— De jeito nenhum! – Miranda deixou sua opinião mais clara impossível, se colocando entre o corpo de Cora e Travor, como se ela estivesse cem por cento disposta a servir de escudo humano se fosse necessário. Tony mais do que entendia o posicionamento dela, ele mesmo ainda tentava digerir a ideia que Trav havia apresentado. — Nós não vamos amputar a perna dela e usá-la como um pedaço qualquer de carne pra isca. Pelo amor de deus!
Travor soltou o ar com força pelas narinas, perdendo a paciência. Dava pra ver que ele preferia a companhia de June, o cara prático e insensível, do que Miranda.
— Mas, acontece que não tem outro jeito. – Travor disse, apertando a mal
Foi ótimo que Tony tenha desmaiado, Miranda ponderou, ela mesma, se pudesse, não estaria ali para ver o que iria acontecer.— Certo, – começou Travor, — vamos colocá-la na mesa e virá-la de lado, vai me dar mais apoio.Enquanto Travor empurrava toda a bagunça da mesa para o chão e fazia o que era possível pra ter uma superfície limpa, Miranda fez um torniquete na coxa de Cora para reduzir ao máximo a circulação sanguínea naquela parte do corpo. Se tivessem feito isso antes, talvez a necrose e aquele fluido pútrido não teria se espalhado tão rápido.Foi uma decisão errada atrás da outra. Miranda não conseguia evitar se culpar por ter forçado a troca com J
Tony sentiu mãos tocando seu ombro e acordou de súbito, se sentando tão rápido que foi como se sua pressão sanguínea tivesse ido parar nos pés, zonzo, com uma dormência enjoativa no trecho acima dos lábios e abaixo do nariz. Miranda o amparou, ajudando-o a se inclinar para frente, uma mão firme em seu peito e outra em suas costas, comprimindo só o suficiente para ajudar a diminuir o vazio que ele sentia entre os pulmões.— Ei, Tony, shh… – ela seguiu fazendo movimentos circulares em suas costas e dizendo frases de afirmações que, apesar de Tony estar ciente do quão genéricas e fora da realidade elas podiam ser no momento – “está tudo bem”, “tudo vai melhorar”, “você está indo bem” –, a repetição e
Se Cora estava dando sinais de vida, isso significava que a conexão entre ela e os sanguessugas havia se quebrado. O que era bom, pois, se não fosse assim, eles continuariam sendo seguidos para onde quer que fossem e Travor tinha lugares para ir.Miranda injetara em Cora uma dose de morfina quando a dor pareceu forte demais para que ela pudesse suportar. Ao lado de Travor, Tony contorcia-se em seu assento, agitado, tentando ao máximo lidar com o incômodo de presenciar o sofrimento da amiga e não poder fazer nada. Era estranho que estivesse tão calado, esperava que ele procurasse expurgar parte dessa energia em palavras, mas ele mal abriu a boca desde que Cora emitiu os primeiros gemidos.Travor, por sua vez, tinha facilidade em compartimentalizar as circunstâncias. Ele não estava bem. Na verdade, se parasse
— Então vai ser assim agora? – Miranda disse, quando se deu conta de que estava novamente na sala de Levi, a cobertura luxuosa cujo design ela não ajudara a construir, mas que era boa demais para reclamar. Aliás, a rapidez com que a dinâmica dentro do sistema mudou era igualmente boa demais para ser verdade e Miranda ressentia o quanto a raiva e a frustração que sentia dentro do peito pareciam ser injustificadas. — Quem é que decide o que acontece aqui dentro, por acaso?— Como é que eu vou saber?Miranda, que estivera olhando pela janela por todo esse tempo, estranhou a voz, que não soava nem um pouco com a do garoto que encontrara ali da última vez. Se virou e viu um rapaz sentado no chão, perto da única porta que havia na sala.
Levi terminou de entrar na sala e arrumou os óculos no rosto.— Esse é o tipo de hostilidade que eu espero do June e não de você, Miranda. – disse, colocando uma mão na cintura e apoiando o peso do corpo em uma perna. Por mais que ele quisesse que aqueles dois idiotas continuassem se comunicando, com palavras ou com tapas, não havia tempo.Ele aproveitou que Miranda praticamente desmaiou de cansaço pra forçar aquela interação entre eles. Mas alguma situação externa estendeu essa inconsciência e agora haviam pessoas abrindo os olhos deles e apontando a luz de lanternas para testar a dilatação das pupilas, esperando encontrar alguma resposta do sistema nervoso.A espécie de perturbaçã
Teve a impressão de ter acordado várias vezes.Ou de estar em um sonho dentro de outro sonho dentro de outro sonho.Sentia a cabeça pesada como chumbo e os pensamentos atordoados e nebulosos como algodão. Devia estar viva, mas nada fazia sentido. Imagens e sons desconexos iam e viam e, por mais que ela tentasse se prender a algo, não conseguia.Em algum momento, Cora teve vislumbres de rostos e sons se repetindo e, mesmo que nenhum desses elementos lhe fosse familiar, o padrão trazia-lhe certo conforto.Foi uma sede tremenda que a acordou. Um sentimento humano o suficiente para que ela se lembrasse de que ainda era alguém, de que ainda possuía um corpo e que estava viva.
A sombra ficou imóvel no canto da ambulância durante todo o percurso até o hospital, tanto que não demorou muito para que Tony começasse a duvidar de si mesmo e que aquilo não passava de uma alucinação.Talvez a sombra fosse só uma sombra. Mas nada era apenas alguma coisa nesse novo mundo que lhe deram a conhecer.Tony respondeu aos socorristas o melhor que pôde, mas o estresse e a ameaça que literalmente se avultava diante dele, tornava difícil a tarefa de prestar atenção ao que diziam ou faziam com ele.Foi admitido na emergência do hospital, confuso e com medo, perguntando por Cora e Miranda e sem receber nenhuma resposta clara
Não era para ter sido uma surpresa, mas Miranda ainda perdeu o fôlego quando pisou do lado de fora daquela sala e deu de cara com a praia. Sem elevadores ou escadas, foi direto da cobertura para a saída no térreo, o sol a pino esquentando sua pele e fazendo-a fechar os olhos.Como isso é possível?Caminhou pela calçada, sentindo bem a textura da areia trazida pelo vento no concreto sob os chinelos. Foi na direção do mar.Dali escutava apenas a natureza: o som do movimento e do bater das ondas, o dançar das palmeiras, o grito dos pássaros. Nada da poluição sonora humana que costumava acompanhar suas experiências na praia, ou seja, nada de música alta, comerciais