Enterro o machado no corpo inerte uma última vez. Jorra sangue quente em meu rosto.
A minha respiração pesa. Não consigo enxergar.
Estou estático. Preciso ter certeza de que está morto.
Ele não se move. E eu ergo o braço e o golpeio de novo. O fio do machado decepa a carne e atinge o piso. É de madeira.
Posso ouvir o sangue deixando o seu corpo, entrando pelas fissuras do chão e gotejando no porão.
Está morto.
Agora tenho certeza.
Toco o meu rosto, esperando encontrar ferimentos próximos aos olhos. Estão cobertos por uma bandagem. Rasgo-a.
Está escuro. É noite.
Ainda é noite...
Imaginei ter decepado a cabeça dele. Agora, vejo que desmembrei o seu torso em diagonal.
O traje negro de Caçador está ensopado. As vísceras aglomeradas repousam ao redor do machado fincado no chão.
O cheiro da morte me é indiferente.
Mas não estou calmo.
Não estou calmo porque desmembrei Mark.
Não estou calmo porque, no balcão, outro Caçador descansa. A cabeça está aberta.
Não estou calmo porque sou um Caçador.
Eu não estou calmo.
Há outro morto nos fundos.
No quarto, encontro uma cadeira tombada, envolvida por cordas rasgadas, e, sobre estas, está o meu traje cinzento, de mangas alargadas e sujas, com a borda da capa picotada e as costas esburacadas.
E no meu velho e sujo traje eu encontro conforto.
Ele não pode me machucar.
Visto-o. Volto à cozinha. Do cadáver mutilado eu tomo o machado.
Fico de frente à porta. Não preciso tocá-la para saber que está trancada.
Golpeio a região mais próxima da maçaneta até que voem lascas e a sonoridade do partir da madeira murmure e se misture com o ranger e o gemer do ferro. Depois, chuto-a, e ouço o estalo abafado.
A saída cede.
Ferida, a porta se abre num ranger solitário. Enfim a luz de uma noite cinza ceifa a escuridão.
Saio da cabana às pressas. Os meus passos são imprecisos e pesados, como se algo houvesse prejudicado a minha coordenação motora. As botas gravam profundas marcas na terra infértil e retorcida.
Olho de um lado para o outro, e noto uma fina neblina esgueirar-se e tomar força. Não vejo nada além de lápides imersas em vinhas e árvores mortas e cabisbaixas.
O ar é frio e úmido.
Eu continuo andando.
O vento sopra forte.
Sempre andando.
E massas da neblina rodopiam e se dissipam, para depois se encontrarem outra vez.
E, no céu, nuvens cinzas, que brilham pelo resguardo do luar, correm em desordem.
E passo por túmulos atrás de túmulos, que exalam o pútrido odor da decomposição.
De repente paro.
Ouvi algo próximo.
É o engatilhar de uma arma.
Busco abrigo numa árvore caindo aos pedaços.
Eles sussurram. Estou certo disto. Ocultos na neblina, aguardam o expor do luar.
Preciso concluir o trabalho.
Eu corro com o corpo curvado. Talvez assim não me acertem.
As minhas passadas na terra, os seus sussurros ansiosos e a minha respiração ofegante parecem ecoar ao meu redor.
Leva tempo para que me ouçam chegar.
Encontro-os próximos de lápides que circundam uma vasta área.
Permito que os mais primitivos dos meus instintos guiem-me. Pois apenas um monstro é capaz de matar outro monstro.
Abro mão da minha humanidade porque, enquanto ocultos em corpos humanos, farão-me súplicas para que os poupe. Dirão-me que sou eu o monstro, pois desejam enganar-me.
Eles dizem que enlouqueci, e empunham estacas de prata.
Eu continuo brandindo o meu machado. E, aos berros, digo que é inútil tentar manipular-me
Estão todos infectados.
Os pobres amaldiçoados tentam efetuar disparos, mas uma fissura nas nuvens os impede. E a lua revela-se em sua grande timidez.
A transformação é involuntária e paralisante.
Eles gritam de dor.
É a minha chance.
Dizem que nada além da prata mata um Lobisomem.
Eu digo que não há Lobisomem algum que sobreviva sem a cabeça.
E, com o meu machado, trago paz aos corpos profanados.
O fio acerta a carne, que se abre e se mancha em sangue.
É o ciclo vicioso.
Ser um Caçador é lançar-se à frenesi eterna.
Desmembro os monstros que um dia foram os meus companheiros porque sou um Caçador.
É o meu trabalho.
Eles não irão levantar. Arranquei os seus braços e cabeças.
Não sei por quanto tempo fiz isto.
O punho do machado está quebrado.
Matei quatro monstros.
Ergo-me, ofegante. Estou perdido em sangue.
E, na presença da lua, grito em um acesso de fúria.
A caçada ainda não acabou.
Reviro os corpos frescos. Estão magros. Estamos aqui há muito tempo.
Deles, consigo um revólver, quatro balas de prata e uma estaca. É tudo o que preciso.
O maldito Lobisomem se esconde.
Ainda resta um.
Eu caminho em alerta. O revólver na mão esquerda. A estaca na direita, erguida como uma lança.
E grito.
Apareça!
Olho para todos os lados.
Onde você está, desgraçado?!
E grito.
Você não é nada sem a sua maldita lua!
O cemitério não parece ter fim.
Apareça...!
Deparo-me com os corpos dos que matei.
O céu continua o mesmo. O mesmo maldito mar cinzento.
A neblina acompanha-me o tempo todo. Parece seguir-me. Às vezes sussurra algo.
Não há silêncio à noite. Os passos na terra velha são altos, a respiração pesada penetra os tímpanos.
O tecido do traje perde a mobilidade porque nele o sangue se agarra.
Eu continuo andando.
E encontro os corpos de novo.
É como uma cópia.
Preciso encontrá-lo.
Estou dentro da cópia.
Ouço passos.
Estou cansado.
Não posso parar.
Preciso dormir.
Reencontro os corpos.
Uma maldita cópia.
Eu paro. E os passos também.
Ergo o braço. Efetuo um disparo.
A bala não dissipa a neblina. Perde-se dentro dela.
Mais passos.
Eu continuo parado.
Eles vêm de todos os lados.
Se estão próximos ou distantes, não sei dizer. Se estou cercado, estou morto.
Permito-me cair de joelhos.
Largo a estaca.
Possuo três balas.
Observo o revólver. É velho e enferrujado. Está manchado.
Pressiono o cano contra o meu crânio.
Os passos prosseguem. Sinto que estão colados em mim. Mas não os vejo.
Ponho o dedo no gatilho.
Um.
Dois.
Três.
O disparo é ensurdecedor.
Mas não foi o meu.
Estou atordoado. A visão turva concede-me um escasso vislumbre do buraco no meu polegar.
O osso está exposto e o sangue flui como num riacho.
Dói.
Os passos param. Armas engatilham.
Eu digo:
— Sem a lua, nada lhes restam além de armas. Desgraçados...
Alguém responde:
— Esperem.
É uma mulher.
Eles não atiram.
Eu rio.
— Uma Alfa?
Cavalos suspiram com força. Alguém desce de um deles.
Botas na terra.
Como um fantasma, ela surge da neblina.
Como um de nós, veste o traje negro de Caçador. O chapéu pontudo lhe cobre os olhos.
A capa leve dança ao sopro de uma brisa.
— Infiltraram-se? — eu suponho.
Ela suspira.
A mão oculta por uma luva traça um caminho fúnebre ao chapéu e o tira.
Arregalo os olhos.
Pisco duas vezes.
Umedeço os lábios.
Digo:
— Pegaram você?
A brisa convida os seus cabelos longos para uma dança.
— Não.
Mal posso acreditar em quem estou vendo.
— Quem é você? — a mulher pergunta.
Eu rio.
— Sou um Caçador.
— Não sabe o seu nome?
— É claro que sei! Eu sou um Caçador. O meu nome... O meu nome... O meu… nome é...
Qual é o meu nome?
— Do que se lembra?
Eu a encaro. Poderia tentar matá-la. Mas não o farei. Estou conformado com o meu destino.
— Fomos contratados. Não conseguimos matar o Lobisomem. Eles foram infectados. Então eu os matei.
A minha expressão torna-se severa quando noto o seu olhar de pena.
— Todos, menos você?
Eu aceno.
— Ande — digo. — Mate-me. Já infectaram você. Lizandra, a aprendiz do Primeiro Caçador. Por que perder tempo em joguinhos com um Caçador qualquer?
Lizandra desvia o olhar. E do coldre tira o revólver.
Parece triste.
— Ainda lhe restam memórias. Sua força de vontade é impressionante.
— Chega desta besteira — eu rosno.
— Perdoe-me por não saber seu nome.
Travo o maxilar, irritado.
— Lobisomens desgraçados...!
— Você o matou.
A arma está apontada para a minha cabeça.
— Você matou o Lobisomem. Salvou um de seus companheiros, e, no lugar dele, foi mordido.
— Acha que sou estúpido? Você está mentindo. Está mentindo…
— A caçada acabou. Você concluiu o trabalho, mas não conseguiram te parar.
— Mentira!
Lágrimas quentes de ressentimento arrastam-se pelo meu rosto manchado.
— O Caçador que você salvou pediu reforços.
Eu rio, como quando contam uma piada sem graça.
— Você não é um Caçador de Lobisomens, então não deve saber. Esta neblina entorpece os sentidos e impede a transformação.
— É mentira, não é?...
— Espero que, sabendo disto, possa morrer em paz. Os seus esforços para não sucumbir à maldição serão lembrados por todos nós.
Engulo o choro. E sorrio.
— Está enganada sobre algo, Lizandra...
O seu dedo está no gatilho.
— ... A caçada não termina até que a presa seja abatida.
— A caçada termina agora.
O revólver dispara.
— Está tudo perdido, Barzai... é o nosso fim…— Ainda não, caro Ruvirik — disse o velho, tomando em mãos uma espada.Retirou-a da bainha e, num pulsar de vida, a lâmina acendeu-se em brasas cintilantes, quase fosforescentes.— É na profunda escuridão que a mais fraca luz se torna poderosa, a iminência do fim pode ser a nossa salvação. Confio a ti minha última fagulha de esperança, Ruvirik — foi o que ele disse enquanto sua pele empalidecia.Ruvirik aceitou o fardo de carregar a anêmica esperança do que restava de um Reino que ruiu.— Realmente acreditas que posso fazer algo contra os Inomináveis?… — ele murmurou consigo mesmo.De repente, aquela obscura catedral estremeceu. Os cadáveres dos antigos soldados caíram aos montes sobre si mesmos. As trevas, gananciosas, engoliram por completo o pálido luar.O ar consigo trouxe o mais pútri
Estou atordoada. O meu corpo está anestesiado. Nunca senti algo tão bom.Há um peso sobre o meu abdômen.— Ah, finalmente voltou à realidade?Aquela maldita voz doce ecoa na minha mente. Ela está contente, sei disso.Eu te odeio.Precisei receber ajuda para levantar. Sinto que o meu corpo está mole. Aquela maldita está me ajudando. Apoia-me no seu ombro, e guia-me para fora do beco. Ainda é noite.Está frio.Eu estou quente.Há uma carroça negra no fim do beco, do outro lado da rua.— Como se sente? — ela pergunta.Não respondo.Eu te odeio.A mulher abre a porta. Cumprimenta o carroceiro, ajuda-me a entrar e sentar. E senta ao meu lado.Olho para baixo. Vejo um buraco no meu traje. Há sangue seco ao redor do rasgo, estendendo-se até a minha coxa.
Gotejava sangue quente sobre o piso imundo de um sagrado templo dourado. A Amaldiçoada Lâmina de Braltar repousava enterrada num decrépito altar negro cujas fissuras emanavam o Caos Nuclear.A Cavaleira Yeniffer caiu de joelhos, com um buraco no peito que despejou o rio vermelho sobre a armadura de prata. Estava entorpecida pelos fétidos e repulsivos fluídos e odores exalados pelos Nefastos, responsáveis pelos estridentes gritos de puro terror proferidos pelos desesperados habitantes da condenada Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas.Não há palavras, textos e imagens ou pinturas capazes de contarem sobre os Horrores que despencaram sobre Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, pois não são os Nefastos um antigo mal desperto na Terra em Vigília ou Onírica, ou um mal Ancestral vindo dos confins do Cosmo que vaga por incontáveis Galáxias como os Antigos Deuses, tampouco os seus sucessores. São algo além da compreensão de um deus criador, pois
IA boca de fogo produz uma detonação; o projétil é disparado através da chuva pesada e enterra-se no meu ombro. O impacto fulminante espalha-se através do meu corpo em ondas, lança-me ao chão e me desperta.Eu grito de dor.Cubro o ferimento com a mão direita, e sinto o sangue se esgueirando entre os meus dedos. É tão gelado quanto a tempestade que desaba sobre os prédios sombrios.Um raio fende o céu e revela-me a identidade do vulto outrora negro, de chapéu pontudo e revólver na mão.É uma Caçadora.— Não atire! — eu imploro.Ergo a mão para ela. E, entre o meus soluços compulsivos, digo:— Sou uma de vocês! Uma Caçadora! Eu…O revólver dispara.A bala perfura a minha mão, atinge o solo e ricocheteia para a escuridão.A dor é insuportável e me faz soluçar ainda mais. Viro-me para
I: Conflito Híbrido — Tem certeza de que sentiu a presença dela nessa parte da floresta?… — quis saber Megora, ansiosa.— Não está sentindo o forte cheiro de cachorro molhado? — zombou Azazel. — Mas, sim, Lívia está por aqui.— Você é tão insensível…Azazel deu de ombros. Manobrou o carro com cautela, já que a chuva continuava a ganhar força. Mas não seguiu muitos metros adiante, visto que provavelmente ficariam atoladas na lama.— Vou te esperar aqui — declarou Azazel.— É sério que não vai me ajudar a encontrá-la?…— Está chovendo.— E você é de açúcar? — retrucou Megora, sarcástica.Azazel revirou os olhos.— Vai procurá-la ou não?Megora ignorou-a. Esticou-se e pegou um longo casaco preto. Depois abriu a porta e saiu, irritada. Mal andou cem metros quando a chu