— Eu só queria que ela voltasse a viver. — Sílvio murmurou com um sorriso amargo.— Ela não vai voltar! Acorde! Lúcia precisa ser levada ao crematório e cremada! Como amigo dela, é meu dever garantir que ela tenha uma despedida digna! — Basílio estreitou os olhos, sua voz fria como gelo. — Você vai levá-la ou eu levo por você?— Eu mesmo a levarei. — Respondeu Sílvio, com a voz firme.O corpo de Lúcia foi trazido para fora da UTI pelos enfermeiros. Talvez por conta das medicações ou dos tratamentos, seu rosto estava inchado, assim como o resto do corpo. Quando o corpo chegou à entrada do hospital, a van funerária, organizada por Basílio, já estava à espera.Os funcionários do necrotério, vestidos de preto e usando luvas descartáveis, carregaram o corpo de Lúcia com expressões solenes e o colocaram na van.Sílvio seguiu o cortejo, entrando no banco traseiro da van. Leopoldo, preocupado com ele, sentou-se no banco do passageiro. Basílio, por sua vez, foi em seu próprio carro, dirigindo s
Em vida, Sílvio não a fez feliz. Por que, agora que estava morta, deveria continuar a atormentá-la?Quando chegaram ao crematório, Sílvio viu o corpo de Lúcia sendo levado para a sala de cremação, onde seria colocado no forno.Ele percebeu que sua força emocional não era tão grande quanto pensava.Não conseguiu suportar a visão do corpo de Lúcia sendo consumido, pouco a pouco, pelas chamas. Levantou-se e saiu da sala.O céu estava escuro, pesado. A neve continuava a cair, cobrindo tudo ao redor. Ele estendeu a mão, deixando que os pequenos flocos pousassem em sua palma. Pequenos, translúcidos, com seus contornos perfeitamente definidos.Lúcia sempre amou a neve. Ele se lembrou de algo que ela havia contado: o motivo de seu nome ser Lúcia era porque nasceu em um dia em que nevou o dia inteiro. Foi o pai dela quem escolheu o nome, inspirado naquele dia gelado. Ela nasceu sob a neve e, agora, partia também sob a neve.Seria isso o destino? A neve, caindo sem parar, começou a borrar sua vi
Sim, foi ele quem matou Lúcia. O amor de Sílvio era pesado demais, sufocante demais. E esse peso acabou por destruí-la.— Sílvio, eu te dei uma chance, e você a desperdiçou. Você e Lúcia... acabaram para sempre. — Foi o que Basílio disse antes de ir embora.Sílvio permaneceu parado no vento frio, refletindo. Ele não podia negar que Basílio estava certo. Ele havia perdido sua última chance, e Lúcia se fora para sempre.A mulher que ele chegou a desejar que morresse, agora realmente estava morta. Mas, ao invés de satisfação, o que sentia era um vazio insuportável.Uma hora depois, o processo de cremação havia terminado. Lúcia não era mais do que cinzas. Sílvio escolheu uma urna cor-de-rosa, a cor favorita dela. Ele observou enquanto os funcionários do crematório, com destreza e indiferença, usavam um martelo pesado para esmagar os ossos restantes até que se transformassem em pó branco. Uma pessoa viva, cheia de vida, agora cabia em uma pequena urna.— Na última noite de Natal, a Sra. Lúc
Sílvio segurava o pequeno e gelado recipiente com cuidado, como se o mundo pudesse desabar a qualquer momento. O frio do mármore da urna parecia impossível de aquecer, não importava o quanto ele tentasse envolvê-la em seus braços.De volta ao apartamento, ele parou na entrada, olhou ao redor e, baixando a cabeça, depositou um beijo suave no topo da urna:— Lúcia, estamos em casa. Não tenha medo, eu vou ficar ao seu lado.A luz amarelada do abajur iluminava a sala, criando sombras suaves nas paredes.— Sílvio, você voltou?A voz dela ecoou em seus ouvidos, tão real que ele levantou os olhos imediatamente. E, lá estava ela, usando um avental, ajeitando pratos fumegantes sobre a mesa de jantar com um sorriso nos lábios.Sílvio ficou imóvel, sem saber o que fazer, apenas olhando para a cena à sua frente.— Por que está parado aí? Foi um dia difícil no trabalho? Anda, vá lavar as mãos e venha jantar. Hoje fiz seus pratos favoritos!Ela o chamou com a voz doce de sempre, enquanto o sorriso r
Sílvio estava prestes a abrir a boca para responder que agora ele tinha tempo, que estava disposto a fazer qualquer coisa com ela, que iria aonde quer que ela quisesse ir. Mas, ao piscar os olhos, Lúcia desapareceu. Tudo o que restava era o quarto frio e vazio.Ele suspirou profundamente, tentando se recompor. Foi então que seus olhos pararam em uma gaveta trancada. O que havia ali dentro? Ele se lembrou de como Lúcia valorizava aquela gaveta. Ela sempre a mantinha trancada e nunca permitia que ninguém se aproximasse. Seria algo sobre o pequeno mudo? Ou talvez algo relacionado a Basílio?Enquanto sua mente vagava, Lúcia apareceu novamente, como um sussurro vindo do passado:— Se você está curioso, pode abrir.Sílvio hesitou, a expressão dele era de dúvida e receio:— Esse é o seu segredo. Tenho medo de abrir e te deixar chateada.— A chave está na gaveta do criado-mudo. Sílvio, meus segredos... todos eles são sobre você.Sílvio olhou para o criado-mudo e encontrou a chave exatamente on
As grandes mãos de Sílvio, firmes, finalmente pegaram o caderno de capa laranja que estava sobre a mesa. Ele o abriu. Logo na primeira página, algumas palavras saltaram aos seus olhos: [Registro da Contagem Regressiva da Vida].Aquelas palavras eram como agulhas finas e compridas que perfuravam seu coração sem piedade. A dor o fez prender a respiração por um instante. O caderno que ele havia comprado para ela foi usado para registrar a contagem regressiva de sua vida. Quão desesperada e desiludida ela devia estar.Sílvio continuou folheando.[Contagem regressiva: 30 dias. Hoje faz um ano que eu e Sílvio estamos em pé de guerra. Também é o dia em que fui diagnosticada com câncer de fígado em estágio terminal. O médico disse que me restam apenas trinta dias de vida. Liguei para pedir que Sílvio voltasse para casa, mas ele estava ocupado tirando fotos de casamento com Giovana. Hoje perguntei a Sílvio uma coisa: perguntei, "Sílvio, se eu morrer, você vai ficar triste?" Ele respondeu que so
Sílvio passou o dedo grosso e calejado pelo rosto, limpando as lágrimas que insistiam em cair. Ele continuou folheando o caderno. As páginas seguintes estavam todas em branco. Por mais que insistisse, não havia mais nada escrito.Por que ela parou de escrever? Seria porque não queria que ele lesse depois que ela morresse? Ou será que foi porque ele a machucou tanto, a ponto de deixá-la completamente sem forças, incapaz até de registrar seus últimos dias? Fazia sentido. Ela tinha se curvado, engolido o próprio orgulho, tudo por causa da família Baptista. E no fim, os pais dela morreram mesmo assim. Como ela teria ânimo para continuar escrevendo? E mesmo que tivesse continuado, talvez fosse apenas para amaldiçoá-lo, desejando que ele morresse.Mas Sílvio não se conformava. Ela foi embora tão de repente, sem deixar uma única palavra para ele. Ele não acreditava que o caderno estivesse vazio. Continuava folheando, desesperado. O caderno era barato, de qualidade ruim, e ele, na pressa, acab
Dois dias depois. Era o funeral de Lúcia. Foi realizado de forma grandiosa. Pode-se dizer que foi algo sem precedentes. A decoração do local, as cores das flores, a foto do retrato póstumo — tudo era no tom de rosa, a cor favorita de Lúcia em vida. Um fluxo constante de pessoas vinha prestar suas condolências.A maioria delas estava ali por consideração a Sílvio. Poucos tinham algum vínculo real com Lúcia. Mas, ao verem que o cabelo de Sílvio havia ficado totalmente branco de uma hora para outra, todos ficaram boquiabertos. Pensaram consigo mesmos sobre o que seria capaz de provocar tamanha transformação. "Quanta devoção", murmuravam baixinho. "Somente um amor tão profundo, tão intenso, poderia fazer isso com um homem."Os convidados se aproximavam da foto de Lúcia, colocavam flores e, ao sair, balançavam a cabeça enquanto suspiravam:— É uma pena… Um casal tão apaixonado, agora separado pela morte.Quando Basílio chegou, carregava nos braços um buquê de margaridas. Ele avistou Sílvio