Capítulo 2

Sem nem permitir que ele entrasse, Zhoe começou a se afastar, parecendo acuada, como se Tate fosse o portador de uma doença contagiosa. E talvez ele fosse mesmo. Principalmente porque só de vê-lo, ela já sentia o corpo formigando e as pernas bambeando, exatamente como se tivesse sido contaminada por uma infecção perigosa.

            — O que você está fazendo aqui? — perguntou, usando de seu tom de voz mais autoritário e confiante. Ou melhor, era uma tentativa de parecer confiante, porque, na verdade, se fosse revelar seus verdadeiros sentimentos, demonstraria que estava apavorada com aquela súbita aparição, quase fantasmagórica, especialmente se levasse em consideração o clima tempestuoso, bem propício a assombrações.

            — Eu não sei...

            O descaramento era o mesmo de sempre. Ele tinha a coragem de voltar, depois de todos aqueles meses, e sem se dar ao trabalho de ensaiar uma desculpa, por mais esfarrapada que pudesse parecer? Além disso, usava de sua melhor expressão facial de menino abandonado para tentar amolecer seu coração. Mas a verdade era que Zhoe não estava disposta a cair em suas garras. Não daquela vez.

            — Não tente me fazer de boba, Tate Barlow. Quero saber o que pensa que está fazendo aqui depois de tudo que fez. — Sua voz estava descontrolada. Exatamente o que ela não queria. Jurara para si mesma que se ele voltasse algum dia, vestiria sua mais bela capa de indiferença e o trataria com toda a frieza que ele merecia. Em contrapartida, contrariando todas as suas promessas, estava ali berrando com o cara que tinha a maturidade de uma marmota.

            — Eu... eu... não consegui.

            — Não conseguiu o quê, pelo amor de Deus?

            — Esquecer você.

            Naquele momento, tudo que Zhoe queria era berrar ainda mais com ele, dar-lhe um belo chute no traseiro, expulsando-o da pensão sem nenhum remorso. Porém, tudo que lhe restou foi o silêncio. E isso a deixou ainda mais revoltada, principalmente por si mesma.

            — Você não tem o direito! — Pronto, lá estavam as lágrimas. Aquelas malditas provas de que Zhoe realmente se importava. Provas de que tinha sofrido e ainda estava sofrendo. Mas ela estava pouco se lixando. Precisava extravasar, exorcisar seus demônios. — Você não tem o direito de sair da minha vida da forma como saiu e simplesmente voltar como se nada tivesse acontecido. Você me abandonou e... Não! — ela alterou a voz ainda mais. — Não! Você abandonou o seu filho! Não tem noção do quanto Colin ficou abalado desde que você partiu.

            Tate não disse nada. Apenas abaixou a cabeça e também começou a chorar, enquanto passava a mão pelos cabelos dourados, que pareciam mais desgrenhados do que o normal. Ele jamais andava desalinhado, amassado ou não apresentável, mas naquele momento parecia ter levantado da cama e saído, depois de travar uma ferrenha batalha com o travesseiro. Mas é claro que Tate não iria dizer nada. O que diria, afinal, se ele nunca tivera maturidade para dizer as coisas certas?

            Foi então que Zhoe tomou coragem e se aproximou dele. Ainda queria recuperar o controle, mas já sabia que seria impossível, então, apenas se deixou levar. A reação, embora contrária ao que ela mesma gostaria, foi a mais passional possível.

            O primeiro soco que ela deu no peito de Tate foi débil, quase tímido, sem decisão. Mas foi seguido de um, dois, três. Claro que ela não tinha força suficiente para machucá-lo da forma como realmente queria, mas a intenção era liberar todos — ou pelo menos boa parte — os sentimentos negativos em relação a ele. Até porque faria isso apenas uma vez. Tinha esse direito.

            Tate ficou imóvel, apenas esperando que aquele ataque terminasse. Ele a olhava exatamente como se sentisse dor, como se fosse terrivelmente doloroso olhar para ela daquela forma, principalmente porque Zhoe nunca o tratara daquela forma. Nem mesmo quando o relacionamento acabou pela primeira vez, com ela ainda grávida.

            — Zhoe, por favor, me desculpe... — ele também estava chorando. O que não era de se surpreender, já que tinha atitudes compatíveis com a mentalidade de um menino de doze anos.

            — Desculpar? Que tipo de desculpas você quer, Tate? Quer que eu perdoe o que você fez e continue olhando para essa sua cara desavergonhada ou quer que eu caia na sua cama outra vez? Provavelmente a segunda opção, já que você deve achar que eu sou assim tão idiota.

            — Não! É claro que não penso isso de você. O idiota sou eu.          

            — Ah, finalmente concordamos em alguma coisa... — Zhoe deu uma gargalhada sarcástica.

            — Mas eu te amo...

            Zhoe podia jurar que não sabia o que Tate pretendia com uma frase como aquela. Será que ele realmente acreditava que ela iria se comover, se jogar em seus braços e tudo ficaria bem?

            — Ah, você me ama? — Zhoe deixou escapar uma risadinha cheia de sarcasmo. — Até quando? Até me levar para cama, trepar comigo como um animal e me descartar como se eu fosse uma camisinha suja? — As palavras escolhidas eram duras, mas serviriam perfeitamente para demonstrar sua raiva naquele momento. Talvez metade delas fosse efeito da bebida, na verdade, já que suas emoções pareciam tão à flor da pele. — Ou até a próxima garota bonita aparecer? Quantas você levou para cama nesses seis meses? — fez a pergunta, mas se arrependeu na mesma hora, então, nem sequer o deixou responder. — Quer saber? Não me interessa. Você deve fazer o que quiser com o seu pau. Não tem nada a ver comigo.

            — Zhoe, por favor...

            — Saia daqui antes que eu chame Jacob e alegue que você invadiu minha propriedade. E pode apostar que do jeito que ele está puto com você pelo que fez, vai ter prazer em te fazer passar uma boa noite na cadeia.

            Zhoe o viu esmoecer e seus ombros caírem sem escolha. Qualquer pessoa que o observasse ali, com o rosto lindo molhado de lágrimas e com aquela expressão perdida, teria sentido pena. E talvez, se não estivesse protegida pelo entorpecimento da bebida, Zhoe tivesse sentido a mesma coisa. Mas, naquele momento, tudo que queria era distância daquele homem.

            — Eu não vou desistir de você, Zhoe. Voltei para te provar que te amo e que nunca mais vou te decepcionar. Que posso ser o homem que você e nosso filho precisam — ele falou com tanta confiança que ela poderia até ter acreditado. Isso, é claro, se fosse estúpida o suficiente.

            — Tarde demais, Tate. — E foi então que falou a primeira coisa que surgiu em sua cabeça. — Estou com outra pessoa.

            Aquela pequena frase fez com que Tate tivesse uma reação de quem levou um soco bem no meio do estômago.

            — Isso não pode ser verdade! — O choro de Tate se intensificou. — Você é minha... Sempre foi.

            — Sua? — ela cuspiu a palavra com um enorme desdém. — Com que direito você diz isso? Foi você que não me quis! Eu estava disposta a ter uma vida com você, me entregar de verdade... mas você estragou tudo!

            — Quem é esse cara? — Visivelmente nervoso, Tate agarrou os braços de Zhoe, sacudindo-a de leve.

            — Não é da sua conta! — ela alterou ainda mais o tom de voz, debatendo-se, tentando se soltar. Mas Tate a apertou ainda mais.

            — Você o ama?

            Como ela poderia responder  uma pergunta tão pessoal? Como poderia dizer que amava uma pessoa que simplesmente não existia? Como ser convincente em relação a um sentimento tão profundo? Era o mesmo que se declarar para uma parede. Contudo, ao mesmo tempo em que não queria contar uma mentira idiota como aquela, não podia deixar de responder ou ele saberia que não havia ninguém.

            — Amo. Ele é especial para mim.

            Depois de dizer isso, ela se calou. Foi tudo que conseguiu dizer. Toda mentira tinha um limite para parecer convincente.

            E ela realmente pareceu convencê-lo, pois Tate, depois de hesitar um pouco, a soltou lentamente e começou a se afastar. Também bem devagar. Até desaparecer na escuridão da noite, sob a tempestade.

            Porém, quando Zhoe fechou a porta, encostando-se nela para tentar manter o equilíbrio, soube que a mentira e toda aquela cena de “reencontro”  estavam doendo muito mais nela.

***

            Já fazia pelo menos meia hora que estava sentado no banco daquele carro, atrás do volante, enquanto os grossos pingos de chuva embaçavam o vidro, nublando sua visão. As lágrimas também ajudavam para que ele não conseguisse enxergar praticamente nada. Estava tão cego quanto seu coração estivera durante todo aquele tempo.

            Como pudera duvidar do que sentia? Como pudera ser tão imaturo a ponto de pensar que algum dia haveria uma mulher além de Zhoe?

            E talvez tenha sido exatamente isso o que tanto lhe assustou.

            Tate tinha medo do definitivo, do “para sempre”. Tinha uma tendência a mudar de opinião e de enjoar de tudo que estava relacionado à rotina. E uma esposa e um filho significavam exatamente isso. Amava Colin mais do que tudo na vida, mas tinha plena noção de que nunca seria um exemplo de pai. Não quando não conseguia manter o pau dentro das calças ao ver uma mulher bonita.

            Por mais que isso tivesse mudado nos últimos tempos. Desde que tivera Zhoe nos braços novamente.

            Apesar disso, não sabia se estava preparado para uma vida de fidelidade e estabilidade. Fora por isso que fugira. Por isso desaparecera naquela noite como um gatuno. Agira como um covarde, mas tivera certeza de que não daria certo, que estragaria tudo em um piscar de olhos. E não queria estragar as coisas com ela. Não definitivamente. Pensara que ir embora seria uma atitude bem mais justa do que traí-la ou magoá-la de uma forma mais intensa. Claro que não esperava que ela fosse lhe receber de braços abertos, com direito a beijos e promessas de amor eterno. Mas não imaginara nem por um segundo que a encontraria envolvida em outro relacionamento.

            Relacionamento esse, é claro, que poderia ter sido inventado, então, precisaria ficar de olho. Se fosse real, no entanto, Tate poderia tê-la perdido para sempre. Até porque só um babaca muito miserável deixaria Zhoe escapar. Provavelmente, se o tal namorado existisse mesmo, ele lutaria por ela.

            Além de ter falhado com Zhoe e ter que enfrentar a própria burrice para tentar reconquistá-la, ainda tinha um grave problema pela frente: seu pai. Colin também deveria estar magoado, mas sabia que o garoto não demoraria a perdoá-lo.

            Ainda sob a tempestade, Tate estacionou o carro em frente à casa de sua família e saltou para abrir o portão. Colocou a chave na fechadura e tentou girá-la, mas nada aconteceu. A chave nem sequer se movimentou.

            Não tentou de novo, é claro. A explicação era óbvia. Seu velho tinha trocado a fechadura.

            Deu uma boa olhada na casa e percebeu que todas as luzes estavam apagadas. Tudo bem que já estava bem tarde, mas imaginava que Colin estava com o avô, pois com a gritaria de Zhoe  ele teria acordado, se estivesse na pensão. E Tate sabia que o filho jamais dormia sem uma luz acesa.

            Havia apenas uma explicação: iam passar a noite nos fundos da loja.

            — Merda! — Tate exclamou com raiva, socando levemente o capô do carro. Em seguida entrou no veículo novamente, seguindo na direção da loja.

            Estacionou nos fundos e viu duas luzes acesas. Um mais fraca, como de um abajur, com certeza do quarto de Colin, e uma na sala, mais forte. Com certeza seu pai ainda não tinha conseguido dormir.

            Bateu à porta e sentiu certa demora. Seu pai estava velho e normalmente tinha dificuldade para se levantar, mas já estava esperando mais do que o normal. Sendo assim, tentou a chave também. E mais uma vez não obteve sucesso.

            — Você não vai conseguir abrir a porta, Tate. Troquei as fechaduras. — A voz de Gilbert foi ouvida. Ele estava exatamente atrás da porta, mas ainda não a tinha aberto.

            — Por que fez isso, pai? — Era uma pergunta idiota, mas Tate precisava ouvir a resposta.

            — Porque eu sabia que acabaria voltando quando percebesse a burrada que fez.

            Mais uma vez Tate sentiu o soco no estômago.

            — Pai, me deixa entrar. Quero conversar.

            Tate ouviu o pai praguejar do outro lado da porta, o que era mais do que uma prova de que ele estava realmente puto da vida, afinal, Gilbert nunca falava palavrões, principalmente quando Colin estava com ele.

            Apesar de parecer muito irritado, ele abriu a porta a contragosto e simplesmente saiu de perto, dando as costas a Tate, sem vontade nenhuma de encará-lo.

            — Pai... — Tate chamou, fechando a porta atrás de si. Só não esperava que Gilbert fosse se virar de forma tão súbita e olhar para o filho com o cenho franzido e com uma expressão irada.

            — Como você ousa? Como tem coragem de aparecer aqui depois de ter desaparecido que nem um covarde? Por acaso foi essa a educação que te dei? Será que te ensinei a ser um babaca? — Gilbert cuspiu as palavras em um tom de voz alto, quase aos berros.

            — Estou arrependido.

            — E você acha que isso é o bastante? Acha que chegar aqui com essa expressão de cachorro sem dono vai compensar o que você fez? Abandonou Zhoe, abandonou seu filho! Isso lá é atitude de homem?

             — Eu fui falar com ela...

            — E teve coragem? Como pode ser tão cara de pau?

            — Ela me odeia — falou chorando. — Me ajude, pai! Me ajude a fazer com que acredite em mim.

            — Te ajudar? Você endoidou? Ainda acha que tem alguma chance com ela? — Gilbert ainda gritava.

            — Ela falou que está com outro homem.

            Gilbert ficou em silêncio, pois sabia que era mentira, que Zhoe ainda estava sozinha e que sofria. Mas a garota tinha o direito de dar uma lição naquele que a tinha magoado, então, não seria ele a desmenti-la.

            — Sim, é verdade — respondeu, tentando parecer convincente. Deus sabia que ele odiava mentir, mas a situação merecia. Ao ouvir a resposta, Tate abriu a boca para falar, mas Gilbert o impediu. — E nem ouse me fazer qualquer pergunta. Não vou te contar nada!

            Tate ia protestar, mas novamente não conseguiu falar nada, pois foi impedido por uma vozinha de criança e o barulho de pezinhos correndo pelo piso de madeira da casa.

            — Papai!

            Pelo menos alguma coisa boa naquela noite infernal. Finalmente alguém lhe recebia de braços abertos. Não que ele não compreendesse a raiva daquelas pessoas, mas um terrível sentimento de solidão começou a se instalar em seu peito.

            Mas Colin se jogou em seus braços, salvando-lhe da mais profunda melancolia.

            — E aí, amigão? Que saudade! — Tate falou quase com um suspiro.

            — Eu também, papai! Por que você ficou tanto tempo fora?

            De esguelha, Tate olhou para o pai e viu que este erguia as sobrancelhas, como se demonstrasse que ele teria que travar uma imensa batalha para se explicar para aquela criança, que de boba não tinha nada. E Gilbert parecia estar adorando aquela situação.

            — Eu precisei resolver uns problemas. — Aquela era uma desculpa que não era exatamente uma mentira, mas também não lhe comprometia.

            — Agora você vai ficar para sempre? — o menino insistiu.

            — Vou, filho. Nunca mais vou deixar você ou sua mãe.

            Parecendo satisfeito, Colin sorriu e se jogou outra vez nos braços do pai.

            — Colin, vá dormir! — Gilbert ordenou. — Já está muito tade e você tem aula amanhã.

            — Ah, vô! Meu pai voltou e...

            — Seu pai vai estar aqui amanhã também. Obedeça e vá se deitar.

            — Mas eu não quero! — Com uma expressão irritada, Colin cruzou os braços, desobediente.

            — Filho, escute seu avô. Não vou mais a lugar nenhum. Prometo te buscar na escola amanhã e passarmos a tarde juntos.

            Isso pareceu deixá-lo um pouco mais calmo, mas, ainda assim, o menino saiu da sala muito a contragosto, marchando em direção ao quarto e resmungando.

            — O que aconteceu com ele? Colin nunca foi de responder nem desobedecer — Tate perguntou.

            — O que você acha? Você tem culpa nisso, Tate. Ele ficou um pouco rebelde desde que você foi embora. — Ao ouvir isso, Tate colocou as mãos nas têmporas, sentindo-se culpado. Antes, porém, de falar qualquer coisa, sentiu algo de metal sendo jogado sobre seu corpo e escorregando até o chão, fazendo barulho de tilintar. Ao se abaixar para pegar, percebeu que se tratava de uma chave.

            — O que é isso? — indagou ao pai.

            — É a nova chave da casa. Pode passar esta noite lá. Mas a partir de amanhã, se quiser um teto para dormir, vai ter que acordar cedo e trabalhar na loja.

            Tate nem retrucou. Sabia que precisava recomeçar, reconquistar a confiança das pessoas, ser um novo homem. E estava pronto para isso.

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