Ele acordou bruscamente, com a respiração irregular e o corpo coberto por uma camada pegajosa de suor. Vince fechou os olhos e deu a si mesmo tempo para se recuperar do pesadelo que o havia despertado. Enfiou as mãos nos cabelos longos e os tirou do rosto enquanto sua mente clareava o suficiente para começar a controlar o fantasma do pavor que lhe percorrera.
Olhou em volta e viu que Travor ainda dormia pesadamente do outro lado do quarto, o que significava que não houveram gritos ou coisas sem sentido ditas durante o seu sono, como era de hábito. Ele não se lembrava de conseguir dormir uma noite inteira desde que tinha onze anos.
Tendo recuperado o fôlego, Vince se levantou no escuro e foi até a pequena cozinha do apartamento em que moravam, encheu um copo d’água e tomou a metade. As imagens do sonho ainda passavam diante de seus olhos como se ele ainda dormisse.
Vince não voltaria mais para a cama até estar tão exausto que não tivesse outra opção senão desabar e esperar pelas imagens que lhe vinham durante o sono, como atravessar uma porta direto para memórias que ele se esforçava para esquecer.
Ele preferia morrer de cansaço do que rever o seu passado todas as noites como um filme ruim e repetitivo. Um que nunca falhava em relembrá-lo no quão errada, louca e doentia sua vida havia se tornado.
A história era sempre a mesma e ele não sabia exatamente o que fazer com o seu futuro.
Ao mesmo tempo em que Vince completava onze anos de idade, Norman Levitt, seu pai, morria, destroçado, sob ferragens no meio de uma estrada. Ele era caminhoneiro e se distraira por alguns segundos na tarefa simples de pegar no painel o bonequinho que estava preso no retrovisor e caiu, foi o tempo necessário para colidir de frente com um carro que ia na contramão, instável, em alta velocidade. O velório foi com o caixão fechado, porque não sobrou nada do corpo para velar. Esse episódio, por mais triste que fosse, não era fora do comum e Vince poderia conviver com a ausência do pai. Mas sua mãe, Evelyn, não encarou o ocorrido tão naturalmente.
Ela entrou em um estado profundo de depressão. Não comia, não saia do quarto, não conversava mais. Evelyn era um peso morto dentro daquela casa e Vince sentia como se tivesse perdido os dois pais naquele acidente.
A senhora Levitt, entretanto, foi obrigada pelas irmãs a procurar ajuda psicológica. E ela foi, mas talvez tirar a mulher da cama não tenha sido uma boa ideia, afinal de contas.
Ela buscou ajuda sim, não só psicológica, mas também de outras fontes, conheceu pessoas que lidavam com cultos, rituais religiosos, rituais não tão religiosos. Conheceu pessoas que lidavam com coisas que deveriam ser deixadas em paz. Uma delas foi o padre Reeve, um senhor de meia idade que tomava conta de uma paróquia afastada, da qual ninguém tinha ouvido falar.
Vicent não achava que conversar com aquele homem faria sua mãe se sentir melhor. Ainda que fosse um padre, ele tinha sempre uma expressão sombria, às vezes até debochada, no rosto, e costumava dizer coisas estranhas. Gostava de falar sobre exorcismos, sobre demônios, sobre pecado e sobre morte, ele nunca falava sobre deus e isso incomodava Vince profundamente.
Depois que começou a contatar Reese, Evelyn passava cada vez menos tempo em casa, sempre apressada, murmurando consigo mesma, olhando para Vince como se estivesse fazendo algo muito errado. Ele se preocupava com esse novo estranho comportamento da mãe, mas achava isso melhor do que vê-la vegetar do modo como fazia antes.
Fora isso, a vida tinha voltado ao normal. Vince era apenas um garoto, mas sabia se virar. Ele era mais alto do que os outros meninos da sua idade, tinha a pele amorenada como o pai e olhos verde claros como os da mãe, antes mesmo da morte de Norman, ele já era um garoto relativamente independente. Como o caminhoneiro que era, o homem viajava muito e quase não parava em casa e Evelyn, bem, ela não era um tipo muito protetor de mãe.
Um dia, Vince chegou em casa e encontrou a mulher parada no quintal, com uma pá na mão, frente a um imenso buraco. Ela tinha destruído a grama, os cabelos estavam desgrenhados e estava toda suja de terra. Seu olhar era vazio e Vince teve uma sensação estranha na boca do estômago ao vê-la daquela forma.
— Não venha até aqui, querido. Eu já estou terminando. – ele não se aproximou mais. Não porque ela pediu, mas por causa da voz doce e comedida, descaradamente falsa. Ela o estava assustando como o diabo.
Quando ela voltou para casa, tinha um saco plástico de lixo nos braços. Evelyn subiu as escadas com aquela imundice, deixou um rastro de sujeira e não parecia se importar com nada.
Naquela noite, Vicent não conseguiu dormir e não se surpreendeu de todo quando a mulher apareceu no seu quarto de madrugada, com o mesmo vestido sujo, as unhas quebradas e pretas e a ausência de sentimentos no olhar.
— Vamos, meu anjo. Nós temos uma coisa muito importante para fazer essa noite. Você quer ajudar a mamãe, não quer?
Ela esperou enquanto ele se vestia, e segurou a jaqueta de couro marrom que era de Norman para que ele passasse os braços. Vince não era idiota, não aceitou tudo calado, mas a mulher não respondia às suas perguntas, ignorava os seus comentários e o forçava a caminhar quando ele dava sinais de hesitação.
Subiram no Jeep da família. Aquele saco nojento estava no banco de trás, junto com a maleta de ferramentas. Evelyn dirigiu pela estrada como se fosse sair da cidade, mas virou à direita em uma estradinha de chão e seguiu pelo bosque. Foram até a estradinha virar trilha e a trilha chegar até o limite de onde poderiam ir de carro. Desceram. Evelyn o fez carregar a maleta e agarrou-se novamente ao pacote.
Vince estava com medo. Mas também tinha uma impressão muito forte dentro de si de que alguma coisa grande estava prestes a acontecer. Algo que mudaria tudo. Na realidade, a sensação de que iria morrer essa noite era latente.
A maleta estava leve demais e não tinha o som metálico das peças batendo umas contra as outras. Ele tentou abrir, mas teve receio do que veria ali. Vince era um baita de um covarde. Não importava o quanto sua mãe estivesse maluca, só o que ele teria que fazer era sair correndo e buscar ajuda, ele devia ter gritado quando teve a oportunidade e quando pessoas poderiam ouvi-lo. Mas não, ele agora estava preso, no escuro, no meio de uma floresta, com vontade de chorar e se esforçando ao máximo para não tropeçar e ser obrigado a escutar outro “meu querido” ou “doce” ou “filhinho” saindo da boca daquela mulher que lhe era agora uma completa estranha.
Andaram o que pareceu ser um quilômetro até virem luzes no meio das árvores. Havia uma cabana lá, rústica, feita inteiramente de madeira. Era pequena e Vince deduziu que ela servia como abrigo para algum caçador na temporada de caça. Ele sentiu um arrepio ao ver um toco de carvalho, rodeado de madeira cortada, mas sem o machado apropriado para o trabalho enfincado nele.
Evelyn deu duas batidas na porta e ela se abriu. A iluminação que haviam visto era à base do fogo das velas e de uma lareira que havia na minúscula sala. Vince inspecionou o lugar e não gostou nem um pouco do que viu.
Não haviam muitos móveis por ali, na realidade, o único objeto decente era uma mesa gigantesca de madeira, nela havia um cervo morto, sangue escorria pelos cantos da superfície e algumas vísceras estavam penduradas. A cabeça dele estava virada para a porta e Vince pôde ver aqueles olhos grandes e mortos encarando-o. O cheiro naquele lugar era insuportável.
O garoto congelou na porta, incapaz de se mexer. Viu o padre Reeve surgir de sabe-se lá onde e cumprimentar Evelyn como se fosse a droga de uma manhã de domingo e ele fosse dar uma daquelas missas hipócritas que ele costumava dar. Ela tremia, mas respondia a ele como se estivesse seguindo um roteiro.
Ela colocou o saco plástico ao lado do corpo aberto e pútrido do cervo como se não o estivesse vendo.
Reese tinha uma expressão estúpida no rosto de diversão contida, Vince tinha certeza de que ele estaria sorrindo se estivesse sozinho ou se já tivesse acabado de usá-los. Uma raiva começou a crescer dentro dele, ele queria matar aquele homem, arrancar o escárnio da cara dele, fazê-lo pagar por brincar com a mente de sua mãe daquela maneira, por tirar a vida daquele animal inocente. Queria matá-lo apenas por existir.
Seu fluxo de pensamento foi interrompido quando Evelyn abriu o saco.
O cheiro ficou ainda pior. A sala pareceu diminuir e o ar comprimiu-se. Vince perdeu completamente a sensibilidade do corpo diante do que estava vendo e deixou a maleta cair no chão com um barulho abafado.
Bem ali, ao lado do cadáver, estava um coração humano, sujo de terra e sangue coagulado. Sua cor variava entre marrom e roxo e haviam partes em fase de decomposição.
Vince tinha apenas onze anos e não era um bom aluno na escola, não tirava as melhores notas e não era considerado um garoto muito inteligente, mas uma coisa que ele tinha era intuição. Ele sentia entendimento correndo por suas veias. E, naquele momento, ele soube que aquele coração era de Norman e que sua mãe estava prestes a fazer algo horrível.
Ele tentou dar passos discretos e silenciosos para trás, estava há alguns centímetros da saída, podia sentir a brisa fria e suave da noite às suas costas, enquanto um ar quente e abafado circulava do lado de dentro. Mas a porta se fechou com um baque. Quando olhou para o lado, Reese estava lá, olhando-o predatoriamente.
Contudo, ao invés de agarrá-lo e fazer com ele o mesmo que fez com aquele cervo, o padre pegou a maleta do chão e a levou para a mesa.
A abriu e tirou de lá um tecido, onde havia uma adaga envolvida. O cabo dela era de metal puro e liso, sem os enfeites e formatos estranhos que Vince estava acostumado a ver na televisão, e a lâmina tinha a ponta curva. De longe o garoto sentia que aquilo era mortalmente afiado.
— Vincent, amor, por que você não vem pra perto da mamãe, hm? – ela não parava de falar com ele como se estivesse falando com um bebê. Ele, que já estava enjoado com toda aquela cena, achava que poderia vomitar a qualquer momento. — Anda, querido.
Mas Vince não conseguiria se mexer nem se quisesse. Suas pernas pesavam como chumbo e ele se sentia um pedaço de madeira, parte da casa.
— Não se preocupe, senhorita Levit. Ele virá quando chegar a hora. Ele é um menino esperto e saberá o que fazer, não é, Vincent? – escutar seu nome saindo daquela boca asquerosa fez o garoto arrepiar-se, fê-lo querer chorar de novo, enrolar-se em torno de si mesmo e desaparecer.
Enquanto falava, Reese puxou um tapete que estava pregado na parede do outro lado da sala. Vince nem havia se dado conta de que aquilo estava ali, um pedaço de pano puído, da cor da madeira. Estava tão velho que pedaços dele ficaram presos nos pregos depois de retirados e uma nuvem de poeira pairou sobre eles.
Atrás dele haviam símbolos riscados na parede, alguma parte do cérebro do garoto sabia o nome daquela forma geométrica, mas ele não conseguia se lembrar, estava muito impressionado para se lembrar das aulas naquele momento. Mas havia ali um círculo com vários triângulos dentro dele. Havia também algo escrito, mas em um idioma que ele não conhecia.
O padre Reese também começou a falar em um idioma desconhecido. Falava como costumava fazer em suas missas. Parecia estar recitando um texto.
Quando terminou, o homem entregou a adaga a Evelyn e ela, sem nenhuma hesitação, cortou a palma da mão, fundo o suficiente para que o sangue começasse a escorrer. Desse modo, ela esfregou seu próprio fluido na parede, sobre os desenhos.
Depois, ambos viraram-se na direção de Vincent. Esperando.
Ele não queria. Ele estava aterrorizado. Sentia vontade de gritar, mas o grito não saia da garganta, se acumulava em seu peito e parecia que explodiria a qualquer momento. E como desejava poder explodir e deixar de estar ali!
Aquilo tinha que ser um pesadelo.
Não havia outra explicação, porque naquele momento Vince estava se movendo, um pé depois do outro, mas ele não estava comandando seu corpo a fazer isso. Ele assistia a si mesmo.
Aproximou-se da parede molestada por alguma lâmina qualquer e estendeu o braço. Reese segurou a mão esquerda dele com delicadeza e a feriu, da mesma maneira que Evelyn havia feito. Então, a guiou até a mancha vermelha deixada pela mulher.
Aquilo era absurdo. Vicent jamais permitiria que fizessem algo tão grotesco, perverso, tão… anti natural como aquilo. Seu medo, claro, falou mais alto do que a coragem, mas foi o suficiente para que ele resistisse.
Vince lutou com todas as suas forças para afastar-se, para que seu sangue, sua energia vital não encostasse naquele ritual bizarro. Chegou a dar uma cotovelada no peito de Reese, mas isso não bastou. O homem o empurrou com toda a força contra a madeira e, além de forçar a mão no local determinado, ainda bateu a cabeça dele violentamente.
O garoto caiu no chão. Pelo canto do olho ele pôde ver que Evelyn estava hipnotizada, tinha os olhos vidrados e tão brilhantes que ele mal conseguia enxergar as suas cores. Ele tinha esperanças de que ela estivesse preocupada com ele, em choque com a brutalidade, mas ela estava virada para outro lugar, para o lado da mesa.
Uma ventania veio de sabe-se lá de onde e tomou conta do interior da cabana. Todas as velas se apagaram e apenas uma brasa fraca sobrou na lareira. O vento parecia gemer.
Vince estava tonto. Sua cabeça girava e seus instintos lhe diziam para fugir.
Ele se arrastou pelo chão até chegar ao que deveria ser a cozinha. Havia uma janela estreita sobre a pia e ele se esforçou ao máximo para se manter estável o suficiente para escalá-la.
Caiu em cima de uma pilha de toras do outro lado. Ali ele foi capaz de gemer de dor, sua voz tinha voltado e ele conseguia também sentir o seu corpo novamente. Sua mão latejava e todo o seu braço parecia estar levando choques constantes, ele mal aguentava tocar a pele. A queda também rendeu alguns machucados, ele não tinha certeza, mas tudo indicava que seu outro braço, o direito, estava deslocado.
Quando conseguiu se levantar, Vince correu em direção ao Jeep. Os sons que vinham da cabana eram infernais e o caminho parecia nunca terminar. Ele correu e tropeçou várias vezes, caiu no chão e foi atingido por galhos. Como se já não fosse suficiente que estivesse tudo escuro, ainda haviam as lágrimas em seus olhos para embaçar ainda mais a sua visão.
Ao alcançar o veículo, o garoto começou a buzinar loucamente. Ainda tinha esperanças de tirar a mãe de lá. Mas não demorou muito um grito agudo e cheio de agonia irrompeu pela madrugada. Era ela.
De repente, uma explosão.
Vince percebeu que as chamas tinham saído do controle e tudo estava se incendiando. A labaredas começaram a se alastrar pela mata e a fumaça a subir e tornar a visão do céu turva.
Não tinha tempo. Vince queria muito sobreviver para ficar ali, parado, assistindo.
Suportando as dores, o garoto deu a partida e saiu com o carro. Não sabia dirigir, mas improvisou, fez seu próprio caminho por entre as árvores até conseguir enxergar a trilha novamente.
Ele se esforçou para manter o carro em linha reta, mas era difícil se concentrar. Foi uma vitória conseguir chegar até a estrada novamente.
Mas ele não sabia mesmo dirigir e não foi hábil o suficiente para fazer a curva e colocar aquele monte de lata na pista correta. Mal piscou e foi atingido na lateral direita por um carro de passeio.
Vicent Levitt passou a ser um órfão. Depois de encontrado, ele recebeu tratamento e seu cérebro, de algum modo, suprimiu grande parte das memórias do que ocorreu.
Ele se lembrava com clareza do fogo.
E se lembrava também da sensação, tão intensa que às vezes o deixava doente, de que algo havia despertado naquela noite. Algo ruim, poderoso, e que estava diretamente relacionado a ele. Algo que nunca o deixaria em paz, que o perseguiria enquanto ele vivesse, que iria proclamar o que era seu.
Vince não sabia o que era, nem quando isso o alcançaria. Mas sabia que esse dia chegaria e que ele deveria estar preparado.
O uniforme do Parlour’s Café era minúsculo, Cora o odiava e passava mais tempo ajeitando a mini-saia lilás em volta da cintura do que prestando atenção nos clientes.Por sorte, ela tinha planos para deixar a espelunca, a cidade, o país, naquele dia mesmo, e não teria mais que se sentir como parte do cardápio.Cora inspecionou as mesas e escolheu a dedo qual seria a última pessoa que ela atenderia. No canto, solitário, estava um homem, com os olhos verde-claros fixos na tela do notebook, tinha a pele bronzeada, cabelos na altura dos ombros, muito lisos, que o faziam se mexer de tempos em tempos, para colocar as mechas atrás da orelha. Ele era bonito, mas o que se destacou nele o suficiente para fazê-la ir em sua direção foi a expressão determinada
Quando partiu de Louisiana ainda era de manhã. Quando abriu o porta-malas do carro que roubou e encontrou um rapaz amordaçado lá dentro, faltava um pouco para o meio dia.O garoto, Tony, era um chorão. Não calava a boca e reclamava tanto que Cora se arrependeu de ter tirado a fita da boca dele.— Estou com fome. – disse ele pela décima vez.Cora nem o dignou com uma resposta, percebeu cedo que mandá-lo fazer silêncio não adiantava.— Sério. Eu estou com muita fome. Tipo, faz um século que eu não como nada. – Quanto mais ele falava, mais Cora tinha vontade de bater a própria cabeça no volante, impaciente. Ela também estava morrendo de fome,
A luz do sol já os havia abandonado completamente e a lua estava alta no céu.Miranda tinha a atenção dividida entre a voz de Tony e o ruído do vento entrando pelas janelas, sentindo a vibração do motor e do atrito das rodas no asfalto. Por mais estranho que aquele encontro tenha sido, Miranda estava contente por poder ficar quieta e respirar um pouco, sem se preocupar com sua própria vida.— Meus pais não me deixavam fazer nada e depois que eles se separaram ficou ainda pior. Eu juro que achei que isso ia aliviar um pouco pro meu lado, sabe? Mas meu pai não se dobra, não mesmo. – Tony continuou falando e de vez em quando Cora balançava a cabeça de uma lado pro outro, sem dizer nada, mas com jeito de quem não aguentava mais ouvir o que não tinha
Que merda, June pensou, ao perceber que estava acordando e sentindo como se todo o seu corpo tivesse passado por um triturador. Tentou engolir, mas a boca estava tão seca que sua língua mais parecia uma lixa e os lábios grudavam um no outro.A dor latejante na cabeça era uma constante, pulsando sem parar, fazendo seu estômago embrulhar no mesmo ritmo. Sua cabeça estava rachada, uma concussão na certa, e June não queria estar no corpo pra isso, não queria mesmo.Abriu os olhos e a luz que atingiu suas pupilas era o mesmo que uma chuva de adagas em seu cérebro.June se inclinou para frente e vomitou no tapete do carro.— Ai, porra. Tá
Cora ignorou os alertas de seu corpo – coração acelerado, os pelos arrepiados dos braços, o leve tremor das mãos – e levantou-se, determinada a não permitir que contos de assombração a intimidassem. Ela não iria se dispor a engolir a narrativa que lhe empurravam goela abaixo, mas admitia que algo não estava normal, mesmo para os seus padrões.Viu Tony desdobrar o papel e revelar um mapa, ele era antigo e tinha várias marcações, embora fosse fácil encontrar a mais recente. Cora olhou por cima do ombro de Tony até identificar o lugar onde estavam e seguir a linha até a casa que Vince se referira. Se tratava de um local rural, não muito longe, que exalava cheiro de armadilha.Ela estalou a língua e se afastou.<
Pararam por alguns instantes para que Tony pudesse ir com Cora para o banco de trás, onde tinha mais espaço, e tentasse fazer o seu melhor para emendá-la com os poucos recursos que possuíam. Logo acima do tornozelo haviam três cortes profundos, além de algumas outras escoriações.O sangue saía das feridas em pulsos, grosso e escuro, quase preto. Tony ficou zonzo com a visão daquilo, nunca tinha se deparado com uma mutilação como aquela e o cheiro não ajudava em nada com suas náuseas. Era uma mistura pungente de ferrugem e podridão, como o lixo da cozinha que ele costumava se esquecer de jogar fora e com o qual ele só conseguia lidar depois se estivesse protegido com luvas de borracha.Miranda estava quieta, para variar, uma pequena bênç&at
O lugar era um chalé.June não sabia o que ele estava esperando, mas não era uma casinha de madeira resumida a um quarto, um banheiro e uma cozinha minúsculos, armários repletos de comida enlatada e camadas de poeira sobre os móveis.Até que não é nada mal, pensou, seria quase aconchegante se não fosse pelas condições que o haviam levado até ali e a companhia que tinha.— Olha por aí se tem alguma coisa pra perna dela. – Tony pediu, depois que os dois a colocaram na cama, enquanto começava a tirar os tênis dela. — Eu acho que a gente precisa de antibióticos e de antisépticos.—
— Cora, espera, não. – Miranda se apressou para segurar Cora pelos braços quando percebeu que além da inquietação ela também planejava se levantar, assustada. Já havia sido difícil o suficiente remendar as feridas dela, não ia permitir que um terror noturno colocasse o trabalho todo a perder. — Tá tudo bem agora. Você está segura aqui.Pelo canto de olho, Miranda percebeu que Tony acordou, mas ficou meio sentado meio deitado, observando de longe.Os olhos de Cora estavam abertos, mas desfocados, sua consciência distante do presente. Cora mordia o lábio inferior com força agora, como se, mesmo dormindo, estivesse segurando vontade de chorar.Último capítulo