinham uma vida financeiramente estabilizada. — Além disso, você precisa de muito dinheiro, até arrumar um trabalho.

— Olha, vou aceitar, mas com uma condição: quando eu arrumar um trabalho, te devolvo de novo!

— Pode ser, dona orgulhosa.

Rimos e logo a última chamada do ônibus foi dada, abracei minha amiga pela última vez.

— Não se esqueça de trocar de número e me ligar, quero notícias suas sempre, entendeu?

— Pode deixar!

Entrei no ônibus apresentando o papel que Isa me deu. Não precisei mostrar a identidade. Sentei-me na poltrona e comecei a pensar no que faria da minha vida. Me lembrei da minha irmãzinha. Sei que aquele monstro não faria nada com ela, a marcação dele era apenas comigo, mesmo assim não deixei de me preocupar, pois ela estava doente e eu nem pude me despedir.

Agora eu tinha dois mil e trezentos na mão, poderia alugar um quarto de alguma pensão e procurar um emprego o mais rápido possível, mas me senti muito mal, pois não tinha experiência em nada. Minha mãe não me deixava fazer cursinhos profissionalizantes, nem os gratuitos. A única coisa que sabia era cuidar de casa e de crianças.

Era por volta das dezoito horas quando meu celular começou a tocar, era a minha mãe, atendi imediatamente.

— Aurora, onde você está? — Sua voz era séria.

— Mãe, cadê a Alice, melhorou? — Mudei de assunto.

— Não me ignora, menina, estou aqui de frente de casa, se você não chegar em dez minutos, eu vou acabar com a sua raça.

— Por quê? — Perguntei tentando saber o que aquele safado disse a ela.

— Porque, por sua culpa, o Sandro sofreu um acidente, você deixou sua irmã doente sozinha e saiu, ele ficou tão sem saber o que fazer com a menina, que na hora do almoço escorregou com o prato de comida, que além de queimá-lo, se partiu e cortou seu rosto.

— O quê? — Ele não teve coragem de contar a verdade a ela. Aquele sem vergonha estava planejando se vingar de mim de outra forma, com certeza.

— Não, mãe, não foi isso o que aconteceu. Esse homem que você escolheu como marido tentou abusar de mim e eu simplesmente me defendi, jogando a minha comida com toda força do mundo na cara dele.

— Que absurdo é esse que está falando, menina? — Gritou histérica.

— Isso mesmo que acabou de ouvir. Acho muito estranho ele não ter te contado a real versão, já que ele me disse ser um homem de verdade.

— Você tem noção do que está falando, Aurora? Sandro é um funcionário público, conhecido na cidade inteira, quer estragar a vida dele falando mentiras? Eu sabia que não podia confiar em você, na verdade, ele deve ter se queimado se esquivando de suas insinuações. Quer saber de uma coisa? Não volta para casa não, fica aí onde você está, sua ingrata! Ele fez de tudo por você, te criou sem você ser nada dele e você não tinha preocupação nenhuma na vida morando dentro desta casa. Espero que sofra bastante aprendendo com o mundo e chore lágrimas de sangue quando se arrepender do que está fazendo.

— Mãe, em que dia a senhora se transformou neste monstro sem coração? Que deixou de acreditar na própria filha para acreditar em um homem?

— Escuta, a partir de hoje eu não te considero mais como filha, você não é nada minha, entendeu? Meu erro foi ter tido você! Eu era tão nova e estraguei minha juventude, tendo que parar todos meus sonhos para te criar e, no final, você me dá esse desgosto todo!

Após minha mãe dizer todos os absurdos possíveis, desligou o telefone na minha cara. Ouvir tudo aquilo me fez chorar como criança.

Ela engravidou com 16 anos, quando conheceu meu pai, os dois se apaixonaram, foram morar juntos, dois anos depois se casaram no civil, éramos tão felizes, nunca havia visto arrependimento por ter me tido tão cedo.

Infelizmente, numa tarde, meu pai voltava do trabalho, atravessava na faixa de pedestres e um motorista bêbado avançou o sinal e o atropelou. Ele faleceu na hora, o motorista era um menino de dezessete anos que havia pegado o carro do pai escondido, não houve penalidade para ele, pois era filho de um empresário muito rico e influente da região. Eles pagaram uma indenização à minha mãe e ela recebe uma pensão por eu ser menor de idade, só que até hoje não vi dinheiro algum. Quando ela conheceu o Sandro, os dois compraram uma casa num bairro nobre da cidade. Ele trabalhava no Ministério Público e arrumou um emprego de secretária para ela. Os dois, na vista das pessoas, são bem de vida, mas infelizmente, eu nunca usufruí de benefício algum, apenas a escola que mamãe pagava, porque não cairia bem para eles, eu estudar em escola pública.

Era madrugada e a maioria dos passageiros dormia, olhava para a estrada, via aquela escuridão dos lados e imaginava o que iria fazer da vida, pois quem contrataria uma menor de idade?

Na primeira parada do ônibus, às cinco da manhã, usei o banheiro e tomei café numa lanchonete, pois estava morrendo de fome, já fazia quase um dia que estava sem comer, pois estraguei meu almoço na cara daquele ser.

Comprei uns pacotes de biscoitos para levar na viagem, água, suco e uma blusa de frio que vi um ambulante vendendo, pois estava muito frio no ônibus e minha blusa era de manga curta.

Às seis da manhã, o ônibus voltou para a estrada. Eu já estava mais abastecida, não iria passar fome no caminho. Enquanto meu celular carregava, olhava quartos e pensões disponíveis para aluguel, assim, quando chegasse na capital, não dormiria na rua. Procurei por vagas de emprego também, mas todas buscavam pessoas com experiência e referência, infelizmente, não tinha nada disso.

Depois de praticamente um dia e meio de viagem, chegava à capital. Me assustei com os prédios e rodovias enormes. A cidade em que eu morava era tão pequena, em relação a esse lugar. Desci na rodoviária às duas da tarde, procurei informação sobre empregos numa barraca de comida, uma senhora muito educada me atendeu gentilmente e eu perguntei tudo que podia a ela.

— Minha filha, mesmo aqui sendo capital, está muito difícil de arrumar emprego. As vagas estão muito disputadas e, pelo que me disse, você só se sairia bem trabalhando em casa de família. Isso também é difícil, porque eles não querem colocar qualquer um dentro de suas casas.

— Eu entendo, dona Maria, mas sei que vou encontrar algo para mim! — Dizia confiante.

— Pensando bem, sei onde você poderia arrumar um emprego. — Maria parou um pouco, olhando para o céu, pensando. Depois me encarou. — Na fazenda São Caetano, que fica a alguns quilômetros daqui. Sempre contratam por lá, seja para a colheita ou para a limpeza dos galpões, cozinhar para os peões e outras coisas que não precisam de um currículo tão exigente.

— E como faço para chegar lá? — Perguntei esperançosa. 

— A vila São Caetano fica a uns quarenta quilômetros daqui, chegando lá, você pode procurar qualquer pessoa e perguntar sobre a fazenda. Na verdade, a vila foi feita pelo dono da fazenda, ele construiu para seus trabalhadores morarem e pagarem um aluguel bem baratinho, descontado do salário deles. Falo isso, porque meu filho mora e trabalha lá há sete anos. Hoje mesmo, ele esteve aqui me visitando mais cedo.

— Onde fica o ponto de ônibus que vai para lá?

— Esse é o problema, lá eles têm seu próprio meio de transporte, que só funciona aos sábados. Lá é praticamente uma cidadezinha, então o pessoal só vem aqui na capital aos sábados, no dia de folga deles. Quem tem seu próprio carro próprio vem o dia que quer, mas o ônibus mesmo só aos sábados. Os táxis não vão mais para lá, pois o dono não gosta de carros estranhos e os proibiu de chegar perto da vila.

— Entendi, eu vou ver o que faço.

— Tente, minha filha. Semana passada chegaram uns cinquenta peões novos para trabalhar, tenho certeza de que estão precisando de gente para auxiliar na cozinha.

— Obrigada, dona Maria, tenha uma boa tarde.

Como ainda iriam dar três da tarde, resolvi me arriscar. Iria a essa fazenda, nem que fosse pegando carona na estrada. Enquanto caminhava em direção à saída da cidade e via alguma mulher com criança, oferecia meus lacinhos para vender. Vi a placa que direcionava à vila São Caetano e continuei. Uma hora ou outra apareceria algum carro e pegaria carona. Era arriscado, mas eu já estava toda lascada mesmo, o que poderia acontecer de pior? 

Me interessei no lugar, porque, como dona Maria disse, sempre estão contratando e também há casas para os trabalhadores por um pequeno valor. Seria o que eu precisava naquele momento, andei uns quinze quilômetros pela estrada de terra e nenhum carro havia passado, já estava quase me arrependendo da burrice de andar numa estrada desconhecida, sozinha e sem conhecer ninguém.

Quando deram seis da tarde, o céu começou a escurecer, as nuvens ficaram pesadas, sinal de que uma forte chuva cairia em instantes. Aí, sim, me arrependi, mas não poderia retroceder, não demorou muito e a chuva começou a cair.

A chuva era forte, estava escuro e eu estava encharcada. Tentava cobrir a lanterna do celular para não cair água, pois não enxergava nada. Nesse momento, me arrependi amargamente de não ter esperado o próximo sábado para ir à tal fazenda, mas como ainda era domingo e eu não podia esperar tanto, fiz isso, pois não podia gastar o dinheiro que tinha à toa. Antes, eu havia perguntado a um taxista se ele poderia me levar o mais próximo possível da vila, mas ele simplesmente me encarou perguntando se eu achava que ele era louco. Não havia entendido o porquê, então só me veio essa ideia absurda em mente. 

A chuva agora parecia mais fraca, eu estava muito molhada e morrendo de frio. O que me deixava atônita era o motivo de nenhum carro passar por ali. Percebi estar chegando próximo de algo. Quando me aproximei, notei ser uma ponte. Logo, meus olhos avistaram uma luz de faróis de um carro.

O carro era vermelho e tinha um símbolo de um cavalo, parecia um automóvel de luxo, o que era estranho, já que estava parado na ponte. Me assustei quando um raio caiu e vi, de vislumbre, um homem em pé, pronto para se jogar de lá.

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