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Termino a deliciosa comida às pressas, enfiando as três últimas garfadas na boca, uma após outra sem me preocupar com a mastigação. Rapo o prato ruidosamente e o jogo dentro da pia. Ainda mastigando, ganho olhares de meus pais.
_ Tudo isso é pressa de ver a namorada, filhote?! _ Minha mãe pergunta comendo calmamente seu jantar. Já faz uns dias que ela soube de meu envolvimento com Lilian. No instante em que revelei a meu pai que “conheci uma garota”, já o fiz prevendo conscientemente que meu velho não ia demorar a contar para a ursa que o seu “filhote” estava prestes a ser tomado dela. Claro que meu pai exagerou, e muito, com o único intuito de irritar minha mãe. A implicância é a tônica do relacionamento deles. Nunca falta motivo pra um pegar no pé do outro e, se os motivos estiverem escassos, eles ca&cced
1Eu nunca vou me esquecer da primeira vez em que o vi. Ele não tinha nome, ainda, mas nunca foi mais um nem mesmo por um segundo. Deve ser por conta da maneira com a qual tomei conhecimento de sua existência. Foi num sábado de manhã excepcional, pelo fato de que eu nunca ia ao parque aos sábados. Ainda mais tão cedo. Nessa hora, eu geralmente durmo após uma sexta-feira insone. Não naquele sábado, naquela manhã igualmente insone. O peso andava mais pesado que o normal, o barulho que vem de dentro, ensurdecedor, a escuridão mais densa... Eu precisava sair e bater perna no meu parque ou ia acabar fazendo besteira. Todas as manhãs, há muitos anos já, eu acordo querendo fazer besteira; essa uma específica que vai acabar com tudo para sempre, que vai me liberar da vida. Infelizmente, o mundo ao redor não considera essa uma boa ideia, especialmente Lucas e mi
1O parque não é a mesma coisa sem Lilian, mas hoje muitas coisas estão diferentes; a começar pelo lugar. Ao invés da minha amendoeira amiga e do pedaço de grama gasto por Lilian e por mim, estou sentado num dos bancos, bem longe do meu canto favorito. O horário é estranho. O relógio de pulso indica 15h37min, mas com a chegada do outono o sol não queima a cabeça e não preciso usar boné. Até tenho bonés, mas nunca os uso porque sempre estou fora do sol nesse horário. Hoje, a raridade se deu por ocasião de um feriado, o que também fez metade da cidade sair de casa e entupir “meu” parque. Entretanto, de todas as mudanças, nenhuma é menos sutil do que a mulher de cabelo azul me acompanhando. Eu equilibro um cigarro entre os lábios; ela um pirulito._ Quer trocar?_ Não sei se te contaram,
1O que é, o que é... Um pontinho branco no fundo preto?_ Você já está há um tempão olhando pra isso.Lilian e eu estamos ao balcão da cozinha, que é um tampo preto de madeira recém-pintado. Nossos bancos são altos, o que nos permite esticar os joelhos de quando em quando. De braços cruzados, eu olho para os únicos objetos sobre o tampo: um copo de vidro cheio de água, um frasco de plástico na cor laranja, com um adesivo preto em volta e pequenas letras brancas de identificação, uma tampa verde bem ao lado deste e, no fim da fila, uma bolinha branca poderosa e desafiadora. No começo, a água do copo estava gelada, mas a temperatura ambiente fez com que gotículas se condensassem sobre a superfície do vidro e parassem abaixo da base do copo, molhando o balcão. O tempo passou tão lentamente qua
1Encontro com Lilian nos portões do parque. Ela está linda, de um jeito quase saudável. As bochechas parecem mais preenchidas e erguidas. Os cabelos estão parcialmente escondidos sob um gorro de lã cinza. Os lábios vermelhos como nunca vi antes. Um lenço enrolado no pescoço, de cor vistosa e estampa xadrez. O olhar brilhante, aquoso, porém sem indício de prantos. Corpo e pés, de aspecto usualmente frágil, envoltos numa pesada jaqueta preta e num par de botas, respectivamente. As duas mãos ocupadas com dois copos de papel, cheios de qualquer substância fumegante. Café é meu palpite._ Está frio. _ Ela me cumprimenta me oferecendo um dos copos.Ultimamente, Lilian tem se mostrado mais atenciosa comigo. Quase como se ela fosse capaz de enxergar além da própria escuridão, vislumbres de um mundo novo, com pess
1Mais de uma semana depois do jantar, dei falta de algo importante e imediatamente visualizei os motivos por trás da falta. Meu caderno sumiu! O mais novo deles, aliás. Esse crime só podia ter uma culpada, obviamente._ Me-lis-saaaa!Minha irmã jurou por todos os deuses da arte que não tinha nada a ver com o furto. Sua declaração, infelizmente, teve veracidade, pois ela terminou confessando que já sabia do meu hobby desde a época em que o iniciei. Isso me chocou por um momento, mas eu estava realmente concentrado na transgressão mais recente._ Eu gostava mais de suas estórias antigas, irmãozinho! Eram mais divertidas! As de agora são muito deprimentes!É lógico! Se ela leu os cadernos antigos, também leu o atual... Essa invasora da privacidade alheia!_ Pelo menos eu descobri porque você é um cara t&ati
1A vida tem um jeito todo especial de dar rasteiras na gente e a que eu levei aconteceu no pior momento possível, ou seja, quando eu não cabia em mim de tanta felicidade. Tanta felicidade tem desses problemas, nos sentimos invencíveis, capazes de tudo. Desde o dia em que conheci Lilian fui provado de todas as formas imagináveis. Presenteá-la com o muro foi um marco em nossas vidas, um divisor de águas. Tomamos uma distância tão grande do monstro que sempre corre em nosso encalço que não apenas ele nos perdeu de vista, como também avistamos, ao longe, a linha de chegada. Se essa corrida não fosse tão extensa e recheada de trechos íngremes e armadilhas, poderia dizer que o dia em que dei o muro de presente a Lilian foi o dia em que todos nós cruzamos a linha de chegada com ela. Mas nós sabíamos que ainda não era o fim. Falta um últim
1Ontem eu não dormi. Hoje converso com Seu Agnaldo, ele sentado à sua mesa, acompanhado de seu jornal e seu café e eu apenas perdido._ Desgraça, desgraça... Ah! Desgraça e meia! _ Sibila o homem. _ Jornais não são feitos pra boas notícias. Só o caderno de esportes tem coisa boa, exceto pra nós dois. Desgraça de time!_ Na segunda divisão o ingresso é mais barato.Ir ao estádio com meu velho. Mais uma coisa que nunca mais farei._ Um velho que nem eu não tem mais pique pra ir ao estádio... _ Seu Agnaldo faz uma pausa, beberica o café e olha pra mim como que selecionando o melhor momento pra falar. _ Que horas será o velório?_ Uma hora._ Vou tentar ir. _ Mais umas páginas de jornal são viradas._ Minha mãe contou que foi o senhor quem a aju
1A estrada a frente parecia estática - uma bela fotografia. O verde, de um lado e de outro, era fresco, mas não dançava. No meio, a linha cinza de asfalto que corta a natureza, subia sem sair do lugar. O vento entrava pela janela do carro bagunçando os cabelos. Sobre meu peito, uma medalha de ouro vibrava com o motor do carro. Dentro de dois minutos, aquela estrada iria virar de cabeça pra baixo.Estávamos no carro fazia mais de uma hora. Meu pai ficara incumbido de me dar carona pra casa, já que minha mãe não estava passando muito bem, e ainda por cima tinha que cuidar do bebê. Eu estivera numa competição de ginástica, por isso a medalha de ouro.A ginástica era uma dessas coisas que aconteceram na minha vida sem eu perceber. Um belo dia, eu ficara até tarde na quadra da escola, me debruçando sobre um trabalho manuscrito de mais de vinte p&aacut