Travor gostaria de dizer que estava se sentindo mais leve depois de fazer o seu melhor para corrigir os erros que cometeu com aquelas pessoas, mas era difícil ter qualquer sentimento positivo quando se estava fadado a passar a noite acampando em um lugar abandonado no meio de uma mata amaldiçoada, com apenas uma lanterna e barras de cereal.
Depois que terminaram de definir os termos do acordo, Mack não teve nenhuma dificuldade em encontrar o caminho de volta por onde veio. Mesmo sem os seus corvos, que pareciam ter se recusado a adentrar aquele lugar, ele apenas seguiu com toda a confiança do mundo e desapareceu na escuridão noturna. A teoria de Travor era de que o sujeito simplesmente não precisava parar para nada, nem para beber água ou retomar o fôlego, e, dessa forma, seguir por uma linha reta não se transformava em um pesadelo.
<Encontraram Travor parado em frente à casa que os moradores diziam ser a origem da tragédia da cidade. Ele parecia a estátua de um baixinho, ruivo e malafrojado encarando a porta de entrada de um lugar caindo aos pedaços.Ele estava pálido e parecia concentrado demais em apenas respirar, golfadas curtas de ar, como se estivesse tentando se acalmar, ou, o que era mais provável, tomar coragem.June não fazia ideia do que se passou com Travor no meio tempo em que estiveram longe, mas sua aparência era péssima. Haviam cortes e sujeira em suas roupas, os cabelos amarrados de qualquer jeito, pendendo para um lado e o rosto fundo, como se não dormisse ou se alimentasse há dias.A finura de sua pele destacava ainda mais sua expressão de foco
— Eu acho que antes de pensar em quebrar uma janela, a gente devia, sei lá, bater na porta. – June disse, ao perceber a hesitação de Travor, que esperava perto de uma das janelas (as cortinas escuras bloqueavam a visualização do interior e, quem quer que estivesse lá dentro, escolheu iluminar somente o andar de cima) — Se ninguém atender, o que é muito provável, eu arrombo. Vai economizar tempo e você não vai se borrar todo.Travor gostaria de conhecer uma magia que pudesse silenciar pessoas insuportáveis. Mas, infelizmente, tudo o que ele sabia eram longos textos em uma língua quase esquecida para obter resultados temporários. E, mais infeliz ainda, logo nem isso ele saberia mais.— Cala a boca. – replicou, erguendo a mão, pedin
June se sentia okay em lidar com um homem tendo uma crise psicótica. Vince aparentava delirar e ter alucinações com todas aquelas cenas que narrara a eles. Ele precisava de ajuda profissional e não de um cara com uma chave de roda na mão e uma mulher com uma arma pendurada no ombro.Subiram atrás dele até o segundo andar, e ali o ar era quase irrespirável. Cheiro de poeira, mofo e restos de coisas em decomposição, fora o que ele não conseguia identificar, tudo abafado. June fez uma nota mental de abrir a primeira janela que tivesse acesso.No final do corredor havia uma porta entreaberta, o quarto que tinha a luz acesa do lado de fora. Vince terminou de abri-la da mesma forma como fez com a porta de entrada, com polidez e teatralidade. Ser usado como sacrifício para um ritual de ressuscitação não era como Travor havia se imaginado partindo desse mundo, mas parecia que era isso mesmo o que ia acontecer.Os olhos de Vince eram uma mistura impossível de determinação e frieza. A falta de reconhecimento em seu olhar era um conforto para Travor, seria muito pior se ele estivesse agindo dessa maneira com plena consciência de quem era o cordeiro que levava para o abate.Sentiu lágrimas escorrendo de seus olhos ao mesmo tempo em que o líquido morno vazava do corte em seu pescoço.No começo, com o susto, ele mal sentiu a lâmina penetrar sua pele, mas logo a dor foi grande demais para ser ignorada. Profunda.Vince, desde que Aquilo que está nas mãos do destino
Levi trocou uma ideia com o tal do sem rosto – que, por sinal, não se chamava Silas. Aliás, não tinha nome nenhum, estava tão desvanecido desse mundo, que não lhe restavam memórias ou identidade, apenas uma forma – e decidiu que poderiam existir entre eles uma espécie de sociedade benéfica para todas as partes.Há muito haviam prometido a esse sem rosto que garantir que o ritual fosse finalizado seria sua passagem para o outro lado. Ficaria livre de sua sina de vagar pela terra até desaparecer por completo.Era triste descobrir que era isso o que acontecia com as almas que morriam com solitárias e sem vínculo com o mundo. Sim. Pessoas desconectadas com o plano terreno, sem ter quem se importasse com elas ou sem deixar suas marcas em vida, se tornavam esses seres ambu
Vince acordou grogue, com a cabeça pesada e a língua como se fosse uma bola de algodão preenchendo sua boca. Havia sido despertado por um pesadelo. Não aquele em que sua mãe o levava para um lugar isolado no meio da noite para usá-lo como sacrifício para ressuscitar seu pai morto. Não. Essa lembrança quase não o assombrava mais. As memórias que o perseguiam agora eram as de uma pessoa que ele mal reconhecia, que não tinha controle sobre suas próprias ações e que tentou matar o seu melhor amigo em troca de uma recompensa impossível. Versões cada vez piores do que realmente aconteceu se desenrolando em sua cabeça todas as vezes que fechava os olhos. Um talho no pescoço, aberto, gorgolejando sangue enquanto a vida se esvaia dos olhos verdes límpidos de Travor. Pele, ossos e músculos se desmanchando por e
Ele acordou bruscamente, com a respiração irregular e o corpo coberto por uma camada pegajosa de suor. Vince fechou os olhos e deu a si mesmo tempo para se recuperar do pesadelo que o havia despertado. Enfiou as mãos nos cabelos longos e os tirou do rosto enquanto sua mente clareava o suficiente para começar a controlar o fantasma do pavor que lhe percorrera.Olhou em volta e viu que Travor ainda dormia pesadamente do outro lado do quarto, o que significava que não houveram gritos ou coisas sem sentido ditas durante o seu sono, como era de hábito. Ele não se lembrava de conseguir dormir uma noite inteira desde que tinha onze anos.Tendo recuperado o fôlego, Vince se levantou no escuro e foi até a pequena cozinha do apartamento em que moravam, encheu um copo d’água e tomou a metade. As im
O uniforme do Parlour’s Café era minúsculo, Cora o odiava e passava mais tempo ajeitando a mini-saia lilás em volta da cintura do que prestando atenção nos clientes.Por sorte, ela tinha planos para deixar a espelunca, a cidade, o país, naquele dia mesmo, e não teria mais que se sentir como parte do cardápio.Cora inspecionou as mesas e escolheu a dedo qual seria a última pessoa que ela atenderia. No canto, solitário, estava um homem, com os olhos verde-claros fixos na tela do notebook, tinha a pele bronzeada, cabelos na altura dos ombros, muito lisos, que o faziam se mexer de tempos em tempos, para colocar as mechas atrás da orelha. Ele era bonito, mas o que se destacou nele o suficiente para fazê-la ir em sua direção foi a expressão determinada