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Sou tomado por aquela sensação de olhos seguindo cada ação minha; olhos perfuradores de nuca. Para ser justo, não há muito a ser seguido, pois todos os meus movimentos também são feitos apenas com o olhar, voltado para a folha de papel pregada na parede do cubículo, cabeça inclinada ligeiramente para cima. O perseguidor, por sua vez, não passa de Chris, provavelmente de saco cheio da minha contemplação.
_ É um belo desenho. _ Ele suspira de seu cubículo, bem ao lado do meu.
Atribuo o acaso de nossa amizade ao fato de que sempre fomos vizinhos aqui no setor. Um belo dia, entre os cliques do mouse e o brilho dos monitores, Chris, o mais novo funcionário da empresa, interrompeu a música da monotonia e perguntou as horas. Uma coisa estúpida de se perguntar visto que ele poderia ter se informado apenas checando o canto in
1Sempre observei o vai-e-vem da rotina de um casamento; cortesia de meus pais. Lembro-me de que durante a infância e a adolescência, boa parte de meus amigos não dispunham desse luxo, tendo seus pais separados ou em processo de divórcio. Eu ia à casa de um amigo e ele poderia não estar lá porque era fim de semana, e nos fins de semana ele ficava com o pai. Houve, inclusive, uma ocasião em que saí da cidade para visitá-lo num desses típicos fins de semana com o pai. A razão para esse deslocamento não poderia ser outra se não o fato de que o pai do meu amigo morava no litoral, e era uma excelente desculpa para irmos juntos à praia. Lá, entre os mergulhos e o sol quente na cabeça, era comum ouvir o pai separado desfiar uma série de reclamações contra a esposa, involuntariamente envenenando a cabeça do filho. A mesma coisa
1_ Agora que sua mãe não está em casa... Desde quando você fuma, filho? _ Tenho que congratular meu pai, afinal ele esperou não apenas que minha mãe saísse de casa como também aguardou o intervalo entre o primeiro e o segundo tempo da partida de futebol que estamos assistindo pela televisão. Pelo bem da verdade, suspeito que ele já esteja nessa espera há bem mais do que quarenta e cinco minutos. Muito cortês de você, meu caro velho._ Desde quando Marjorie... _ Desnecessário dar a esta declaração complementos. Passo a me sentir culpado por uma vez mais, usar a morte de Marjorie assim, com o puro intento de desencorajar conversas inconvenientes pra mim. Ainda não consigo simplesmente me abrir e confessar que, naquela ocasião do velório, meus instintos imploraram por aquele trago venenoso porque eu tinha esperança de que
1Max acaba de me beijar. Não sei o que fazer disso, que não seja me apavorar. Talvez, não deva fazer nada. É minha resposta para tudo nessa vida: desistir antes mesmo de começar. Não posso negar que senti algo quando seus lábios tocaram os meus. Não por que o beijo já não faz parte da minha vida há muito tempo. Simplesmente porque o beijo veio dele.O coração acelerou por motivos que nada tinham a ver com o assalto. Eu me vi num misto tenebroso de culpa e prazer.Max... Seu nome, seu sorriso de covinhas, seus lábios ressecados pela noite...Preciso fugir. Preciso correr.
1Vou voltar um pouco no tempo, os dias anteriores à minha tensa conversa com Chris, na qual revelei detalhes de um encontro quase casual com a morte, que ainda me faz parar de pensar só para sentir o medo, a fim de contar o que aconteceu depois de uma das piores noites da minha vida. No dia seguinte, sábado de manhã, eu corri. Fazia uma bela manhã e, após tomar a medicação prescrita, acreditei que meu problema de circulação estava acabado. Acordei cheio de disposição, embora apenas no corpo, com os primeiros raios do sol me convocando para uma corrida no parque. Motivado, acatei ao chamado, calcei o tênis, bebi café, surpreso com o fato de que a máquina anciã ainda vive, me despedi de Seu Agnaldo e fui. Não fosse por um detalhe aqui e outro acolá, teria sido uma corrida de sábado como todas as corridas de sábado costumam ser
1O canto dos pássaros penetra com suavidade os ouvidos enquanto minha cabeça repousa no lugar mais confortável do mundo: as pernas de Lilian. Ela desliza os dedos por entre meus cabelos úmidos de suor; eu me contento em deixar os olhos cerrados, apreciando os suaves raios de sol da manhã contra meu rosto e saboreando a paz. Meus tênis e meais usados estão aqui perto, recostados no tronco da nossa árvore, junto com a mochila pesada que Lilian sempre carrega. Neste momento, somos atores do palco perfeito, o qual nem minhas mais robustas fantasias foram capazes de esculpir. Seria um sonho, não fosse a voz encorpada de Lilian e seu jeito disfarçadamente desinteressado, tecendo uma conversa surreal demais para meros frutos de um sono recheado. Com ela, o anormal é o normal._ Foram trinta e oito... Ou trinta e nove? Quarenta e três. Isso. Não me lembro da matemátic
1É o falatório de Lucas, em segundo plano, diante de minhas próprias divagações e latidos de Woodstock que me fazem sentir leve como uma pena, subindo e subindo, empurrada por um gentil vento. Esta manhã de sábado é particularmente diferente. As pessoas passam por nós com olhos curiosos, alguns até invejosos do casal feliz, do pré-adolescente e do cachorro, sem cogitarem que essa imagem não é a melhor representação da realidade. Não somos uma família, mas, de fato, nos encontramos no ápice da felicidade que podemos angariar no momento. Sempre que me pego com Lilian num cenário suave desses, faço um exercício mental de memorizar tudo quanto for possível. Hoje é o jeito que o brilho do sol torna os pelos dos braços de Lilian dourados, o ruído das rodas de skate de Lucas deslizando pela parte
1Dia desses eu sentei com Lucas no sofá, o desafiando para uma partida de nosso game de futebol predileto. Meu time marcou cinco gols só no primeiro tempo, tendo sofrido apenas um. Infelizmente, só assim para meu time ganhar qualquer coisa, ultimamente. Lá pelos minutos do quarto gol, Lucas angariou coragem para revelar um pequeno, porém, mui importante, trecho da corrida que Lilian, por esse ou aquele motivo, ainda não havia me confessado. Lucas afirmou que o “susto”, como ele e a mãe definiram, aconteceu cerca de dois anos atrás. Lilian simplesmente saiu pela porta de casa, sem levar documentos ou dinheiro, e voltou somente cinco dias depois, sem nunca mencionar onde havia se metido. Lucas revelou que essa foi de longe a coisa mais terrível que sua irmã fizera, e a lista é extensa e variada. Se eu me sinto abalado só de cogitar as possiblidades de um desapare
1Termino a deliciosa comida às pressas, enfiando as três últimas garfadas na boca, uma após outra sem me preocupar com a mastigação. Rapo o prato ruidosamente e o jogo dentro da pia. Ainda mastigando, ganho olhares de meus pais._ Tudo isso é pressa de ver a namorada, filhote?! _ Minha mãe pergunta comendo calmamente seu jantar. Já faz uns dias que ela soube de meu envolvimento com Lilian. No instante em que revelei a meu pai que “conheci uma garota”, já o fiz prevendo conscientemente que meu velho não ia demorar a contar para a ursa que o seu “filhote” estava prestes a ser tomado dela. Claro que meu pai exagerou, e muito, com o único intuito de irritar minha mãe. A implicância é a tônica do relacionamento deles. Nunca falta motivo pra um pegar no pé do outro e, se os motivos estiverem escassos, eles ca&cced