07/2070 – Momentos após o acidente.
Assustada, a gestante não se lembrava de nada ocorrido durante seu parto, nem sequer dos momentos de dor que antecederam a chegada dos gêmeos bivitelinos, no exato momento em que a queda de um objeto causou todo o caos naquela manhã, que tinha tudo para ser um dia típico na rotina de Abner, o médico responsável pelo parto.— Como está Brenda? — Algo acabou confundindo a memória de Abner, ele não se lembrava de como fez os procedimentos após o segundo gêmeo nascer, lembrava claramente de ter removido o primeiro e cerca de dez minutos depois o segundo bebê começava a apontar.— Ela está em uma sala neste andar, está em perfeito estado, você fez um ótimo trabalho. – Verônica era a coordenadora do corpo de médicos.— Eu fiz? Mas eu só removi um bebê, o outro está dentro dela! Ela não pode estar bem. — Abner falava preocupado.— Você está confuso, por isso te trouxemos para cá e aplicamos o sedativo, quando retomar os sentidos se lembrará de tudo que fez.— Meu rosto está queimando. — Abner pegou um espelho e viu que possuía marcas de queimadura por todo seu rosto, além de hematomas.— Houve um cilindro na sala do parto que foi atingido, o gás queimou seu rosto. Mas não se preocupe, são queimaduras superficiais. — Ela tentava acalmá-lo e passar a ideia de que estava tudo sob controle.— Superficiais? Isso está ardendo, e muito. — Abner tocava levemente as queimaduras e via no espelho um grande hematoma que parecia ter sido causado por fortes socos. — E as enfermeiras, como estão?— Todas ótimas. Sedadas. Mas em perfeito estado de saúde. Você e Brenda foram os primeiros a acordarem.— Santo Deus, deixe-me vê-la. A coisa caiu bem em cima da nossa sala? O que foi isso afinal?— São muitas perguntas, tenta se acalmar. — A responsável pelo corpo de médicos, uma mulher alta e de grande porte, era a principal responsável por abrandar os pensamentos e tornar estável os sentidos de Abner. Eram, de fato, muitas perguntas a serem feitas. — Eu vou te levar até ela, mas controle-se e não encha a coitada de perguntas desesperadas.Ao passar por uma mesa onde ficavam os aparelhos cirúrgicos, como bisturis, Abner notou que havia caído no chão algo gosmento como um pequeno tentáculo preto. Convenceu a si mesmo de que era parte de um cordão umbilical, embora a coisa apresentasse um aspecto diferente de qualquer coisa que ele já havia visto.Verônica sabia que o choque seria grande. Ao sair da sala, Abner se depararia com o real tamanho da destruição.— Minha nossa! Onde foi parar a porta? — Ao passar pelo largo corredor, o médico se deu conta de que a porta da sala onde fizera há pouco tempo o parto de Brenda havia sido completamente arrancada. Havia um grande rombo na parede onde antes ficava uma porta. Poeira e escombros de concreto tomavam conta do lugar.Passadas três salas, chegaram ao quarto onde Brenda estava.— Querida, como estão os bebês? — Abner perguntava apressado.— Não me deixaram ficar com eles, Arthur e Lino foram levados assim que o parto acabou — Brenda dizia —, não que eu me recorde, isso foi o que me disseram, eu me lembro apenas de ter nascido o primeiro bebê, lembro de um grande barulho, um grande, e, e...— Você tem certeza de que está se sentindo bem? Eu não lembro do nascimento do segundo bebê.— Estou bem, na medida do possível. Só queria ver como eles estão. Será que foram machucados nessa confusão toda? Não paravam de passar policiais pelo corredor, a porta ficou aberta, eu vi, eles corriam indo e voltando, sussurravam uns para os outros.— Abner, a enfermeira Rita acordou. — Verônica tentava acalmar o ambiente, mas ficava nítido em sua expressão que ela também precisava de ajuda. O que quer que tenha visto antes de Abner e Brenda acordarem a deixou em um estado de pânico, mas é claro que não poderia externar isso e contaminar o ambiente com o sentimento que parecia ser comum a todos, o sentimento de incompreensão.Como poderia um objeto caído no topo de um prédio causar tanta destruição em seu interior, como poderia a porta ter sido arrancada e todo o cômodo em que foi feito o parto estar completamente destruído, e o andar de cima, no qual Abner passava indo ao encontro de Rita, estar perfeitamente intacto?Era tudo confuso, pessoas sedadas, um andar superior intacto e apenas o segundo andar destruído junto à fachada do hospital onde caíra a tal peça de metal. O médico passava perplexo pelo terceiro andar limpo como se não tivesse acontecido nada ali, nem parecia ser o mesmo prédio do mesmo hospital.Ao entrar no quarto, Rita estava sobre a maca, seu rosto estava pálido e recebia medicação pela veia do braço esquerdo.— Abner, que horror, era enorme, você viu como ele...Rita começou a se tremer por completo, estava entrando em um estado de pânico.Um enfermeiro que estava cuidando dos sedativos entrou após ser chamado por Verônica e foi rapidamente à uma bancada pegar uma ampola e uma seringa.— Abner, é melhor que você saia, não está fazendo bem a ela.Abner afastou-se com os olhos ainda presos em Rita.O médico obstetra não teve outra escolha, sua colega de trabalho estava realmente em choque. Seja lá o que tivesse visto, a deixou em um estado que não conseguia ao menos controlar sua fala, gaguejava e se debatia sobre a maca.O efeito do sedativo rapidamente fez Rita adormecer e as convulsões cessaram.— Andressa ainda não acordou? — Abner perguntava ansiosamente por cada um dos presentes na hora do parto, na expectativa de conseguir alguma informação útil.— Vamos comigo, caso ela não tenha acordado ainda, será melhor que você vá para casa, provavelmente a direção optará por não abrir amanhã, há reparos a serem feitos, e a equipe não está em condições de trabalhar.Ambos saíram e foram até o final do corredor na sala em que estava Andressa.— Abner, achei que tudo ia desabar sobre nós. — Andressa tinha um hematoma na testa e um corte profundo no braço.— Você se lembra como aconteceu? A porta... foi arrancada, tem um rombo na parede.— A última coisa que me lembro é de ouvir um grito e levar um empurrão para trás, acho que bati a cabeça, não consigo me lembrar de nada.— Eu também não me lembro, quem fez o parto do segundo bebê?— O segundo? Ele nasceu? Só fizemos o do primeiro.— Isso tudo é muito estranho.Andressa levantou-se da maca e deu a volta na sala em direção a Abner.— Rita. Como ela está?Verônica entrava novamente na sala, agora já não se preocupava em esconder a expressão de pânico.— Rita...Ela parecia não acreditar no que estava prestes a falar, não queria crer que era verdade.— Rita está morta.Andressa e Abner se precipitaram em direção à porta e saíram antes que Verônica pudesse impedir. Rita era a única que se recordava do que realmente havia acontecido. Com ela, morria também as respostas para todas as perguntas que Abner queria fazer. Por que ninguém se lembrava do que realmente havia acontecido? Nem mesmo Brenda, a própria mãe, parecia saber como seus filhos nasceram.07/2070 – Momentos após o acidente. Como nações aliadas, era comum o contato entre elas em casos de eventos que exigiam total sigilo. Os demais países pertencentes à Ordem também desejavam saber os detalhes das possíveis causas daquele incidente que suspeitosamente não teria sido provocado por um erro no acoplamento em uma das estações de construção da cúpula. “Para o progresso é necessário praticar o desapego, acima de tudo, do poder. Solicito que o pratiquem. Para o vosso bem. Aproveitemos o momento para saudar a memória, relembrando as orientações contidas em uma das primeiras mensagens enviadas pela líder anterior, Olória Law. Absorvendo os conhecimentos nela contidos, cada um de vocês perceberá possuírem a lealdade necessária perante o cetro Dimfloat, pois sei que a bravura é mútua às duas “dimensões”. Portanto, declaro que a advertência está feita, e que o próximo passo será uma intervenção direta no sistema que se instaurou. Do seu líder, Jonas Forth” — A mensa
— Eu acho que descobri uma coisa, meu professor de física... Te explico, quando você chegar, vou pegar o ônibus, tchau. Ele sabia que se não desligasse iam surgir as mesmas perguntas que passou pela sua cabeça até entender o que tinha acabado de acontecer. Difícil seria explicar para seu pai. — Entendeu? Ele vai “empurrar” a corrente, e quando não aguentar mais, volta tudo pro indutor. — Diego tentava explicar de maneira simples e didática aquilo que envolvia princípios físicos difíceis de se explicar para alguém que não teve o mesmo nível de escolaridade. — Então tem como tirar energia dessa coisa, e dá pra usar isso para o que a gente quiser? Até pra carregar o celular? — É bem isso, mas o funcionário da escola disse pra eu não falar pra ninguém. — Também acho, muito menos pra sua mãe. — Ué, mas se eu falei pra você, não pensei que teria problema falar pra ela o que aconteceu e explicar como o circuito funciona. — Não sei... Talvez... Ela pode não gostar. — Roger
07/2070 – Dias após o acidente. O dia amanhecia, mas os raios de sol que passavam pela cortina ainda não eram fortes o bastante para fazer com que Diego despertasse. Assim que o relógio marcou cinco e meia, o despertador o acordou. Saindo de casa sem tomar café da manhã, seguiu pela rua do valão, que àquela hora ainda estava parcialmente escuro e coberto por uma leve neblina, ele percorria o trajeto ainda sonolento sem se dar conta das coisas que passavam à sua volta. Uma curva à esquerda, a grande reta levava ao ponto terminal. Cerca de cinco pessoas estavam em frente ao ônibus que seria o próximo a partir. Assim que Diego entrou na fila o motorista chegou convidando para que todos entrassem. A primeira cadeira sozinha logo atrás do motorista era a favorita de Diego, que certamente dormiria durante todo o percurso. Após cerca de sessenta paradas, ele acordou no ponto exato em que deveria se levantar e preparar-se para descer. Seus rituais diários, com o tempo, tornaram sua ro
10/2070 – Três meses após o acidente.Saindo de casa. Era hora de passar pela rua que cercava o escuro valão. Uma curva à esquerda, uma longa reta. Ele chegava ao ponto e entrava no ônibus que o levaria para seu destino. Dormir era inevitável, ele já nem se preocupava em acordar cedo o bastante a tempo de se preparar para desembarcar. Curvas e mais curvas, um engarrafamento ou outro entre elas.A rotina por horas entediante tinha tudo para ser a mesma.Lá vinha ele, o ponto de Diego chegava e nem sinal de movimento para se levantar. Tarde demais. O ônibus prosseguia e o ponto lotado ficava para trás.Estávamos indo rumo ao centro da cidade. Rumo a mais caos, mais aglomerado de gente, mais pessoas seguindo para seus destinos cumprir suas tarefas. Quanto mais nos aproximávamos do centro, maior era o número de pessoas cumprindo suas ordinárias tarefas diárias.— Droga.Após acordar e perceber que provavelmente não chegaria cedo o bastante para assistir os dois primeiros tempos de aula, vi
12/2070 – Cinco meses após o acidente.Após algumas semanas, chegava o tão esperado dia da entrevista. Brenda havia passado todo o mês escolhendo minuciosamente uma babá para cuidar dos gêmeos. Agora que sua licença chegava ao fim, ela retornaria ao trabalho.Marcos se olhava no espelho do quarto, indeciso entre qual de seus dois ternos usar. Brenda aguardava já pronta na sala.— Ele é sempre assim, quando vamos sair demora horas para se arrumar. — Ela falava com a babá. — Espero que Arthur e Lino não peguem essa mania.— Eu estou ouvindo! — Marcos gritou do quarto.A recém-contratada dava leve sorrisos de volta sempre que Brenda falava, parecia tentar esconder a insegurança de ficar sozinha logo no primeiro dia com as crianças. Embora já tivesse trabalhado com bebês antes, o fato de serem duas crianças para cuidar aumentava o nível de dificuldade desse trabalho. Ela em suas idas ao quarto tentava decorar a cor das roupas dos gêmeos e em qual berço cada um ficava. Havia uma, entre as
— Desculpem, não estou bem, preciso... eu... com licença... — Abner se levantou e foi rapidamente em direção à saída do estúdio. Houve uma longa pausa enquanto todos observavam a cena. Rodrigo buscava um meio de dar prosseguimento à entrevista.— Então, como é a sensação de serem pais em dose dupla? Como estão sendo as madrugadas e a rotina do casal?Marcos e Brenda pareciam desconfortáveis com a repentina saída de Abner, perceberam a tentativa desesperada por parte de Rodrigo em retomar o clima da entrevista.— Ah, já quase não dormimos durante a noite, Arthur chora bastante, sabe. Isso para não falar no cheiro das fraldas. — Marcos falava com todo o seu bom humor. Brenda deu um incisivo olhar de repreensão.— Está sendo maravilhoso ver as crianças crescerem, Lino já tem bastante cabelo. Em alguns dias já vou voltar ao trabalho. É uma experiência realmente incrível. — Brenda olha para a câmera e faz um aceno. — Ruth! À essa altura você já deve ser nossa babá preferida!Era visível a t
12/2070 – Cinco meses após o acidente. O meio de dezembro se aproximava e com ele vinha a formatura. O evento que estava acontecendo na quadra de sua escola contava com a presença de familiares dos formandos. Logo que entrávamos na quadra, era possível ver a longa mesa com grande parte dos professores que deram aula no último ano de Diego, também havia alguns professores dos anos anteriores. De frente para a mesa de professores estava a turma de formandos, Diego se sentava na ponta da segunda fileira. Em sua frente, haviam dois lugares vagos, seus pais estavam em cadeiras mais atrás. A cerimônia ainda não havia começado.Enquanto outros alunos chegavam, Diego conversava com três amigos próximos. Havia no ar o clima de despedida, além de ser a última vez que estaria com grande parte de seus amigos e professores. Um fato que sabia ser algo inevitável vinha o perturbando: Essa poderia ser a última vez que veria Rebeca.Ele se lembrava da cena, três anos atrás, quando a viu entrando pela
★Na manhã daquela terça-feira, os raios de sol batiam forte na janela do quarto, parte dos raios atravessava a cortina e incidiam bem no rosto de Diego. O frio árduo da madrugada foi gradualmente substituído pelo calor que àquela altura o acordava. A grossa camada de cobertas empurradas para o canto da cama era uma prova da mudança brusca de temperatura. Abriu os olhos e se deu conta do mormaço que preenchia seu quarto. A claridade forte era um sinal de que talvez ele tivesse dormido além da conta, ou um indicativo de que o verão estava chegando ao seu ápice.Ele descia as escadas tomando consciência de que calor estava maior que no último domingo, maior que a segunda-feira, e ele pressentia que o dia seguinte seria ainda mais quente.— Pelo calor, levantei achando que já era meio-dia. — Diego falava para sua mãe na sala.— Nem fala, está quente mesmo. Mas seu pai saiu faz pouco tempo, está cedo.Diego sentou-se no sofá ao lado de sua mãe e começou a calçar seu tênis. Rosa bebia um su