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Sr. Rotina: Para dentro do baú

1

Para toda ação há uma reação. Quem diria que sair correndo pela chuva e, sucessivamente, deitar na lama por não sei quanto tempo iria me deixar de cama, portando um resfriado que quase chegou às vias da pneumonia? Ontem, ainda no meio daquele domingo enlameado interminável, lutava contra a lacuna em branco que teimava desordenar meus pensamentos. O barro molhado do parque parecia querer invadir meu cérebro e soterrar todo e qualquer raciocínio. Nos escombros que restaram do singelo colapso mental, veio-me uma única noção: Amanhã é segunda-feira, dia de encarar a tela do computador e mergulhar no alívio da vida banal e insossa. Quem diria que um mero fim de semana cheio de insólitos acontecimentos poderia despertar em mim a sede por aquela vidinha mais ou menos? Uma saudade das paredes cinza-claro, do ar condicionado que, religiosamente, pifava uma vez a cada três meses, dos cliques insistentes nos mouses dos computadores e nos próprios teclados que, em conjunto, transformavam-se em um mantra que nos punha a todos a não pensar muito na vida e fazer um bom trabalho, ou seja, nem aquém, nem além, apenas o ordenado. Que saudade que invade o peito! Reconheço, com alguma relutância, que este súbito charme do escritório e dos cubículos é devido a duas mulheres que, cada uma a sua maneira, resolveram perturbar-me a quietude. Uma debaixo da terra; a outra sobre a terra de um parque. Para minha mortificação, acabei marcando encontro com ambas na terra dos delírios. 

Nada de escritório para mim, não depois de pegar toda aquela chuva. É engraçado como falamos, com tanta naturalidade, que “pegamos toda aquela chuva”. Como se toda a chuva de domingo resolvesse atingir somente o meu corpo, quando poderia estar molhando toda uma cidade. A gripe é forte e irritante o suficiente para eu me sentir no direito de apropriar-me de toda aquela chuva como quiser. Ao invés de cinza, encaro a cor indefinida das paredes da sala; ao invés de planilhas, tenho uma tigela de um caldo quente me esperando, parte integrante de um pacote comum chamado “mãe furiosa”. Esse tipo que só de olhar já consegue transportar qualquer homem de vinte e poucos anos de volta aos velhos tempos das chineladas e dos chocolates-quentes. Não dá pra me ressentir. Eu cheguei em casa quase desmaiado ontem.

_ Onde você estava com a cabeça, Max, pra decidir sair na chuva daquele jeito? Quer me matar de preocupação?!

Esta última colocação, especificamente, já penetrou meus ouvidos, desde ontem, pela sétima vez. É lógico que contei, afinal não há muito a se fazer no atual estado miserável. Creio que entendo a apreensão de minha mãe, ao se dar conta de que o filho havia sumido no meio do funeral de uma suicida para horas depois, já de noite, encontrá-lo completamente ensopado, trincando os dentes, à porta de casa. Posso ter agravado ainda mais a situação porque deixei exatamente trinta e sete chamadas perdidas no celular, todas dos meus pais. Este número não contei; foram eles. Andam usando o “trinta e sete” toda vez que querem me repreender. Usaram o suficiente, inclusive para me causar remorso por toda a preocupação. A ursa acha que estou abalado unicamente por causa de Marjorie. Não é exatamente uma inverdade, apenas um fato incompleto. Melhor deixá-la acreditar nisso por enquanto. 

Ontem, de volta ao domingo, ao parque e ao toró, as dores terríveis no pé direito voltaram. Exausto e abatido, não haveria nada naquele momento que seduziria meu lado teimoso a ponto de voltar a correr todo o caminho de volta para casa. No primeiro ato sensato do dia, ou da noite que chegava, se é pra ser honesto, liguei para o táxi e esperei por volta de meia hora na entrada do parque, imóvel como estátua, salvo pelos tremores que iam e vinham devido ao vento gelado contra meu todo molhado. “Trânsito péssimo!” foi o cumprimento do taxista, seguido de um “Boa tarde” que soou desnecessário. Dentro do veículo, estirado no banco de trás como em meu sofá, tirei os tênis e as meias, na tentativa de aliviar os pés, uma vez mais vermelhos e dilatados. Meu maior desejo era poder dar conta da dor através de puro poder mental ou qualquer coisa que o valha, mas acabei descobrindo que nem sempre só a força de vontade é suficiente para controlar certos tipos de desconforto. Mesmo assim, devo confessar, é preferível cozinhar na dor de um pé inchado do que de uma mente recheada de medo e terríveis possibilidades. Durante toda a corrida de táxi, logrei não pensar em Bolt nem sequer uma vez. Infelizmente, foram estes curtos vinte minutos de trajeto os únicos do dia inteiro não dedicados a ela.

Sei que, ao chegar em casa, o céu pastoso já escurecia, o que indicava que, de fato, passara mais tempo debaixo do temporal do que havia imaginado. Fui recebido com um abraço apertado de ursa, seguido de uma patada no ombro igualmente ferina; dois gestos tradutores daquilo que sempre entendi por zelo materno. Antes que pudesse dizer algo como “Mãe, eu posso explicar...”, já havia saído de mim um espirro colossal, acompanhado de uma série de novos espirros, mais tímidos, os quais, por encanto, quebraram toda a tensão do ambiente. Em questão de segundos, mãos já despiam minha camisa e me conduziam, aos empurrões, na direção do chuveiro. O ponto alto do domingo foi a água morna fazendo massagem na escápula que havia se transformado em pedra depois dos vários acontecimentos do dia. Ali, embaixo de uma precipitação generosa que nada tinha a ver com o dilúvio na rua, voltei a pensar nela. Não na morta, mas na viva, ou naquela que espero que ainda esteja viva. Fiquei ali curtindo aquela aflição entre o vapor quente da água até o momento em que as pontas dos dedos criaram rugas e os gritos de “Sai desse chuveiro, Max!” soaram como sirenes pela terceira vez. No meio de todas as contagens, eu digo que cada mãe no mundo opera a própria tolerância com os filhos sob um número mágico; o da minha é o número três. Uma vez atingida esta quantidade de avisos, a mulher perde a paciência, muda o tom de voz e eu sei, com plena certeza, que é a hora de recuar. Sempre foi assim, durante toda a minha vida. Maior de idade ou não, com ou sem resfriado, não se testa a paciência de minha mãe mais de três vezes. Até meu pai sabe disso, e que Deus te abençoe, velho! Você pode imaginar como eu cheguei à descoberta do número mágico. Depois de aprender, e eu aprendi rápido, nunca mais desbravei a quarta vez de qualquer ato de descarada rebeldia contra ela. Gosto de pensar que se trata de maturidade, não de covardia.

Após receber roupas secas e uma abençoada caneca de leite fervendo com um pedaço de canela em pau afundada no meio, aninhei-me no sofá, pés para fora, o resto do corpo embolado nas cobertas grossas. Foram algumas horas depois quando todas as dores e desconfortos entraram em acordo para me atingirem o corpo com um só golpe. De repente, fui abatido por um frio absurdo que fazia doer a pele, o qual, não importava a temperatura do leite e as camadas protetoras de coberta, não amenizava. Os cabelos recém-secados começaram a grudar a partir da nova viscosidade que surgia na testa; a parte interna do corpo entrava em ebulição, fazendo dos órgãos autênticos ingredientes de uma sopa. Um último espirro evoluiu rapidamente para tosses descontroladas que culminaram em um descarrego de vômito bem no tapete da sala. O tapete que, estou ciente disto, dava um trabalho enorme para limpar - já tive meus encontros com o tapete sujo e o aspirador muitas vezes. Infelizmente, não era hora para me preocupar com tais trivialidades. O chão chegou-se muito perto de meus olhos e a sala escureceu como a tela de fim de filme antigo. Barulho não fiz quando desabei no sofá, mas desmaiar, desmaiei.

2

Voltei rápido, assim espero, e depois caí de novo, mas de sono. Ao abrir os olhos já era o dia seguinte, e fui recebido por rugas ao redor da boca e nos cantos dos olhos de mamãe. Genuína preocupação, diziam os relevos em seu semblante.

_ Max? Filho..., você desmaiou. _ Minhas pálpebras pesam toneladas e a imagem de minha mãe torna-se turva, enquanto luto para manter-me acordado, no entanto, o mundo parou de girar à minha volta e ao invés de um desmaio, entendo que, desta vez, era apenas um cansaço imbatível que vai logo me nocautear. Francamente, esta foi a melhor notícia do dia.

As horas constituintes do intervalo entre o resto do domingo e o meio dia de segunda-feira estão encobertas em névoa. Sei que entrei no carro, o qual meu pai conduzia; sei que entrei pela porta da frente de uma clínica e tropecei de forma embaraçosa ao deixar a mesma; sei que minhas pernas não estavam num bom dia, portanto, estão perdoadas pelo tropeço; sei que o médico de plantão me entupiu de algumas medicações na veia porque o febrão não parava; sei que, talvez, as tais medicações sejam as verdadeiras responsáveis pelo tropeço; sei que vi uma folha branca de papel com algo escrito, suspeito que seja uma receita médica; sei que havia uma segunda folha e hoje, quando rolei da cama para o chão, declarando estar atrasado para o trabalho, descobri que a tal segunda folha tratava-se de um atestado médico. Falei com meu chefe, tossindo muito ao telefone. Estou liberado pela semana para me curar dessa gripe.

_ O médico disse “princípio de pneumonia”! Você não pode sequer deixar essa casa, mocinho! Onde é que você estava com a cabeça? Poderia ter morrido, Max! _ A ursa fazendo o drama das mães. E não seria isso uma ironia com “i” maiúsculo? Tanto Bolt quanto Marjorie achariam graça, tenho certeza! Começo a rir e minha mãe interpreta que a febre piorou e que estou delirando. Há uma possibilidade de que ela não esteja errada. _ Suas roupas estavam cobertas de lama. _ Sei exatamente onde chegará a próxima pergunta. Fixo os olhos nas pequenas ondas que se formaram dentro da tigela de caldo ao soprá-lo, como se a verdade da vida estivesse bem ali. _ Você não pegou apenas chuva. Onde você estava e o que fazia?

Honestamente, estou feliz que a ursa se segurou, mediante hercúleo esforço, por um dia inteiro antes de me bombardear com o interrogatório. Na hipótese de ela ter feito isso na noite de ontem, a quantidade de bile no chão da sala teria sido duplicada. 

_ Estava no parque _ começo com a verdade.

_ O parque onde você corre todos os sábados? _ Meu pai resolve unir-se ao interrogatório.

_ Esse aí, sim. _ Sopro mais a sopa. A tigela ainda está morna nas mãos, é reconfortante. Ainda não comecei a me alimentar, mas pela cor do caldo, é canja de galinha. O cheiro passou longe do nariz entupido.

_ Por quê? _ Minha mãe nunca soube ser muito sutil; afinal, as ursas nunca são. Tomo a sopa, ou melhor, a canja, porque a mentira perfeita não se forma no cérebro em tempo hábil. O líquido morno desce e meu estômago dá voltas antes mesmo de recebê-lo. Se eu tomar essa canja, ela não vai ficar dentro de mim nem por cinco minutos.

_ O parque... Eu precisava de um lugar para respirar. _ Dou um salto impreciso de uma verdade para uma meia-verdade e, considerando as circunstâncias, até que estou indo bem. Este início de conversa tem um quê de corrida de obstáculos, não dessas que são esporte olímpico, com tantos metros e tantas barreiras, mas essas que passam na TV, com tempo no relógio correndo, um apresentador geralmente falastrão, e uma série de armadilhas mecânicas a serem vencidas. Estou pendurado numa delas, rezando para não cair e ser eliminado do jogo. De jeito nenhum vou falar do meu encontro no parque no último sábado. É uma daquelas coisas complicadas demais para simplesmente confessar após episódios sequenciais de um suicídio, um velório, um sumiço e uma quase pneumonia. Desde quando esse é meu ritmo?

_ Você precisava respirar. Todos nós precisávamos. O que aconteceu com aquela garota... _ Meu pai suspira cansado e eu o ajudo com um nome, a fim de reforçar minha mentira.

_ Marjorie. _ Eu sinto as letras enrolando antes mesmo de proferir as palavras. Tudo efeito dos remédios fortes. 

_ Foi terrível. Vocês eram amigos antes, não? Como você está se sentindo, filho?

...

_ Atropelado _ Respondo sem firmeza. 

Isso pode significar muitas coisas. Atropelado por uma febre que faz a pele arder e o corpo tremer; atropelado por Marjorie, a corredora que decidiu ser saltadora (de prédio); atropelado pela medicação que me deixou bem grogue; atropelado por mim, que não consigo me desgrudar da mentira e da tigela de sopa-canja.

_ Fomos todos pegos de surpresa, Max. Eu te conheço... Aí, dentro, em algum lugar, você se culpa.

_ Eu me culpo.

Diversas pequenas culpas que me puxam pelas pernas e braços para lados opostos, como em uma máquina de tortura medieval. Culpa pela morte de Marjorie, mínima; culpa pelo tamanho pequeno da culpa pela morte de Marjorie, máxima; culpa por Bolt, imprecisa, não sei de onde vem; culpa por mentir para meus pais, nova em folha.

_ Vou te dizer o que eu faria em seu lugar, filho. _ Pai sempre acaba dizendo “O que eu faria em seu lugar”. Geralmente são conselhos bem aproveitáveis. _ Eu tomaria essa canja. _  Ele olha para a minha cara. _ Eu sei, é nojento, você não está com fome, mas precisa dessa canja. Tomaria a canja e não a vomitaria, porque daí você ia ter que repetir o processo todo mais tarde e será pior. Depois eu deitaria minha cabeça neste travesseiro e dormiria. _ Péssima ideia, pai. Da última vez que deitei a cabeça no travesseiro e dormi, fui parar no alto de um prédio de vidro e tornei-me personagem coadjuvante do pior filme de suspense da história. _ Só ia voltar a pensar no que aconteceu quando, e somente quando, tomasse minha segunda xícara de café. Descanse, campeão.

Com o conselho do pai e o beijo suave em minha testa, cortesia da ursa preocupada, tento cumprir a única missão possível neste sofá, embrulhado em cobertores, dedos dos pés dançando em liberdade: tomar a canja e dormir.Chego à conclusão de que o sucesso parcial da missão já está de bom tamanho. A tigela está vazia (tomei a canja) e o sono chegou sem imagens perturbadoras. Infelizmente, após meia hora de, literalmente, suada vitória, o sono foi interrompido e a canja foi parar no vaso sanitário.

3

Gomos de tangerina, Deus os abençoe, por manterem-se dentro do meu corpo por tempo indefinido. Se existe algo fascinante nessa fruta esponjosa e suculenta, só descobrimos quando a gripe violenta suga as energias do corpo de tal maneira que tudo o que nos é possível fazer resume-se a examinar os veios e os pelos esbranquiçados soltando dos gomos de tangerina sobre o pires. Comi quatro gomos, faltam cinco, mas estou otimista. O sabor ácido parece ter sido bem recebido por meu organismo e, ao que tudo indica, vou conseguir manter-me minimamente nutrido até a próxima refeição.

A chuva, que havia parado desde a noite anterior, voltou com pouquíssima força, mas constante o suficiente para amolecer o espírito, no mau sentido, no sentido de destruir a vontade de alguém e tornar um dia cansado num dia cansado e melancólico. Também não é dessas chuvas que descem direto ao chão, mas dessas indecisas que são pegas por correntes de vento e batem contra a janela, produzindo certo tilintar que, devo admitir, distrai. 

Faz muito tempo (desde que comecei o estágio na faculdade e logo pulei para o emprego definitivo ao me graduar) que não sei o que é deitar no sofá da sala em plena tarde de segunda-feira e assistir televisão. Assistir, talvez, seja forçar muito a semântica da palavra. A TV está bem ali na frente, estou em posição privilegiada diante dela, abrigado por uma manta grossa e com o pescoço acolchoado sobre duas almofadas, protegendo-me da dureza que é o braço do sofá, mas, não posso dizer-me efetivamente entretido, sequer imerso na trama. Na tela de cinquenta e tantas polegadas, não sei o número ao certo, passa um filme com ares de antigo. Sei disso apenas pela obviedade do preto e branco que brinda os rostos dos atores, das atrizes, e o cenário. Preto e branco, assim como o livro mágico de Bolt. Aposto um balde de cerveja gelada comigo mesmo como Bolt poderia dar pausa na cena e simplesmente recriá-la numa folha de papel. Ela é talentosa assim. Percebo, além de tudo, que é a segunda vez em que me pego desejando mais desenhos. Entre a árvore de cigarros e o rosto de beleza clássica de cinema antigo, considero-me evoluído de alguma forma.

Um novo espirro sacode o corpo e as convicções. Aqui estou eu, somente um dia após aquela atitude insana, pagando as consequências por meus atos, ainda pensando nela. Aparentemente, faço parte do grupo de pessoas que nunca aprendem. Bem aqui dentro, debaixo das camadas orgânicas, posso sentir uma coceira persistente, algo que não sei bem se é desconforto ou insatisfação (uma unha que cutuca casca miúda de ferida, querendo muito abri-la), me dizendo claramente que, dada a oportunidade de voltar no tempo, teria feito tudo novamente, da mesmíssima forma; do último cigarro pisado no chão ao lado da capela ao desmoronar sobre a grama barrosa do parque.

Nunca, até hoje, passei tanto tempo pensando em uma garota, ainda mais desse jeito que, aos meus olhos, é potencialmente preocupante, beirando a obsessão. Já tive duas namoradas sérias, sendo que a última terminou comigo faz uns dois anos, alegando coisas tais como “falta de comunicação”. Pois bem, ela se comunicou, enfim, para declarar o término de um namoro, o qual, honestamente, me pegou com a guarda baixa. Lembro-me de passar os dias seguintes com um ponto de interrogação pulando em cima da cabeça, me seguindo para onde quer que fosse. No mais, não derramei lágrimas, nem outros sentimentos além da confusão. Falta de comunicação, quem sabe, era falta de amor. Mas eu nem mesmo saberia dizer se já amei romanticamente alguém antes.  Tinha a Marjorie, a morta Marjorie. Eu gostava dela, mas como amigo. Se muito, mantinha por ela um sentimento infantil platônico. Hoje, dois dias após sua morte, um dia depois do sonho maluco, a sinto, langorosamente, tomando cada vez mais distância. Vem e vai, nos pensamentos, se dissipa com a mesma rapidez que a fumaça dos cigarros de Seu Agnaldo.

Vou comendo a tangerina, olhando para a televisão sem olhar, e cozinhando numa poção de anseios que borbulham em mim. Quero trabalhar, quero que o nariz pare de arder, quero ver Bolt de novo. Três desejos revestidos de uma falsa aparência de simplicidade, porém, nas atuais circunstâncias, nem o gênio da lâmpada seria capaz de concretizá-los. Estou grato, não posso negar, quando as pálpebras começam a pesar de novo e, em seguida, o corpo, muito dolorido, vai fazendo o mesmo. Os braços e as pernas viram fardo. Poderia rolar do sofá, mas falta-me o impulso necessário até para isso. Alternativamente, vou colando o torso ao tecido do estofado, sabendo que em alguns segundos já vou me despedir do televisor ainda ligado. O filme será interrompido e meus olhos piscando pela última vez na noite servirão de controle remoto para o corpo, desligando quase tudo para uma merecida noite de sono. Grato estou, mas ao mesmo tempo, que desgraça, não deve ser mais do que oito horas da noite e estou entregando os pontos completamente. Tudo efeito do já mencionado remédio forte, cujo nome nem sei; um rabisco irreversível que repousa sobre a mesinha de canto adjunta ao sofá. O próprio frasco do remédio serve de peso de papel, impedindo-o de voar com o vento tímido que entra na sala por uma fresta na janela. Preciso de pelo menos esse pouco de ar para sentir-me menos doente. Sono bom esse, em que o subconsciente resolve dormir junto comigo. Ao invés de pinturas malucas no céu e mais uma cena de suicídio em topos de prédios, hoje tenho apenas cortinas pretas fechadas.

4

Lá pelo fim da tarde de terça-feira, descubro que é possível alguém se cansar de tanto dormir. É curioso como as coisas mudam de posição quando mudamos de posição. Se eu estivesse no trabalho provavelmente sonharia em passar o dia inteiro à frente da televisão, assistindo qualquer coisa, todas as coisas, jornais, documentários de abelhas, programas de faça você mesmo, propaganda de seguro de vida. Mas, já que estou em casa, tendo passado o dia fazendo exatamente isso, me corroo por dentro com inveja de meu colega de trabalho Chris, que passou o dia afundado em planilhas e café de gosto duvidoso. Dizemos que o café da empresa é duvidoso porque sabemos que é ruim, mas paira a dúvida, ou melhor, o dilema entre enfrentar o café ruim ou o dia sem café. Não consigo compreender porque sempre deixam o café a encargo dos estagiários, sendo uma tarefa tão crucial. Eu poderia fazer, claro, mas uma coisa é passar um café aqui em casa, cujo destino não vai além do crivo de meus pais e do ocasional visitante; outra coisa é fazer café para o setor inteiro. Não, desculpe. Passo longe de tamanha incumbência. Apesar de tudo, devo ressaltar, com memórias carinhosas, aquele tempo que não volta mais, no qual o mero cafezinho duvidoso de todos os dias havia ganhado status de néctar dos deuses. Tudo por causa das mãos de fada de uma estagiária chamada Ketlyn (Lógico que lembro seu nome! Como me esquecer da fada do café?). Aquela moça bonita, de aspecto frágil, sabia o que era um bom café, e foi generosa o suficiente para dividir seu conhecimento com todo o setor. Eu mesmo não sabia o que era um bom café antes de conhecê-la. Desafortunadamente, como essas coisas são, fomos expulsos do paraíso cedo demais. A Ketlyn não durou dois meses. Sua habilidade em preparar o melhor café do mundo era inversamente proporcional às requeridas para manter um emprego em nossa Companhia. Francamente, considero o talento de Ketlyn mais precioso do que a empresa. 

Ketlyn, aliás, já que estou aqui me lembrando das garotas do passado, seria a namorada ideal. Eu gostava de seus olhos acinzentados e seus cabelos bem negros, sua calma para falar comigo e sua voz de veludo. É verdade que nunca a conheci muito bem, não pessoalmente, pois todos os nossos contatos começavam e terminavam entre às treze e às dezessete horas, já que ela trabalhava em meio-expediente e nunca passamos juntos por um happy hour. Devo ser justo com Ketlyn e dizer que meus happy hours são sempre passados em casa, eu e meu videogame. Não abro mão, pois o tempo jogando é quase tão sagrado quanto às corridas de sábado de manhã, e além de aliviar a mente das coisas chatas do trabalho, realmente me deixa muito “happy”, sem falhar.

Pra não dizer que nunca fui, eu fui. Dividi uma mesa de um barzinho badalado aqui da cidade com meu amigo Chris e outros colegas do setor, além de dois estagiários. A noite pareceu se esticar pela eternidade. Uma hora parecia três; meia hora, oito. Sendo assim, havia tentado encurtar o tempo colocando para dentro grandes quantidades de álcool disponíveis naquele bar. Logicamente, uma péssima decisão, pois um happy hour de quinta (não a categoria) implica num trabalho puxado de sexta (a feira), e o escritório nunca será um ambiente favorável à ressaca, como provou meu chefe, reiteradamente, todo animado ao berrar em meus ouvidos que aquela “conduta” era “inadmissível”. Não creio que era, pois se fosse eu teria sido demitido da primeira vez em que despejei os conteúdos do estômago na lixeira que ficava ao lado da minha estação de trabalho. Foram três ao todo os despejos daquele dia: um em minha lixeira, um na gaveta da escrivaninha de Chris e um na privada do banheiro do setor. O primeiro foi uma tragédia, súbita, borbulhante e inevitável; o segundo foi vingança, afinal foi Chris quem me arrastou para o “unhappy” hour maldito; o terceiro foi providência divina porque (quem vai dizer?) o limite de faltas com meu chefe, tal qual com a minha mãe, também esteja no mágico número três. Quem sabe, e esta é uma reflexão inédita, a minha aversão pelos happy hours seja dedicada ao próprio Chris, que além de me enfiar num bar após um dia simultaneamente cansativo e enfadonho ainda me abandonou para se arranjar com uma estagiária. Se arranjou, mas não creio que isso fez parte dos muitos motivos da minha vingança. A ironia de tudo é que houve outro unhappy hour, meses depois, mais parecendo um Déjà vu” do primeiro, com a exceção de que o teor alcóolico da minha bebida era consideravelmente mais baixo e a estagiária que saiu do bar com Chris era outra. Não houve ressaca, mas ressinto uma noite relaxante de videogame perdida. Provavelmente ainda viverei mais outro desses e talvez mais dez, até que eu finalmente aprenda a dizer não, e que isso não é para mim. Uma coisa posso dizer de tudo isso, ao menos: entre as horas que nunca passavam naquele bar e o tempo que se estica neste sofá quente, estou com dificuldade de precisar o que é pior.

_ Ei, Max, o pessoal do trabalho perguntou por você. _ Falando no diabo...

Deixa para lá, aqui é pior. Chris, na minha sala, acaba de desempatar o placar. Pelo menos no bar eu tinha o álcool, enquanto que aqui eu tenho chá quente que mal consigo bebericar sem ficar enjoado. Está certo, não é legal subestimar os poderes de uma caneca morna e amiga, mas este tédio está me irritando em uma velocidade surpreendente. O pior de tudo é que o atestado médico é para a semana inteira, e ainda é terça.

_ Senta aí, cara, vem pegar gripe comigo. _ Chris, ou ninguém, jamais contrairia um resfriado desta magnitude da mesma maneira que eu. Certas idiotices da vida, por um motivo desconhecido, inabalável e irrefutável, sempre acabam para mim. Já não me pergunto mais o porquê.

_ Tua mãe me disse que você sumiu no meio de um funeral e voltou para casa quase morto. _ Se era para ser uma piada, eu não sei, mas, rio abertamente. Chris, ainda que irritante às vezes, é um cara engraçado e nunca deixa de me acompanhar na risada.

Não havia escutado a campainha tocando, distraído demais com meus botões, mas ouvi sua voz de barítono inconfundível, saudando minha mãe, que o recebeu na porta, solícita, já mandando que tirasse os sapatos e ficasse à vontade. Como o sofá da sala, onde me encontro atualmente acampado, está virado de costas para a porta da frente do apartamento, presenciei a chegada de meu amigo apenas com os ouvidos, calmamente esperando que ocupasse a poltrona ao meu lado enquanto encaro a TV, finalmente interessado em seu conteúdo. Estão passando “As melhores da semana”, um programa esportivo dedicado a compilar as melhores jogadas, os lances mais bonitos do campeonato nacional de futebol. Tristemente, faz duas semanas que meu time do coração sequer dá às caras no programa. Mais tristemente ainda, faz três semanas que meu time do coração não figura nem nos “Gols da Rodada”.

_ Eu estava correndo no parque...

_ Pensei que sua corrida fosse aos sábados.

_ Agora corro aos domingos, também.

_ Depois dos funerais, eu suponho.

_ Não, durante.

_ Que mal-educado, cara, saindo no meio do velório desse jeito.

_ O padre não parava de falar e eu fiquei enjoado.

_ A gaveta da minha escrivaninha mandou lembranças, aliás.

_ Se me carregar para outro happy hour, vou decorar sua lixeira também.

_ Não pode fazer isso de novo. Vão te demitir dessa vez.

_ Que bom. Odeio aquele emprego. _ Não odeio, não de verdade, mas não amo. Ainda não descobri o que amo, ou a quem. Minhas conversas com Chris nunca começam como as conversas normais. Sempre há uma rápida troca de tiros antes, mas, eventualmente, chegamos ao tom mais cordial e aos fatos de maior relevância. 

_ Sua mãe me contou que você voltou para casa só de noite, ensopado de chuva. Estava mesmo no parque?

Meneio afirmativamente e o rosto de Chris se contorce numa mistura de surpresa e confusão, como se não conseguisse decidir que expressão usar, aguardando que eu elabore. Eu dou uma olhada de canto na direção da minha mãe, vendo que ela foi à cozinha, provavelmente preparar um café para Chris. Barra limpa.

_ Aconteceu algo muito estranho no sábado, Chris. Eu conheci uma garota.

_ O quê?! _ O barítono escalou muitas notas de uma vez só. As sobrancelhas naturalmente grossas e desenhadas de Chris se erguem aos céus em espanto. Estou realmente ofendido com sua reação. Por que é tão anormal que eu conheça uma garota?

_ Fala baixo, idiota! _ Resmungo em reprimenda _ Não sei qual é a surpresa...

_ Estou pasmo, só isso. _ Seu sorriso branco e irônico não está ajudando com meu mal humor. De todas as agruras do dia, ter que enfrentar Chris é a pior. Antes que eu me pergunte por que estou abrindo a boca em primeiro lugar, já sou lembrado de que Chris é, de fato, meu melhor amigo, e que os acontecimentos do último sábado estão assando por tempo demais dentro de mim e já está na hora de tirar esse assado do forno. Já até queimou a borda; aquele sonho maluco e esta febre ridícula. _ Não é todo dia que você fala de garotas.

Se eu conhecesse uma garota nova a cada dia, ainda assim não falaria. Quanto maior a quantidade, menor a possibilidade de obter algo especial. Bolt, noto, é do tipo que vale a pena estrelar em uma conversa. Por cima do ombro, desta vez com descaramento, olho novamente para a divisão entre a sala e a cozinha. Por mais disposto que eu esteja em falar sobre a garota estranha do parque da qual nem sei o nome, digamos que essa disposição se dirige somente a Chris, e que neste caso não há escolha.

_ Ao contrário de você, que fala de dez em dez minutos. Fica quieto e escuta. _ Ele fica, olhos curiosos seguindo cada movimento meu. Sabe que vem coisa boa por aí. _ Sábado passado fui correr no parque como sempre faço. _ Chris sempre tenta me convencer a entrar para a academia na qual ele passa, ao menos, duas horas por dia: uma hora de exercícios e uma hora de flerte e muita conversa fiada. Eu sempre tento convencer Chris a correr nos sábados. Até hoje, estamos presos em cima desse muro. _ Meu pé começou a doer e eu tive que parar. Sentei no primeiro lugar que vi e...

_ Deixa eu adivinhar: a garota? _  Afoito, ele interrompe.

_ Ela me ajudou a tirar o tênis e fez até massagem no meu pé.

_ Nossa! Estou orgulhoso de você, Max! Olha só o meu garoto evoluindo. Quer dizer que é só eu cair no chão, fingir que meu pé está dodói, e uma gata vem fazer massagem? Por que nunca tentei isso antes? É genial! _ Há tantas coisas erradas com esta colocação que mal sei por onde começar, mas vou me dar essa chance.

_ Existe algum problema com seus ouvidos, Chris. _ Em primeiro lugar, eu não fingi. Estou realmente com um problema no pé. Toda vez que corro ele incha e dói. No domingo do funeral, corri uma distância considerável quase ininterruptamente, e como consequência meus pés (agora são os dois) tornaram-se duas massas vermelhas e inchadas. Isso me lembra de que eu preciso ir ao médico se quiser continuar correndo. Eu estava no médico ontem, mas o engraçado é que na correria para tratar do resfriado eu me esqueci do pé completamente. Nem sequer foi o meu clínico de sempre, mas um plantonista do atendimento de emergência. Disseram que a febre estava muito alta e preocupante. Em segundo lugar, nem sequer passou pela minha cabeça dar em cima daquela garota. E se passou, agora a culpa é toda sua, Chris. Por fim, não sei se é possível classificar Bolt como “uma gata”, não pelos padrões de meu amigo e da sociedade em geral. Não obstante, eu já me contentaria em passar um tempo só fazendo cafuné naqueles cachos de mola.

_ Seja lá como for, acho que vou correr no parque sábado que vem. _ Pensar em Chris jogando charme para cima dela é absurdo. Consigo até imaginar os insultos criativos que ela usaria em resposta às cantadas dele. De qualquer maneira, quero Chris longe dela. 

_ Juro que não vou interpretar essa cara de quem está precisando cagar como ciúmes. Continue a história.

Pisco lentamente, demoro uns segundos a mais para abrir os olhos e respiro meio fundo, dando continuidade, já com receio de dividir o ponto principal da trama.

_ Ela é meio quieta, sabe, não se expressa ou fala muito. Depois que massageou meu pé, ficamos ali na grama do parque, sentados sem falar nada. Até que, de repente, ela falou e começamos a conversar. E foi aí que a coisa foi ficando esquisita. Ela tinha uns papos... Estranhos.

_ Estranhos? _ É difícil explicar.

_ Sobre correr... Ela disse que correr e fugir são a mesma coisa.

_ É dessas que gostam de filosofar. Já tive uma assim. Bem maluquinha, mas sabia fazer... _ Corto meu camarada antes que ele comece uma tirada sobre suas aventuras sexuais e me faça perder a linha de raciocínio.

_ Na verdade, pelo que entendi, ela quer se matar. _ Não há como verbalizar uma coisa dessas tirando o seu peso, portanto falei curto e grosso. Pelo menos Chris se aquietou de vez. _ Eu sei, eu sei... É bem louco mesmo. Mas, cara, por mais absurdo que pareça eu acreditei nela. Se você visse o rosto, os olhos dela... Você entenderia. _ Os olhos dela já perderam a vida. Ela perdeu a vida. Parece mais uma boneca sem fôlego caminhando pelo gramado do parque. _ Tinha também os desenhos...

_ Desenhos? _ Como um papagaio, ele volta a repetir minhas últimas palavras em forma de perguntas. Não o culpo. Não é todo dia que Max, o cara mais tediosamente ordinário que existe, sai com uma anedota desse quilate. Usualmente, é Chris falando e eu ouvindo. Eu gosto desses vai e vem, gosto de ser o menos falastrão da dupla. 

_ Eu nem te contei isso, mas depois da massagem ela usou um livro para apoiar meu pé. Disse que é bom para a circulação pôr o pé para cima. O livro era gigante, o maior que já vi. Imagina um desses livros de faculdade de Medicina.

_ Minha prima tem um desses, mas é livro de Direito. Parece um tijolo aquela coisa.

_ Isso aí, só que maior ainda. Eu estou falando... O livro é enorme! Deve ter mais de mil páginas. E ela é tão magrinha. Pensa no esforço que deve fazer só para carregar o livro na mochila por aí... _ Divago, mas logo volto ao que dizia. _ Esse livro enorme é seu livro de desenhos. Depois que meu pé melhorou, ela abriu o livro e me mostrou todos os desenhos. Muitos desenhos... _ Quase cem páginas de desenhos e ainda estava no começo do livro. _ Ela é uma artista incrível, só você vendo! Um desenho mais perfeito que o outro. Ela tem um olhar para os detalhes... _ Pela segunda vez divago e questiono se a responsável por isso não é a própria Bolt, que teima não sair da minha cabeça. Quanto mais penso nela, mais coisas eu descubro. _ Enfim, os desenhos beiram à perfeição, só que, sei lá, são estranhos.

_ Essa palavra de novo. Estranhos em que sentido?

_ Do tipo que assusta. Não todos os desenhos, só a maioria.

_ Ah, sei, tipo filme de terror. Cabeças decepadas, bichos comendo carcaças, essas coisas...

_ Não! _ Saio na defesa, mais por reflexo do que por qualquer outro motivo, entretanto, logo me coloco a ponderar. Cabeças decepadas talvez passassem uma vibração menos sombria, especialmente se fossem desenhadas por outra pessoa que não Bolt. _ Os desenhos não tinham nada demais, à primeira vista, mas se você prestar atenção neles, realmente prestar atenção, vai ver algo errado ali. Por exemplo, essas crianças pulando corda. Até aí tudo bem, certo? O problema é que a corda, olhando de perto, é uma serpente. 

_ Credo! Você não podia achar uma garota normal? _ “Achar” é um verbo interessante para o contexto daquele encontro inesperado. Eu “achei” Bolt ali, perdida no meio do verde. Ela, da mesma forma, pode ter-me “achado” depois de me ver passando quatro vezes pelo mesmo lugar. Quem sabe, nós nos “achamos”? Se ela se resolver pelo suicídio, vou perder o que achei. O fato de nunca ter procurado não remove a intensidade da perda, para meu azar.

_ Ela me desenhou, também.

_ Que romântico! _ Ele sorri, contente em se divertir às minhas custas.

_ Para com isso, Chris! Eu já disse que nunca tive essas ideias com ela. _ Se pela segunda vez passo a ter, é tudo, pela segunda vez, culpa do Chris.

_ Tudo bem, tudo bem... E depois?

_ Depois nada. Despedimo-nos e eu fui à padaria.

_ O pão doce de todos os sábados. _ Meu amigo suspira algo cansado. _ Você é o homem mais previsível de todos os tempos. Fala de novo: Como nos tornamos amigos?

_ Alguém lá em cima não gosta de mim.

_ Não gosta de nós, você quer dizer. _ As feições leves e ligeiramente zombeteiras, comuns a Chris, mudam para um semblante rígido, pouco a pouco. O que antes era um sorriso matreiro de boca fechada tornou-se uma linha minimalista, sem espaço para outras nuances de expressão. Meu amigo sabe ser muito sério quando o deseja. _ Olha, cara, você sabe que eu jamais falaria isso se não fosse importante, ainda mais para tentar te afastar de uma gata. Deus sabe que você está precisando! _ Rosno em discordância. _ Mas essa menina do parque pode ser... Um pouco complicada demais. Se ela é realmente suicida, você não quer mexer com isso. _ E se eu quiser? E se for eu aquele que vai tirá-la desse buraco? Por que não eu? Infelizmente, as noções heroicas estúpidas de domingo, constato, não foram lavadas nem por um milhão de baldes de água de chuva. _ É triste _ ele continua _ mas essas pessoas estão por toda parte. Não consigo imaginar que espécie de tristeza é essa que faz alguém querer tirar a própria vida! Eu me lembro de quando o meu avô morreu, mas nem isso me fez querer ir junto com ele. 

Chris já me contou essa história. Seu avô estivera muito presente em sua criação, e acabou tomando o papel do pai, especialmente depois que este havia morrido numa ocorrência de trabalho (O homem era policial, e a ocorrência toda foi traumática) quando Chris era ainda muito novo, com cinco anos de idade. O avô era além de uma referência, era um herói. Chris o perdera no fim da adolescência, pouco antes de entrar para a faculdade, e ficou de luto por cerca de um mês. Não queria sair nem comer direito. Só ficava na varanda de casa, conversando com os cachorros do mesmo jeito que seu avô fazia quando ainda estava entre os vivos. Na época, ele dizia que não conseguia fazer planos ou pensar no que viria pela frente. Só queria sentar na varanda, fingir que nada havia mudado. Mas com o tempo ele conseguiu literalmente levantar o traseiro do chão e viver a vida, pois é isso o que seu avô ia querer para ele.

_ Nem eu sei, mas mesmo que não compreenda, acontece.

_ Um parceiro meu da academia perdeu a esposa assim. Morreu de overdose de remédios para dormir. Ele sabia que ela tinha um problema, mas nunca entendia exatamente o que era. Ele achava que era estresse do trabalho, mas, no fim das contas, era bem pior que isso. Chegou uma hora em que os remédios não estavam funcionando tão bem, e um dia ele teve que deixá-la sozinha... _ São como crianças essas pessoas. Não podem ficar sozinhas nem um minuto. A diferença é que deixar uma criança sem supervisão acarreta, no máximo, uma traquinagem das boas, ou, como diziam meus pais, uma “arte”. Deixar um suicida em potencial sem supervisão não acaba em arte, mas em morte. _ Os médicos chamaram de depressão crônica ou distimia com episódios depressivos. Nem sabia que uma coisa dessas podia ser crônica. O que é pior, você não tem a sensação de que isso tem acontecido cada vez mais? De qualquer maneira, o que quero dizer, meu amigo, eu já disse: Não se meta com essa garota.

Revestido de um sentimento de revolta que beira o infantil, retruco por retrucar.

_ Por quê?

Ao invés de sarcasmo ou até de uma reprimenda com sutileza de um trator, recebo uma resposta surpreendente.

_ Porque vocês mal se conheceram, e já percebi que você começou a gostar dela. Não, não me interrompa, Max! Você só não quer admitir, mas fica com cara de adolescente bobão toda vez que fala dela. Se bem que você meio que sempre teve cara de adolescente bobão... Nem vou mais perguntar como ela é além do que você já disse. Capaz de essa sua cara ficar congelada assim para sempre. Vamos imaginar que você fique com essa garota. Com certeza vai amá-la, com certeza vai. _ É absurda a sua pretensão em tentar prever meu futuro, mas nada digo por enquanto. _  E se ela resolve tirar a própria vida, como você fica?

De todos os cenários que imaginei, esse não foi um deles. Sinto a firme convicção em vê-la de novo bambear as pernas. Sim, já parei para pensar que minha atitude no domingo foi uma loucura completamente fora dos padrões de alguém como eu. Certo que sou o autor de algumas idiotices, mas nada nunca desse calibre. Ponderei também nos motivos desta estranha fixação que me perseguiu até em sonhos. Revi, acima de tudo, a parte do curto tempo de contato com a garota e o efeito que ela causou em mim. Absurdo à moda dos romances, como bem já disse Chris, e nisso ele está correto. Eu ainda acho que o que me move é o medo de saber que ela poderá ter um destino parecido com o de Marjorie, e eu passei por sua vida, como o corredor que sou, sem olhar para trás e sequer verificar os danos. No sonho, ela me deixou para trás e saiu correndo. Não será o contrário? Incomoda a simples noção de deixá-la para trás e nem sei dizer por quê. 

Antes que eu possa inventar qualquer resposta minimamente satisfatória para a pergunta de Chris, mas que tome a maior distância possível da terrível verdade que me sacode por dentro, invade a sala o aroma do café, anunciando a dona da casa, que vem dar uma pausa em nossa conversa no momento mais conveniente para mim. Ela anuncia que vai ao mercado, mas que não demora a voltar. Uma mentira que detecto por silogismo. Se minha mãe vai ao mercado, ela vai demorar, pois ela sempre demora. A mulher pode ir comprar uma simples caixa de leite, não importa, vai levar horas. Ela nos deixa com o café e com uns biscoitos amanteigados que são uma delícia. Nem mesmo Chris, um total paranoico da alimentação saudável, consegue resisti-los. Vejo meu amigo enfiando o terceiro na boca e começo a nutrir esperanças de que o sabor doce e a textura aerada dos biscoitos lhe tenham dado amnésia, ao menos até o ponto em que ele fez aquela pergunta maldita e, espantosamente, cheia de sabedoria.

_ O café está uma delícia. Mas nada supera o da Tifany.

_ Ketlyn! O nome da estagiária do café mágico era Ketlyn.

_ Ah, sim, aquela dos olhos bonitos. Você sabe que nós ficamos, não é? _ Ele pareceu escolher o momento mais casual para soltar a informação, assim, como quem não quer nada.O mundo é um lugar injusto. A única boa notícia é que Chris realmente parece ter esquecido nosso tópico anterior. Esqueceu ou fingiu. Pra mim está de bom tamanho.

_ Quando? _ Não pergunto mais “como” quando o assunto é Chris e mulheres. Já desisti de tentar entender, e apenas aceito como um dom que ele tem.

_ Foi no dia da demissão. Pobrezinha, estava tão triste!

_ Existe uma cidade inteira no inferno reservada para caras como você. Aliás, você é o prefeito de lá.

_ Eu sei... _ A fileira branca de dentes afirma com seu dono. Ele come mais uns biscoitos, sorve mais um gole de café e, infelizmente para mim, se inspira novamente. Cedo demais para comemorar a falta de memória. _ Mas eu ainda não entendi porque você achou que seria uma boa ideia pegar chuva o dia inteiro no parque. _ Para ser honesto, eu também não.

_ Ainda não te contei tudo. Toma mais café. _ Ele aquiesce à sugestão. Eu desbravo um biscoito, metade esperando que meu estômago o rejeite e eu tenha que abandonar a sala e adiar o fim da história, metade querendo sentir o açúcar e a manteiga e, de fato, disposto a falar. Jogo o biscoito para cima e pego com a língua, numa paródia de cara ou coroa da qual Chris não faz ideia. Logo percebo que é possível comer mais de um biscoito sem grandes repercussões, e começo a relatar a parte mais difícil do sábado. _ Quando voltei para casa, vi que tinha um povo fazendo um círculo e aí perguntei ao porteiro o motivo da comoção. Ele disse que era suicídio. _ Chris xinga sem conseguir manejar outra reação. Espero que ele esteja pronto para o que vem a seguir. _ A pessoa se jogou do terraço do nosso prédio.

_ É bem alto! _ Ele engole em seco, esquecido um pouco do café.

_ Vinte andares de prédio, mais os metros acima até o terraço. A suicida era uma conhecida minha. Já te falei da Marjorie? _ Em “conhecida” meu amigo xinga de novo, bem baixinho, e começa a fazer cara de quem está puxando as coisas pela memória e termina com uma negativa. De fato, Marjorie realmente ficara enterrada em minha juventude e eu na dela. Nós nos falávamos ocasionalmente, para não dizer raramente, mas um não tinha mais a antiga valência na vida do outro. Ela provavelmente também não falava de mim para as amigas mais recentes em sua vida. _ Era amiga de infância. Quando éramos crianças fazíamos de tudo juntos. Não sei direito o motivo, mas, conforme ficamos mais velhos, fomos parando de nos ver.

_ Caramba, amigo, sinto muito. _ Com um traço de embaraço, Chris ainda persiste. _ Desculpe dizer, mas isso ainda não explica muita coisa.

_ Não precisa explicar. Vou te dizer exatamente o que houve. Eu estava no velório de Marjorie e comecei a pensar em Bolt. _ Chris fica sem fala, só com as sobrancelhas franzidas em questionamento e um pouco de surpresa. _ A garota do parque. Depois falo sobre isso.

_ É o nome dela?

_ Não sei o nome dela. Ainda não nos apresentamos. _ Pelo que entendi, essa foi a última gota que fez, seja lá o que segurava Chris, ruir e ele desatar em gargalhadas.

_ Você é demais, cara! Se eu não te conhecesse, diria que a sua espécie ainda ia ser inventada.

_ Pensei que eu fosse o cara mais previsível do mundo.

_ Previsível, mas com um parafuso a menos. _ Ao invés de dar mais munição para meu amigo, volto ao tópico principal. Sei que por muito menos Chris pode se desviar do que importa e levar um tempão debruçando-se sobre coisas inúteis, tais como a contagem dos meus parafusos. 

_ Eu saí da capela no meio do velório, como já te disse. Do lado de fora conversei com nosso porteiro, Seu Agnaldo. Aliás, ele foi o primeiro a achar o corpo.

_ Pobre homem.

_ Ele começou a falar umas coisas aí e, quando me dei conta já estava correndo na direção do parque onde a conheci.

_ Simples assim? _ Nada simples.

_ Simples assim... _ Dou de ombros.

_ Cara... _ Chris encosta com mais vontade no assento da poltrona, esticando os braços para cima e depois os apoiando sob a cabeça. _ Nem sei o que dizer.

Dou uma golfada de riso, vencido e cansado.

_ Eu nem sei o que pensar.

5

Como o próprio Chris já disse, nossa amizade é inexplicável. Somos como água e óleo na maioria dos aspectos. Há, todavia, uma paixão que nos une.

_ Você está tão doente que não consegue ganhar de mim nem no videogame? Ah, lembrei! Você nunca ganhou de mim.

A parte constrangedora é que este é um fato inconteste. Além de ser alto, bonitão, hábil com as mulheres, o maldito ainda precisa ter talentos incríveis no videogame?! O mundo, mais do que nunca, é um lugar injusto. Jogamos a noite toda, até nossos dedos cansarem de apertar botões e nossas bundas imprimirem marcas no couro sintético do sofá. Não sei se pela companhia ou pelo jogo em si, comecei a sentir um pouco de força voltando ao corpo. Um pequeno vislumbre da vida normal logo ali adiante. Passava da meia-noite quando nos despedimos; Chris claramente cansado, eu estranhamente energizado, com uma nova ideia fixa na cabeça.

Sozinho, no meio da sala, luzes da casa inteira quase todas apagadas, o apartamento parece enorme, mais profundo do que o normal. Levanto e, movido pela ideia, vou levitando para meu quarto. Paro do lado da cama, mas dormir é a última coisa que quero. Apesar do súbito de energia, vejo-me ainda sem força o suficiente para manter-me em posição de cócoras por mais de breves segundos, portanto sento no chão, levanto o lençol e enfio a cabeça embaixo da cama, me aventurando entre a escuridão mais densa do que o apartamento, realizando que deveria ter ligado o interruptor antes de empreender a aventura, no entanto, sabendo exatamente onde está o que quero, se é que ainda está aqui. Enfio o tronco para baixo da cama e a cabeça vai mais além. Tateando com confiança, sinto logo as pontas dos dedos atingindo um material rígido e poeirento. Que alegria! Ainda está aqui! Não foi jogado fora na faxina de três anos atrás. Estico a mão, ainda sem enxergar nada, e agarro meu prêmio, arrastando-o não necessariamente para a luz, mas para o local menos cheio de poeira do quarto. Às pontas dos dedos bem sujas, vou limpando na calça ao que levanto e ligo a luz. Uma crise de espirro me ataca e deduzo ser parte pelo resfriado, parte devida a poeira. De qualquer forma, valeu à pena.

Daqui da porta do quarto vislumbro o modesto baú, que por anos não via. Parece menor e consideravelmente insignificante, sujo e isolado no chão. Sem perder tempo, vou até ele. Sento novamente, com as pernas abertas esticadas e com o baú de madeira no meio delas. Meu baú nunca teve cadeado, pois nunca careci de tanta privacidade. Na verdade, nunca fiz muita questão de esconder seu conteúdo com muito alarme, embora também nunca tenha abertamente revelado a ninguém. Nem minha irmã mais velha, que à época de minha adolescência ainda morava conosco e dividia o quarto comigo, se interessou pelo baú. Creio que foi a fachada de apatia de minha parte que a despistou. É como dizem: “Se você não fizer alarde, ninguém vai dar importância à coisa”. “O melhor lugar para se esconder a árvore é na floresta”, e coisa e tal. Levanto o tampo do baú sentindo uma amálgama de sensações. É nostalgia, porém manchada de cinismo adulto; é empolgação, ainda que deteriorada pelo receio; é euforia, umedecida por um nariz entupido que só queima e nada escorre. Uma ligeira dor de cabeça espeta o lado esquerdo da têmpora com agulhadas constantes, que não pioram de intensidade, mas minam as forças por seu ritmo inquebrável. Pego o caderno com capa de praia. Lembro até do dia em que o adquiri. Um sábado de sol, uma época em que ainda não corria no parque e passava mais tempo escrevendo. Meu caderno anterior havia acabado bem no clímax de uma estória e eu simplesmente saí correndo de casa em busca de uma papelaria. A falta de preparo me fez chegar ofegante na loja e eu quase não conseguia falar com a dona do balcão, vermelho e suando em bicas, quase me esquecendo do motivo de estar ali. Ao abrir o caderno, ignoro boa parte do que está escrito e vou para as últimas páginas nas quais trabalhei pela última vez, voltando a um conto antigo e inacabado. Talvez, não coincidentemente, o tenha evocado naquele sonho com a Bolt-Marjorie. Está sem título porque só levam título as coisas completas. Esta aqui, a qual folheio agora, carece de mais oito páginas, ao menos, para o arremate final. Assim que toco o papel, admirável como efeito de encantamento, minha mente é inundada de palavras conhecidas e uma imagem memorável de um homem preso em um elevador quase caindo, pendurado por um cabo de aço, refletindo sobre sua vida, cheio de arrependimentos, antes daquilo que, ele pensa, será o evento da sua morte. Porque estou familiarizado com esta narrativa em particular, tomo conta dela por meio de uma leitura rápida e já pouso na última linha, na qual escrevi o seguinte:

“Com a vida pendendo, literalmente, por um cabo, Felix sente lágrimas pesadas de arrependimento rolarem até sua boca, salgando os lábios com a realidade da morte, sua companheira rejeitada.”.

Nunca gostei dessa última frase. Algo nela estava errado quando a redigi há tantos anos atrás, e nada mudou até hoje. Sempre achei que Felix, mesmo preso entre a vida e a morte numa armadilha de elevador, tinha mais para oferecer, terminando morto ou não. Ponho o caderno para repousar no chão e ergo-me zonzo, meio bambo das pernas, virando para a parede na qual pendurei uma mochila. Resgato com facilidade uma caneta de dentro dela e volto para a posição anterior, com o caderno entre as pernas. Sem dó, risco toda a última frase com um traço só, livrando-me de uma vez por todas daquele fim provisório inquietante. O movimento me obriga a lidar com a frase anterior e, tomado da mesma exasperação, a risco também. Com satisfação acabo riscando a terceira frase acima e não paro mais. Quando dou por mim, a página inteira está vandalizada. Depois de sair riscando frase após frase, de baixo para cima, com movimentos quase brutos, percebo-me ligeiramente esbaforido e melancólico quando a caneta aniquiladora de palavras freia. Já nas últimas linhas da página anterior, por enquanto intacta, há isto:

“Um som terrível de algo que parecia o maior chicote da face da Terra golpeando o azar ecoou pelos quatro cantos daquele cubo maldito.”. 

Com o desejo sólido de terminar aquele esquecido conto da maneira mais enriquecedora possível, viro a página, dando de cara com o verso rabiscado e, sem deter-me mais, abraço a próxima folha em branco com suas linhas azuis prontas para a tinta da minha caneta e para os delírios que minha mente sentiu vontade de conjurar após tantos anos ausente do reino da ficção. Começo, ou melhor, recomeço. 

“Felix berrou de susto! Calou-se assustado com o próprio berro, alto em demasia, e berrou três vezes mais, finalmente tomado pelo desespero.”

Não é nenhuma obra-prima, mas é algo. Além do mais, volto a escrever com a mesma intenção de antes: nunca mostrar para ninguém. Não há necessidade de obras-primas aqui. Quem diria que minhas férias forçadas iam me empurrar para dentro do baú mais uma vez.

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