Sílvio estava na fila, destacando-se no meio das pessoas ao redor. Mesmo com uma pequena bandagem branca na testa, seus traços fortes pareciam obra-prima esculpida pelas próprias mãos de Deus, chamando a atenção dos transeuntes, que não conseguiam evitar olhares curiosos.Logo chegou a vez de Sílvio. Ele pediu uma porção de batatas fritas, um hambúrguer e um purê de batatas. A dona da barraca, uma jovem senhora, ficou visivelmente envergonhada ao vê-lo, suas bochechas coraram, e ela acabou de dar mais na porção que serviu a ele.Sílvio pagou, agradeceu com um aceno e desceu os degraus em direção ao Maserati estacionado.— Senhor... — Uma voz feminina o chamou.Sílvio continuou andando, sem perceber que era com ele. Só parou quando uma jovem de vestido colorido e coque no alto da cabeça, carregando uma mochila, se aproximou ofegante e bloqueou seu caminho. O rosto dela estava levemente corado pela corrida:— Senhor, eu estava chamando o senhor! Por que não respondeu?Chamando ele?Sílvi
— Quando você vai voltar? A voz impaciente de Lúcia soou pelo telefone.Em outros tempos, Sílvio teria retrucado com sarcasmo, mas agora, aquele toque fria já o fazia sentir-se satisfeito, até um pouco reconfortado.Um leve sorriso surgiu nos lábios de Sílvio:— Está preocupada comigo?— Já estou perdendo a paciência. Preciso falar com você. Volte logo. — Respondeu Lúcia, fria, antes de desligar abruptamente.Ele queria dizer a ela que também estava ansioso para vê-la, por isso estava voltando o mais rápido possível. Em breve, eles estariam juntos outra vez. Mas, antes que pudesse expressar esses sentimentos, ela já havia desligado. Um aperto amargo tomou conta de seu coração. Seria possível que ela realmente tivesse tão pouca paciência com ele a esse ponto? Nem ao menos uma palavra completa ela deixava ele dizer.Dentro de sua mente, parecia haver duas vozes. Uma parte de si sentia que Lúcia estava sendo injusta, ignorando seus esforços e o quanto ele se sacrificava, indo de um lado
Desde que entrou, os olhos de Sílvio ficaram presos em Lúcia. Ela continuava vestida com aquele pijama de hospital largo, que agora parecia ainda mais folgado em seu corpo magro. Parecia uma flor murcha, prestes a cair do galho, resistindo ao vento com seu último suspiro.Sílvio sentiu um aperto no coração ao ouvir o tom frio dela. Seus dedos, que seguravam os lanches, enrijeceram por um momento. Ela claramente tinha visto o ferimento em sua testa, mas escolheu ignorar. Se fosse antes, Lúcia teria se preocupado, como um passarinho curioso, fazendo mil perguntas: se doía, onde ele tinha se machucado, por que foi tão descuidado.Mas agora, ela mal olhou para ele antes de desviar o olhar, como se ele não estivesse ali. O coração de Sílvio se encheu de uma mistura de sentimentos, um sabor amargo que ele não conseguia engolir. Eles já foram tão felizes, o casal que todos invejavam... Como as coisas chegaram a esse ponto? A dor o inundava, invadindo-o por inteiro.Apesar de tudo, Sílvio já n
As batatas fritas tinham uma aparência tentadora, douradas e crocantes, cobertas com o tempero especial da casa. O aroma era irresistível.Sílvio aproximou as batatas do rosto dela:— Quer experimentar?Era como se ele dissesse, "Lúcia, eu sou o mesmo Sílvio de antes. Aquele que voltou, que não quer te desapontar. Volta, vamos recomeçar. Tudo pode voltar a ser como antes."Ele a observava com intensidade. Lúcia também olhou para ele. Por alguns segundos, o silêncio pairou entre eles. Ela não se mexeu, não disse se queria ou não comer. Apenas ficou ali, imóvel, com um olhar perdido, encarando-o.— Sílvio, se você tivesse essa paciência comigo antes, se tivesse trazido esses lanches naquela época... Eu ficaria tão feliz. — Murmurou Lúcia.Ela falava a verdade.— Ainda dá tempo. Você gosta dessas coisas, eu posso continuar comprando pra você. Vou ficar do seu lado, cuidar de você até que se recupere. Quando você melhorar, vou reduzir o trabalho, vamos sair juntos, viajar, comer todas essa
O corpo de Lúcia, coberto pelo pijama do hospital, encostava-se na beira da cama. Seus olhos pousaram no rosto de Sílvio ao seu lado.O olhar dele transbordava expectativa e esperança. Era o mesmo olhar que ela já teve um dia. A ironia estava em como agora os papéis haviam se invertido.— Sílvio, vamos nos divorciar. — Disse Lúcia com uma voz suave, mas com o rosto marcado pelo cansaço.Ao ouvir essas palavras, o brilho de esperança nos olhos de Sílvio se apagou de imediato, como estrelas desaparecendo uma a uma no céu noturno.As mãos de Sílvio, caídas ao lado do corpo, se fecharam em punhos. Ele sentiu os músculos do corpo se enrijecerem, como se estivesse tentando processar o que acabara de ouvir. Será que tinha entendido errado?O silêncio caiu pesado entre eles.Lúcia percebeu que ele não respondia e pensou que ele não tivesse escutado. Então, repetiu, em um tom mais firme:— Sílvio, eu disse, vamos nos divorciar. Você ouviu?A impaciência transparecia em sua voz.— Hoje não é Dia
Por causa dele, os pais dela estavam mortos. Por causa dele, a depressão, o câncer, a insônia… Tudo a assombrava. Nem seu último e pequeno desejo ele era capaz de atender?Sílvio, tomado pela raiva, começou a falar sem medir as palavras:— Tem duas opções. Ou você trata essa doença e continua como Sra. Baptista, ou então se entrega ao próprio destino e morre nessa posição, separada para sempre daquele amante imaginário que guarda no coração.Entregue ao próprio destino… Separada para sempre do amante imaginário. Uma onda de tristeza avassaladora começou a afogar Lúcia, como se fosse uma maré incessante que lhe submergia.Lúcia sentiu um frio invadir seu corpo. Piscar os olhos secos era quase um esforço, e ela encarava o homem à sua frente como se já não o conhecesse. Ela tinha pensado que, ao saber da gravidade de sua saúde, ele se compadeceria e atenderia ao seu pedido, libertando-os. Ela estava enganada. Aquele homem, outrora tão caloroso, tinha se transformado completamente. Mas ond
A meio da conversa, Lúcia franziu a testa e interrompeu com impaciência:— Não me importo com isso.— Sra. Lúcia...— Leve embora essa comida.— Se a senhora quiser, posso buscar outra coisa. O que preferir. — Disse Leopoldo, forçando um sorriso.Lúcia soltou um suspiro. Esse Leopoldo era mesmo dedicado. Sílvio fazia o papel de vilão, enquanto ele tentava ser o bom moço. Estavam em perfeita sintonia.Mas, no fundo, Lúcia não guardava rancor de Leopoldo. Ele apenas trabalhava para Sílvio, não tinha culpa. Não queria descontar sua raiva nele. Pensando nisso, levantou o olhar e, com uma sinceridade fria, respondeu:— Não precisa. Não importa o que me traga, eu não vou comer.— Sra. Lúcia, o que a senhora quer dizer com isso? Não estou entendendo.— O importante é que o Sílvio entenda.— Sra. Lúcia...— Diga a ele que, no dia em que quiser se divorciar, será o dia em que eu volto a comer. — Disse Lúcia, com um tom desapegado.Leopoldo franziu o cenho:— Mas desse jeito, sua saúde não vai a
Lúcia estendeu a mão trêmula. A dor era insuportável. Agora entendia quão cruel era a dor de um câncer. Parar os remédios? Que loucura. Logo no início, ela já não estava aguentando!Ela queria tomar o remédio. Queria que a dor diminuísse. A enfermeira colocou as pílulas na palma gelada de sua mão:— Vai, toma logo.De repente, as palavras de Sílvio ecoaram em sua mente:— Lúcia! Para de fazer drama! Agora é hora de birra? Vou te dar duas opções: ou você toma seus remédios e aceita o papel de senhora Baptista, ou você vai apodrecer nesse papel, sozinha, sem nunca mais ver o tal “homem da sua vida”.A imagem de Abelardo caindo da sacada apareceu diante dos seus olhos. Como uma águia com as asas partidas, ele despencava, morrendo sem paz, com a boca cheia de sangue. Antes de morrer, ele ainda conseguiu escrever no chão, com o próprio sangue, o código do cofre do escritório: sua data de nascimento.Em seguida, veio a lembrança de sua mãe, caída na neve, segurando sua mão trêmula, ofegante,