Capítulo 9

– Sabe o que isso significa, meu amor? – ela pensava primeiro nas consequências, pelo menos agora ela era assim.

– Lá na igreja?

– Sim, nós dois vamos ser excluídos.

– É, eu sei, infelizmente sim. – agora ela conseguiu me deixar triste, desde que me batizei, isso quando ainda morava na casa de meus amigos, eu nunca tinha tido qualquer problema com a igreja, mas agora era a primeira vez, e não pensei em mim, pensei nela, eu ia expô-la a vergonha e ao ridículo de não ter sido firme a nossos princípios e agora estar grávida e logo de mim. – acha que devemos nos casar?

– Com dois meses de namoro? Claro que não, quer dizer, não que eu não queira, eu quero sim, mas não vai adiantar muita coisa, eu já estou de seis semanas, sabe o que é isso? Cerca de um mês e meio, daqui um mês mais ou menos minha barriga começa a crescer. Aí com um mês de casada e uma barriga de três, acha que todo mundo vai ser cego?

– É mesmo, acontece que agora você vai passar a maior vergonha da sua vida por c...

– Ei, para, tá? Nem complete por que eu já sei o que você vai dizer.

– Mas amor, eu...

– Leonardo! CHEGA; nem vem. Ser mãe de um filho seu vai ser o maior orgulho da minha vida.

– Mas Danny, …

– Eu disse chega – isso ela falou bem baixinho, me olhando séria.

Agora era “minha” vez de ter uma família, aquela mesma família linda que eu vi no carro na noite que agente brigou, agora era minha vez.

– Tanto tempo sozinho, e agora vamos ser três.

– Sua mãe adotiva ia gostar? – ela nunca tinha perguntado do meu passado, e eu não queria contar a menos que ela perguntasse, mas parece que ela sabia da dor que eu sentia cada vez que me lembrava de tudo e não tinha coragem de tocar nos assunto, principalmente num momento tão feliz como aquele, mas eu queria muito falar, eu nunca tinha compartilhado isso com ninguém, e agora ela seria mãe do meu filho, seria em breve minha esposa, eu queria compartilhar isso com ela.

– Minha mãe sim, os demais eu não sei, talvez nem se importassem, ou talvez até não gostassem, sei lá.

– Você sente saudades dela?

– Sinceramente? – ela apenas me olhou, esperando eu completar – acho que não.

– Mas você não a amava?

– Sim, e muito.

– Então eu não entendo.

– Não estou feliz com a morte dela, não mesmo, mas foi melhor assim, meu pai adotivo me maltratava muito, era louco pra me expulsar de casa, mas era ela que me amava tanto que não deixava, depois que ela se foi, ele não pensou duas vezes.

– E você se lembra dos seus pais de verdade?

– Quer dizer biológicos?

– Sim.

– Acho que sim, eu tenho de vez em quando assim uma espécie de flash, tipo uma lembrança, sabe? Eu acho que deve ser deles.

– Se você não quiser falar do assunto, tudo bem, eu compreendo que isso deve doer muito.

– É mas acho que essa fase eu já superei, vem cá – aí sentei no sofá com as pernas esticadas, e coloquei ela no meio, abracei ela por trás, como a gente sempre fazia quando queria passar tempo juntos, encostei a cabeça dela em mim, dei uns minutos de silêncio.

– Na verdade eu já queria te perguntar isso faz tempo, mas eu tenho muito medo de te fazer sofrer, sei que minha família não é das melhores mas, apesar dos pesares, eu os amo, e sei que viver sozinho sem ninguém no mundo deve ser o pior castigo.

– É verdade, viver sozinho é uma barra, eu sei por experiência própria. A lembrança mais antiga que tenho dos meus pais, quer dizer, de quem eu acho que são meus pais, eu devia ter uns dois anos de idade, me lembro de um homem magro e alto, usando óculos, sentado atrás de um piano, lembro de uma senhora de cabelos claros regendo um coral, acho que eu devo ter me separado deles por qualquer motivo, me afastei demais, fui parar no asfalto, minha mãe adotiva me contou depois que eles pararam o carro quase em cima de mim, me viram ali, sabiam que era um garotinho da tenda, era uma imensa tenda onde estavam acontecendo uma espécie de conferências batistas, só sabiam meu nome por que eu usava um crachá feito de cartolina amarela em forma de coração com meu nome inteiro e data de nascimento escrito, meu pai queria me devolver na mesma hora, mas parece que eles só tinham como filhos, duas meninas, queriam muito ter um menino, mas minha mãe havia tido um problema no útero e não podia mais engravidar então de uma forma ou de outra ela conseguiu convencer meu pai a me levar com eles.

– Eles te roubaram?

– É acho que sim, minha mãe sempre me pediu perdão por isso, principalmente depois que meu pai me batia, ou brigava comigo, ela disse que se apaixonou por aquele garotinho lourinho de olhos claros. Conseguiram tirar meus documentos, usando meu próprio nome e data de nascimento, só não me pergunte por que o cartório não se importou com o sobrenome diferente, acho que meu pai deve ter pagado algum dinheiro pro tabelião. Fiquei morando com eles e as duas meninas, a Cláudia de seis e a Ana de quatro, mas uns três anos depois a Cláudia foi morar com a avó no interior ficamos só nós quatro, meus pais, eu e a Ana. E foi assim por uns dez anos, quando a Cláudia voltou, a avó dela tinha morrido e a mãe por causa disso ficou doente, o choque de perder a mãe dela acabou deixando ela com a saúde bem abalada, ela teve um derrame e teve de viver os dois anos restantes de sua vida numa cama, com uma enfermeira cuidando dela. Foi nessa ocasião que ela me deu o violino, que já estava guardado a muito tempo, eu nunca vi ela tocar, desde que cheguei, na verdade nem sabia que ele existia, mas foi ela quem me ensinou a tocar, mesmo deitada na cama. O resto da família é lógico, se mordia de inveja por causa desse carinho e dedicação. Mas antes da Cláudia voltar, eu tinha um amigo muito legal, um japonesinho que morava a umas três casas da minha, o pai dele era de Tóquio, ele havia nascido no Brasil, a gente se conheceu na escola quando eu devia ter uns sete anos e ele uns dez anos eu acho, eu e o Hiroshy havíamos nos conhecido numa feira de ciências da escola, e nos demos bem logo na primeira vez  e era pra casa dele que eu corria quando a barra estava preta lá em casa, minha mãe sabia que lá eu tinha um refúgio e que os pais dele me tratavam bem e nem se importava,  a gente perdia muito tempo brincando com uns restos de computador velho que o pai dele trazia do Japão eu só me sentia só quando eles viajavam de férias, aí eu ficava sozinho pois conforme fui ficando maior  minha família adotiva foi vendo que gostava menos de mim a cada dia, durante os três anos em que a Cláudia ficou com a gente eu não me lembro de muita coisa dela não, mas a Ana cresceu comigo, e sempre foi meio metidinha, o tipo da menininha que sempre tinha seus desejos atendidos na mesma hora, que tinha o melhor pedaço de bolo, a melhor roupa, enquanto que eu só tinha algo de bom quando minha mãe batia o pé e dizia que o menininho dela também tinha direito. Quando eu tinha dez anos ganhei um notebook branco de presente do seu Hiro, pai do Hiroshy, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, eles não tinham amizade nenhuma com meus pais, mas também não eram cegos, não precisava ser gênio pra saber que tipo de vida que eu tinha em casa. Durante uns quatro anos eu e o Hiroshy nos divertimos muito com aquele notebook, a gente ligava o meu e o dele em rede e passava a tarde as vezes jogando e tomando chocolate quente, eram os pouco momentos que eu tinha de felicidade. Ele tinha uma irmã, um ano mais nova que eu e com traços um pouco mais ocidentais do que ele por ter puxado pra mãe brasileira, a Nádia, se simpatizou comigo, não tardou pra ela inventar que gostava de mim, o problema é que ela era feia, gordinha, de óculos, desajeitada, me dava bilhetinhos de amor e coisas assim, eu sempre ignorei, mas adorava a companhia deles todos.

– E como foi que você saiu de casa?

– Depois que a mãe da minha mãe adotiva morreu, pouco antes dela ter um derrame, a Cláudia voltou a morar conosco, só que desta vez ela já não era aquela garotinha de nove anos que foi embora, era uma moça de dezesseis anos e uma morena muito bonita, só que era minha irmã, adotiva mas era, eu sabia disso, mas ela parece que não se importava muito. Passava agora o tempo todo me elogiando, me olhando, desfilando pela sala com roupas transparentes, decotes fundos, saias curtas.

– Ela começou a te assediar?

– Parece que sim, as vezes me roubava beijos no rosto, quando eu estava dormindo ou distraído era na boca mesmo, é lógico que isso era sempre longe do pai dela, não sei se por safadeza ou se por sinceridade mas parece que ela gostava mesmo de mim, chegava mesmo a brigar com o pai dela por minha causa. Eu me preocupava com aquilo, pois embora ninguém soubesse de nada, eu sabia que seria o culpado se alguém soubesse mas essa brincadeira durou um ano e meio quando um dia a gente estava sozinho em casa e ela me pediu um beijo na boca, um beijo de verdade como ela dizia.

– Assim na cara de pau?

– Na cara de pau, é claro que eu disse que não, que ela era minha irmã e tal, mas ela não estava nem aí, disse que eu sabia muito bem que era só por consideração, que não tinha nada de mais, e além do mais seria até divertido, ela já tinha nessa época dezoito anos e eu quatorze.

– E você deixou?

– Deixei mas não nesse dia, ela precisou passar uns dois meses me importunando, um dia que a gente estava sozinho em casa, eu estava distraído, deitado no sofá da sala, ela chegou de mansinho, me agarrou e me beijou.

– Caramba, e você deixou?

– Aí deixei, eu nunca tinha beijado ninguém, achei até gostoso como ela disse, e pensei que talvez se eu deixasse ela me deixava em paz.

– E ela te deixou em paz?

– Que nada, foi ai que tudo piorou mesmo, por que agora eu é que estava gostando, ela já era de maior nessa época, mas mesmo assim as vezes a gente passava era a tarde toda se beijando, se agarrando.

– E vocês chegaram a fazer alguma coisa?

– Chegamos sim, ela não sossegou enquanto não conseguiu o que queria.

– E sua mãe?

– Num certo dia o pai da Cláudia tinha levado ela ao hospital pra fazer uns exames, ela já estava bastante ruim. A gente estava completamente sozinho nesse dia. Acho que fizemos uma três vezes ou mais, a Cláudia era bem safadinha.

– E seu pai nunca soube de nada?

– Ele sempre fez questão de afirmar com todas as letras que não era meu pai, quando brigava comigo vivia repetindo isso, que ela não era minha mãe coisa nenhuma, que eu era um peso, que só estava ali por causa dela, e tal.

– Minha nossa, quantos anos você tinha?

 – Eu cresci ouvindo isso, ele nunca gostou de mim, então dá pra imaginar como ficou no dia que ele descobriu.

– E como ele descobriu?

– A gente continuou brincando de gente grande mais uns dois ou três meses, até que um dia, depois que terminamos tudo, a gente sem querer, dormiu no sofá da sala.

– E aí?

– A gente estava nu, deitado no sofá da sala, ele quase teve um troço, bateu a porta de repente e ficou do lado de fora berrando que a gente tinha trinta segundos pra se vestir, na hora o choque dele foi tão grande que ele não falou nada, só nos olhou com a maior cara de ódio do mundo e trancou-se no quarto dele mas no outro dia a Cláudia estava de olho roxo, aí eu pensei que se a queridinha dele estava de olho roxo ele ia quebrar todos os ossos do meu corpo.

– E você nunca pensou em fugir de casa?

– Pensei, mas pra onde eu ia? Eu não tinha família e só tinha quatorze anos, eu tinha que aguentá-lo até me tornar de maior, mas não sei por que ele não me falou nada, depois eu descobri por que, ele tinha até arrumado minhas coisas pra me m****r embora de casa e a Cláudia enfrentou ele, por isso ele tinha batido nela, mas ela falou algo que ele teve que aceitar, se ele me mandasse embora teria de explicar pra minha mãe por que, e se ela soubesse disso, aí ela acabava por morrer de vez, e por mais ruim que ele fosse, eu via ele chorando diversas vezes por causa da saúde dela, só que mesmo sem saber de nada, a saúde dela piorou mesmo, e ela se foi, pois mal o corpo dela esfriou na cova, a despeito dos clamores da Cláudia, ele jogou minhas coisas no meio do quintal, e me expulsou a base de chutes e pontapés, e que se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, que nunca mais colocasse meus pés ali, pois era eu quem tinha posto a filhinha dele a perder, uma moça honrada e tal, ele era um cego isso sim, ela nem era mais virgem, foi pra cama com um colega de escola com quatorze anos, na casa da vó dela, e o tonto ficou achando que era eu o culpado. Mas fosse como fosse eu estava na rua, e agora tinha que me virar pra sobreviver, fui pra casa do Hiroshy e pra piorar minha situação, naquela época ele estava de férias com o pai pro Japão, fiquei andando sem rumo na rua quando encontrei com o irmão do pai da Cláudia, contei o que tinha acontecido com todas letras sem esconder nada, é bem verdade que ele também brigou comigo, mas depois me levou pra casa dele e eu morei com ele um ano e meio.

– E a Cláudia?

– Descobriu que eu estava lá um mês depois, ela me contou que depois que eu saí chorou muito, suplicava para o pai, que eu poderia morrer pela rua, mas nunca adiantou nada, ou ela se calava ou ele expulsava ela também. Quando ela descobriu que eu estava com o tio dela, começou a vir em casa toda semana.

– E vocês voltaram a fazer?

– Voltamos sim, durante todo o tempo que eu fiquei lá, quando o tio dela descobriu, ela não me expulsou não, e nem brigou com a gente, mas disse que eu tinha que achar um local pra ficar por que desse jeito, ali não daria mais, eu acabei por ir morar na casa de uns amigos do tio da Cláudia, um casal chamado Cláudio e Nemizza, eles me adotaram se posso dizer assim, e por dois anos, eu tive o que se pode chamar de uma família, eles eram muito novos ainda, coisa de três ou quatro anos de casados, mas eu respeitei eles todo o tempo que fiquei lá, um ano depois que eu fui morar com eles o pai da Cláudia vendeu a casa e se mudou, aí eu nunca mais a vi, até hoje.

– E você sente saudades dela?

– Acho que não, mas não tenho raiva também não, não foi bem por causa dela que eu fui expulso, ele acabaria por fazer isso mais cedo ou mais tarde, ela só apressou as coisas, eu tentei explicar isso pra ela depois, mas até hoje ela deve ter a consciência pesada por causa do que ela acha que fez, mas foi por causa dela também que eu encontrei aquele casal maravilhoso que me acolheu, que me apresentou Jesus, que me apresentaram pra igreja que hoje eu amo. E posso dizer que isso também foi por causa dela. Mas o Cláudio foi transferido para o interior do estado, e eu tinha que me virar sozinho se não quisesse ir com eles, eles me deixaram livre pra escolher, e como eu já era maior de idade, decidi que sairia de lá também, mas era pra ir pra outro lugar, eu sempre tive um carinho e um respeito muito grande pelos dois, mas decidi que era hora de encarar o mundo por mim mesmo, e embora contra a vontade deles eu vim pra cá. Eles venderam a casa e até me deram uma quantia em dinheiro que deu pra mim mobiliar esse apartamento, comprar aquela moto de segunda mão, e me manter por uns dias até que eu conseguisse um emprego, através do Arthur, que eu conheci lá na faculdade. Encontrei endereço da igreja daqui, comecei a frequentar e é isso.

– E seus pais biológicos, você nunca tentou procurar?

– Diversas vezes, mas a família Brasil é muito grande, só no catálogo telefônico tem umas trezentas pessoas de sobrenome Brasil.

– E você acha que algum dia vai conseguir reencontrar seus pais biológicos e sua família de verdade?

– Sim, não tenho a mínima dúvida disso, tenho esperança de um dia encontrar meus verdadeiros pais, sei que tenho irmãos, tios, primos, avós, sei que também devem estar me procurando, e um dia vou encontrá-los, tenho absoluta certeza disso.

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