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Max acaba de me beijar. Não sei o que fazer disso, que não seja me apavorar. Talvez, não deva fazer nada. É minha resposta para tudo nessa vida: desistir antes mesmo de começar. Não posso negar que senti algo quando seus lábios tocaram os meus. Não por que o beijo já não faz parte da minha vida há muito tempo. Simplesmente porque o beijo veio dele.
O coração acelerou por motivos que nada tinham a ver com o assalto. Eu me vi num misto tenebroso de culpa e prazer.
Max... Seu nome, seu sorriso de covinhas, seus lábios ressecados pela noite...
Preciso fugir. Preciso correr.
1Vou voltar um pouco no tempo, os dias anteriores à minha tensa conversa com Chris, na qual revelei detalhes de um encontro quase casual com a morte, que ainda me faz parar de pensar só para sentir o medo, a fim de contar o que aconteceu depois de uma das piores noites da minha vida. No dia seguinte, sábado de manhã, eu corri. Fazia uma bela manhã e, após tomar a medicação prescrita, acreditei que meu problema de circulação estava acabado. Acordei cheio de disposição, embora apenas no corpo, com os primeiros raios do sol me convocando para uma corrida no parque. Motivado, acatei ao chamado, calcei o tênis, bebi café, surpreso com o fato de que a máquina anciã ainda vive, me despedi de Seu Agnaldo e fui. Não fosse por um detalhe aqui e outro acolá, teria sido uma corrida de sábado como todas as corridas de sábado costumam ser
1O canto dos pássaros penetra com suavidade os ouvidos enquanto minha cabeça repousa no lugar mais confortável do mundo: as pernas de Lilian. Ela desliza os dedos por entre meus cabelos úmidos de suor; eu me contento em deixar os olhos cerrados, apreciando os suaves raios de sol da manhã contra meu rosto e saboreando a paz. Meus tênis e meais usados estão aqui perto, recostados no tronco da nossa árvore, junto com a mochila pesada que Lilian sempre carrega. Neste momento, somos atores do palco perfeito, o qual nem minhas mais robustas fantasias foram capazes de esculpir. Seria um sonho, não fosse a voz encorpada de Lilian e seu jeito disfarçadamente desinteressado, tecendo uma conversa surreal demais para meros frutos de um sono recheado. Com ela, o anormal é o normal._ Foram trinta e oito... Ou trinta e nove? Quarenta e três. Isso. Não me lembro da matemátic
1É o falatório de Lucas, em segundo plano, diante de minhas próprias divagações e latidos de Woodstock que me fazem sentir leve como uma pena, subindo e subindo, empurrada por um gentil vento. Esta manhã de sábado é particularmente diferente. As pessoas passam por nós com olhos curiosos, alguns até invejosos do casal feliz, do pré-adolescente e do cachorro, sem cogitarem que essa imagem não é a melhor representação da realidade. Não somos uma família, mas, de fato, nos encontramos no ápice da felicidade que podemos angariar no momento. Sempre que me pego com Lilian num cenário suave desses, faço um exercício mental de memorizar tudo quanto for possível. Hoje é o jeito que o brilho do sol torna os pelos dos braços de Lilian dourados, o ruído das rodas de skate de Lucas deslizando pela parte
1Dia desses eu sentei com Lucas no sofá, o desafiando para uma partida de nosso game de futebol predileto. Meu time marcou cinco gols só no primeiro tempo, tendo sofrido apenas um. Infelizmente, só assim para meu time ganhar qualquer coisa, ultimamente. Lá pelos minutos do quarto gol, Lucas angariou coragem para revelar um pequeno, porém, mui importante, trecho da corrida que Lilian, por esse ou aquele motivo, ainda não havia me confessado. Lucas afirmou que o “susto”, como ele e a mãe definiram, aconteceu cerca de dois anos atrás. Lilian simplesmente saiu pela porta de casa, sem levar documentos ou dinheiro, e voltou somente cinco dias depois, sem nunca mencionar onde havia se metido. Lucas revelou que essa foi de longe a coisa mais terrível que sua irmã fizera, e a lista é extensa e variada. Se eu me sinto abalado só de cogitar as possiblidades de um desapare
1Termino a deliciosa comida às pressas, enfiando as três últimas garfadas na boca, uma após outra sem me preocupar com a mastigação. Rapo o prato ruidosamente e o jogo dentro da pia. Ainda mastigando, ganho olhares de meus pais._ Tudo isso é pressa de ver a namorada, filhote?! _ Minha mãe pergunta comendo calmamente seu jantar. Já faz uns dias que ela soube de meu envolvimento com Lilian. No instante em que revelei a meu pai que “conheci uma garota”, já o fiz prevendo conscientemente que meu velho não ia demorar a contar para a ursa que o seu “filhote” estava prestes a ser tomado dela. Claro que meu pai exagerou, e muito, com o único intuito de irritar minha mãe. A implicância é a tônica do relacionamento deles. Nunca falta motivo pra um pegar no pé do outro e, se os motivos estiverem escassos, eles ca&cced
1Eu nunca vou me esquecer da primeira vez em que o vi. Ele não tinha nome, ainda, mas nunca foi mais um nem mesmo por um segundo. Deve ser por conta da maneira com a qual tomei conhecimento de sua existência. Foi num sábado de manhã excepcional, pelo fato de que eu nunca ia ao parque aos sábados. Ainda mais tão cedo. Nessa hora, eu geralmente durmo após uma sexta-feira insone. Não naquele sábado, naquela manhã igualmente insone. O peso andava mais pesado que o normal, o barulho que vem de dentro, ensurdecedor, a escuridão mais densa... Eu precisava sair e bater perna no meu parque ou ia acabar fazendo besteira. Todas as manhãs, há muitos anos já, eu acordo querendo fazer besteira; essa uma específica que vai acabar com tudo para sempre, que vai me liberar da vida. Infelizmente, o mundo ao redor não considera essa uma boa ideia, especialmente Lucas e mi
1O parque não é a mesma coisa sem Lilian, mas hoje muitas coisas estão diferentes; a começar pelo lugar. Ao invés da minha amendoeira amiga e do pedaço de grama gasto por Lilian e por mim, estou sentado num dos bancos, bem longe do meu canto favorito. O horário é estranho. O relógio de pulso indica 15h37min, mas com a chegada do outono o sol não queima a cabeça e não preciso usar boné. Até tenho bonés, mas nunca os uso porque sempre estou fora do sol nesse horário. Hoje, a raridade se deu por ocasião de um feriado, o que também fez metade da cidade sair de casa e entupir “meu” parque. Entretanto, de todas as mudanças, nenhuma é menos sutil do que a mulher de cabelo azul me acompanhando. Eu equilibro um cigarro entre os lábios; ela um pirulito._ Quer trocar?_ Não sei se te contaram,
1O que é, o que é... Um pontinho branco no fundo preto?_ Você já está há um tempão olhando pra isso.Lilian e eu estamos ao balcão da cozinha, que é um tampo preto de madeira recém-pintado. Nossos bancos são altos, o que nos permite esticar os joelhos de quando em quando. De braços cruzados, eu olho para os únicos objetos sobre o tampo: um copo de vidro cheio de água, um frasco de plástico na cor laranja, com um adesivo preto em volta e pequenas letras brancas de identificação, uma tampa verde bem ao lado deste e, no fim da fila, uma bolinha branca poderosa e desafiadora. No começo, a água do copo estava gelada, mas a temperatura ambiente fez com que gotículas se condensassem sobre a superfície do vidro e parassem abaixo da base do copo, molhando o balcão. O tempo passou tão lentamente qua