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A estrada a frente parecia estática - uma bela fotografia. O verde, de um lado e de outro, era fresco, mas não dançava. No meio, a linha cinza de asfalto que corta a natureza, subia sem sair do lugar. O vento entrava pela janela do carro bagunçando os cabelos. Sobre meu peito, uma medalha de ouro vibrava com o motor do carro. Dentro de dois minutos, aquela estrada iria virar de cabeça pra baixo.Estávamos no carro fazia mais de uma hora. Meu pai ficara incumbido de me dar carona pra casa, já que minha mãe não estava passando muito bem, e ainda por cima tinha que cuidar do bebê. Eu estivera numa competição de ginástica, por isso a medalha de ouro.
A ginástica era uma dessas coisas que aconteceram na minha vida sem eu perceber. Um belo dia, eu ficara até tarde na quadra da escola, me debruçando sobre um trabalho manuscrito de mais de vinte p&aacut
1Eu sempre soube que um dia deixaria a empresa. Era uma certeza absoluta, sem qualquer fundamento. Soube no dia em que fui efetivado no quadro de funcionários. Nem por isso fiz qualquer movimento em direção à demissão, mesmo crendo que, mais dia, menos dia, levaria um chute na bunda. Seja como for, nunca fui do tipo de homem que corre atrás da mudança. Eu prefiro pular no barco quando este já está andando a ter que ligar o motor por conta própria. Como poderia imaginar que eu mesmo entraria na sala de El Jefe a fim de pedir as contas?_ Eu te dei três dias de folga, filho!Como recomenda o estatuto da empresa e as leis trabalhistas. Três dias sem trabalho e sem desconto no salário em respeito ao luto do empregado. Quem inventou a lei não entendeu que nem uma vida inteira de folga é capaz de compensar o luto da perda de um pai. Quantifica
1É a primeira vez que visito o quarto de Lucas. Sempre soube que o quarto de um adolescente é lugar sagrado. Eu nunca tive esse luxo, pois passei a maior parte da vida dividindo o espaço com minha irmã, sem mencionar que ela sempre ocupou a maior parte do quarto com suas roupas e inúmeros bibelôs. Nunca fiz questão de ter a maior parte ou um quarto inteiro só para mim. Desde que ela não tocasse no meu baú, estava satisfeito. Infelizmente, como descobri recentemente, nem mesmo o diminuto espaço do baú embaixo da cama havia sido respeitado.Na escola, especialmente na época entre os quatorze e quinze anos, descobri o que havia de tão importante na sagrada “privacidade” do quarto de um garoto, ao menos, do ponto de vista de meus colegas. Tinha a ver com as revistas masculinas que circulavam clandestinamente dentro de livros e mochilas. Um coleg
1O barulho das buzinas e tambores praticamente mergulha no som da cantoria incessante, abalando as estruturas desse lugar. Por todos os lados há homens e mulheres uniformizados e aflitos. Alguns de rosto pintado, outros mais discretos, apenas berrando a plenos pulmões. Um suspiro coletivo dado por trinta mil pessoas precede um silêncio tão poderoso quanto a gritaria. O cenário de guerra é apenas um estádio lotado, e o motivo para ânimos agitados, como não poderia deixar de ser, são os minutos finais da última partida do campeonato. Um ano após a tragédia, estamos prestes a sair dessa maldita segunda divisão!_ Uuuuuh! _ Levo as mãos aos cabeloscomo todos os torcedores fazem, até os que não têm cabelos.A bola passa raspando pela trave. O placar está dois a um, ao nosso favor. Aos quarenta e dois minutos do segu
1Hoje acordei com os pés suados. Mal abria os olhos naquele descolar de cílios que, eu sei, dura uma fração de segundo, mas, em momentos nos quais o corpo ainda não chegou ao ponto de expurgar o sono, parece que se perpetua no infinito, e logo notei aquela sensação familiar de pés pegajosos. Um friozinho característico de suor secando na pele em meio ao ar gelado da manhã, invadindo o quarto através de uma pequena fresta na janela, foi o suficiente para arrancar-me da nebulosidade para o despertamento. Num movimento a muito tornado uma segunda natureza, chuto a coberta para o mais longe possível do corpo e, ao deparar-me com os pés enroscados nela, atino para o motivo do suor.Dormi de pés cobertos. Odeio quando isso acontece.Nunca tentei descobrir significados profundos em tal hábito, no entanto, permanece o fato de que para que eu tenha uma
1O céu sabe ter seus momentos de clichê, chorando copiosamente nesta preguicenta manhã de domingo. Se eu me descolar da realidade desenrolando-se diante dos meus olhos, da identidade daquela sendo velada por família e amigos, posso até me imaginar habitando uma dessas cenas fúnebres de um drama das oito qualquer. Lá fora a chuva cai torrencialmente; nuvens barulhentas, vento que uiva, ar gélido. Aqui dentro da capela as paredes esquentam os corpos vivos, nos enfiando num bolso seco e protegido de uma cidade inexoravelmente molhada. O céu chora junto com aqueles deixados pela jovem Marjorie. Mais clichê, impossível.Talvez seja esse ar de cafonice o responsável pelo descolamento. Sei que estou aqui, sentado, assistindo o serviço como todos os outros, mas não é essa a sensação... Ao menos, não é a sensação c
1Aí está você, céu! Colorido de muitas cores, desta vez encontra-se léguas de um momento clichê. Evolução, suponho. Os laranjas, amarelos e rosáceos se esticam em grandes tiras intermináveis, se enfrentam, se agridem, fazem as pazes quando chegam perto demais dos diversos tipos de azul que monitoram toda a brincadeira. Na verdade, este céu não parece um, mas uma fornalha em pintura de duas dimensões. Há uma distinta falta de profundidade a este teto solar. Aperto os braços contra o peito ao sentir o crescente gelar de uma brisa que já nasceu anormal, sem a suavidade das brisas. Talvez o frio me atinja mais porque estou nu do quadril para cima. Onde foi parar minha camisa? Será que eu vestia uma, em primeiro lugar? Onde estou afinal? Por que o céu parece maior do que o normal?_ Quem fica de pé do alto de um prédio de v
1Para toda ação há uma reação. Quem diria que sair correndo pela chuva e, sucessivamente, deitar na lama por não sei quanto tempo iria me deixar de cama, portando um resfriado que quase chegou às vias da pneumonia? Ontem, ainda no meio daquele domingo enlameado interminável, lutava contra a lacuna em branco que teimava desordenar meus pensamentos. O barro molhado do parque parecia querer invadir meu cérebro e soterrar todo e qualquer raciocínio. Nos escombros que restaram do singelo colapso mental, veio-me uma única noção: Amanhã é segunda-feira, dia de encarar a tela do computador e mergulhar no alívio da vida banal e insossa. Quem diria que um mero fim de semana cheio de insólitos acontecimentos poderia despertar em mim a sede por aquela vidinha mais ou menos? Uma saudade das paredes cinza-claro, do ar condicionado que, religiosamente, pifava
1Minhas aventuras tentando reviver o conto do quase finado Felix provaram-se tão esmorecidas quanto meu desventurado protagonista. Na verdade, Felix ainda está lá, o coitado, pendurado naquele elevador, já faz uns dez anos, senão mais. A única diferença de lá para cá é que eu decidi arejar sua situação de confinamento. Desde a noite em que reabri o baú, permiti que Felix afrouxasse a gravata e tirasse o terno. Quem sabe amanhã, com sorte, eu consigo fazê-lo tirar a camisa e libertar seu estômago peludo e branquelo. Ele perderá em dignidade, por certo, mas ganhará em conforto. Na hora da morte, deve ser preferível que o último prevaleça sobre a primeira. De qualquer forma, a situação basicamente estática de Felix é refletora da minha produção escrita, a qual atingiu incrí