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Promessa Quebrada

Estou atordoada. O meu corpo está anestesiado. Nunca senti algo tão bom.

Há um peso sobre o meu abdômen.

— Ah, finalmente voltou à realidade?

Aquela maldita voz doce ecoa na minha mente. Ela está contente, sei disso.

Eu te odeio.

Precisei receber ajuda para levantar. Sinto que o meu corpo está mole. Aquela maldita está me ajudando. Apoia-me no seu ombro, e guia-me para fora do beco. Ainda é noite.

Está frio.

Eu estou quente.

Há uma carroça negra no fim do beco, do outro lado da rua.

— Como se sente? — ela pergunta.

Não respondo.

Eu te odeio.

A mulher abre a porta. Cumprimenta o carroceiro, ajuda-me a entrar e sentar. E senta ao meu lado.

Olho para baixo. Vejo um buraco no meu traje. Há sangue seco ao redor do rasgo, estendendo-se até a minha coxa.

Ainda é noite...

A carroça está andando.

— Ah, vocês não chegaram a descobrir o meu nome, não é?

Eu te odeio.

— Sou Elizabeth — prossegue ela.

O meu corpo não me obedece. Não consigo falar.

Sei que estamos cruzando uma rua do centro da cidade, detrás da joalheria.

Aquela joalheria…

Eu estava ali com Joseph. Ainda é noite; não deve ter passado tanto tempo.

Discutíamos.

— Você foi longe demais, Verônica.

Ele tremia.

— Eu avisei! Eu disse para não caçá-la sozinha! Estávamos naquele rastro há um mês, íamos encontrá-la juntos e… e você estragou tudo!

Joseph gritava. Não sei se estava triste ou zangado. Talvez ambos.

Eu estava atordoada, como estou agora.

Não mantive a nossa promessa, Joseph. Não consegui. Ela me mordeu. Não alcancei o suicídio.

Desculpe…

Espero ter dito isso a ele.

— Em breve estará conseguindo se mover — diz Elizabeth.

Desejo matá-la. Preciso matá-la. É meu trabalho matá-la.

Matar.

Matar.

Matar.

Mas o meu corpo não obedece.

— Você está assim por causa da Sede de Sangue. Os efeitos colaterais não são dos mais agradáveis.

Sangue. Eu bebi sangue?

Não sei. Sei que estava com Joseph. Sangue… Elizabeth deu-me sangue?

A carroça para. Elizabeth abre a porta e, com cautela, puxa-me para fora.

Ainda não consigo andar.

Elizabeth me pega no colo. E eu não posso fazer nada para impedir. Ela parece contente. Ah... como eu gostaria de poder desmanchar esse maldito sorriso com as minhas próprias mãos.

Entramos num hotel. Elizabeth comigo no colo. Estou tão suja de sangue...

O recepcionista nos cumprimenta.

— Noite difícil?

— É. Carne nova — ri Elizabeth, como se estivesse uma apresentando uma amiga.

— Oh, você é nova? Bem-vinda ao nosso mundo.

Nosso? Ele também é um… um deles.

Uma aberração.

Escória.

Sou carregada até a escadaria. É velha e range a cada degrau subido. A cada degrau subido penso em matar Elizabeth.

Um.

O seu peito está tão próximo que eu poderia estraçalhá-lo.

Dois.

Três.

Desejo cravar os meus dentes na jugular dela, até ouvi-la engasgar com o próprio sangue.

Mas o meu corpo não obedece.

Preciso matá-la. Mesmo que eu morra, preciso matá-la.

Ah; eu perdi a conta.

Chegamos no quarto.

Elizabeth acende um candelabro ao lado da cama. A luz é fraca. Parece uma vela.

Ela me senta na cama, tira a minha blusa e a joga no chão.

Por que está me despindo?

Ah… a minha blusa está banhada em sangue. O sangue não é meu. É? Eu não sangrei tanto assim.

Não sangrei tanto assim…

Lembro-me da joalheria. Mergulhei pela janela. Havia cacos de vidro espalhados no chão como flocos de neve. Eu estava sangrando.

Um, dois, três, quatro. Joseph disparou quatro vezes. Levei três tiros. O quarto penetrou o relógio.

Há lábios congelados no meu pescoço.

É Elizabeth.

Por que está me beijando?

— Eu te dei o meu sangue — ri Elizabeth, como se fosse uma garota travessa. — Sabe o que isso significa entre nós, Vampiros?

Vampiros…

Lembro-me que estava com sede.

Ainda estou.

Devo ter saído de dentro da joalheria após ser atingida pelas balas. Não eram de prata.

Acho que ele gritou comigo. Mas eu estava com tanta sede…

Joseph brandia o machado de prata como um louco. Lembro-me que ele chorava. O chapéu pontudo lhe cobria os olhos.

Eu me esquivava como se estivesse a dançar no mais belo baile, acompanhada pelos melhores dançarinos e dançarinas. Via aquele gume afiado aproximar-se tão lentamente quanto uma lesma foge de você sob o seu olhar curioso.

Apenas um passo para trás. Depois outro. Um passo de cada vez. Eu respirava calmamente e ele ofegava, chorando.

Joseph realmente estava chorando.

— Por que está chorando, Joseph?

Ele deu um passo em falso. Abri a sua garganta. Não foi minha culpa. As minhas garras são tão afiadas quanto imaginei. Mas ele não parou. É tão forte quanto sequer sonhei. Uma montanha.

Está sangrando.

Joseph sabe que vai morrer.

Eu sei que vou matá-lo.

Monstro.

Outro passo em falso.

Rasgo o seu peito.

Monstro.

Eu tento parar, mas isso já aconteceu.

Por que nós lutamos?

Acho que ele gritou. Foi de dor?

Lembro-me que hesitei. E quase perdi a cabeça.

— Por que quer me machucar, Joseph?

Passei em paralelo a ele tão rápido quanto uma bala é disparada do revólver. Acho que mutilei o seu braço direito.

Escutei-o arfar, sufocando. Deu dois passos trêmulos à frente. Caiu de joelhos. Depois o machado despencou naquela rua escura. E Joseph desabou. A capa negra dançou ao ar de uma última brisa ululante.

Agora, tenho o seio de Elizabeth na minha mão direita.

Ontem, tinha a carne de Joseph debaixo das minhas unhas.

Já é mais de meia-noite.

Posso mover-me.

Estou gemendo de prazer.

Ontem estava gemendo de dor.

Matei o meu melhor amigo.

Monstro.

Levou um bom tempo para eu chupar e deleitar-me e embebedar-me no seu sangue quente. Joseph era um cara grande.

— Você ainda me odeia?

Eu suspiro, confusa. Olho o pescoço marcado de Elizabeth. Eu o marquei.

Ah, estou no seu quarto à luz do candelabro.

É noite.

Não é?

— Você me odeia, não odeia? — a sua voz é tão doce quanto o sangue de Joseph era.

A sua mão pálida toma o meu rosto. Elizabeth me faz olhar nos seus olhos. São verdes. Os meus são castanhos.

Você me odeia.

— Eu te odeio...

Beijamo-nos novamente. O meu corpo está tão quente quanto na noite em que matei Joseph e, ao mesmo tempo, frio como se eu estivesse morta.

Mas… eu estou morta; não estou?…

Eu deveria estar morta.

Já é mais de meia-noite.

Monstro.

Lembro-me agora do que disse Elizabeth. É um ato obsceno. Um Vampiro deixar que um semelhante chupe o seu sangue… é um ato obsceno.

Ah; eu sei o que aconteceu.

Cambaleei pelas ruas após matar Joseph. Cruzei um beco escuro, tão escuro quanto a rua. Vi um guarda com um candelabro e revólver na mão. Perguntou-me se eu estava bem.

Estava com sede.

O guarda disse que ouviu tiros e vidros sendo quebrados.

Tanta sede…

Acho que o matei. Não sei. Minha visão apagou.

O meu corpo estava anestesiado. Senti um sabor delicioso, viciante. Nunca havia provado algo tão bom.

Havia um peso sobre o meu abdômen.

Nossas línguas se massageiam incessantemente. Os seus lábios são gélidos e macios.

Elizabeth é gelada. Gelada como um cadáver. Sei disso porque Joseph ficou tão gelado quanto Elizabeth.

Matei Joseph.

Monstro.

Elizabeth é um maldito monstro.

E eu também.

— Está sentindo isso, querida? — pergunta Elizabeth, ofegante.

Sim; estou.

O que significa quando um Vampiro chupa o sangue do seu semelhante?

Elizabeth me diz para chupá-la. Tenho presas afiadas. Enterro-as no seu abdômen. Ela geme alto. Eu também.

Estou chupando o seu sangue. A sensação é inebriante. O meu corpo está tão relaxado...

Nunca senti algo tão bom. O seu sangue não é doce como o de Joseph era. É metálico e gelado. Faz a minha língua se arrepiar. E deixa o meu corpo dormente.

Desabo sobre Elizabeth, pois toda aquela excitação faz com que eu me renda.

Rendo-me à Elizabeth.

O que estou fazendo?

Rendo-me ao desejo.

Tenho o melhor orgasmo da minha vida. Elizabeth também. Foi o que ela disse.

Sexo entre Vampiros é intenso. Nós chupamos o sangue um do outro enquanto transamos.

Nós.

Eu sou um Vampiro.

Estou ofegante. Sinto-me anestesiada, como se algo dentro de mim houvesse se fragmentado. Elizabeth acaricia o meu cabelo curto, e deixa que eu deite o rosto no seu peito.

O que estou fazendo?

— O que quer fazer? — pergunta Elizabeth.

Vou matá-la.

— O que eu quero fazer?…

Quero matá-la.

— Estou viva há tempo demais. Vi muita coisa. Fiz muita coisa — diz Elizabeth.

Preciso matá-la.

— Eu estava frustrada. Pensei em deixar algum Caçador me matar. Três séculos é tempo demais para se viver. Mas você me fez sentir bem. Muito bem.

Eu…

— Eu te amo — diz Elizabeth.

Eu não sinto nada.

— Eu te odeio, Elizabeth.

— É por isso que te amo.

Por que não a matei?

— Foi eu quem te transformou. Digamos que você me pertença. É minha serva até que a sua mente se acostume com o que se tornou.

— Eu quero matar você.

— Eu sei. Por isso tem o meu amor. Não sei quando sairá do meu controle e me atacará. A incerteza dá cor à vida.

Eu te pertenço?

— Eu vou matar você… Elizabeth…

Elizabeth ri, como quando uma filhote zangada morde a sua mão.

— No tempo certo faremos o que queremos. Até lá, você é minha.

O meu corpo me obedece.

Mas por que não consigo matá-la?

Onde está Joseph?

— Elizabeth... — eu suspiro.

— Sim?

Estou com sede…

Já é mais de meia-noite.

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