ALMA VIAJANTE

Quando Dorothy abriu os olhos, se viu em uma mata com um homem à sua frente montado em um cavalo, a primeira coisa que ela pensou foi que devia ter alguma coisa no suco ou que havia enlouquecido.

Quando aquele homem desembainhou a espada e veio em sua direção Dorothy desmaiou e acordou amarrada pelos pulsos, com ele jogando água em seu rosto.

― Acorda, sua prostituta rebelde. ― esbravejou o homem.

― Eu não sou prostituta e nem rebelde! ― disse ela atordoada.

― Se não é prostituta, por que está usando apenas combinações?

― Na verdade eu não sei de nada, onde eu estou, quem é você, o que está acontecendo? ― disse Dorothy gritando e chorando ao mesmo tempo.

― Cale-se mulher! Quem faz as perguntas aqui sou eu. Levante-se e você vai responder tudo o que eu quero saber quando chegarmos...

Ela o interrompeu desesperada:

― Eu preciso voltar para casa!

― Cale a boca e ande, não tenho a noite toda.

― Por favor, me solte, eu estou com medo. O homem pegou uma adaga e disse:

― Cale a boca sua prostituta ou corto a sua língua. Vamos andando.

Ele montado no cavalo e Dorothy andando com uma corda amarrada nos pulsos. Ela perdeu a noção de quantas horas andou até cair, o homem desceu furioso como se fosse desferir um golpe, quando viu os pés dela sangrando. Ela estava de camisola branca com alguns detalhes em renda, (aquela mesma que tinha ganhado de aniversário da Cassie) e descalça, foi então que ele se aproximou, deixando-a com mais medo por causa do seu tamanho e força. Colocou-a em cima do cavalo e jogou água fresca de um cantil que ele carregava nos seus pés aliviando a dor dos ferimentos, por um breve momento ele se mostrou gentil, seu olhar tinha algo que fazia Dorothy estremecer quando a olhava, ela não sentia apenas medo, ele despertava sensações nela que eram um misto de medo e euforia.

― Se tentar alguma coisa, eu corto sua garganta!

Dorothy foi sentada na frente dele no lombo do cavalo por mais algumas horas, ela estava cansada, com frio e muito assustada, aquele homem parecia cruel, a forma que ele falava exalava fúria, seu uniforme era típico de um oficial britânico do século XVIII, casaca vermelha, com forro e punhos azuis, o gorjal dourado, um talabarte em couro branco cruzando no peito, botas de couro até a altura dos joelhos, dragona dourada nos ombros e um chapéu bicórneo.

Era tudo muito estranho, nunca havia estado naquele lugar antes, sua mente ao mesmo tempo que pensava em tudo, parecia que não conseguia pensar em nada, ela pensou “se fosse apenas uma substância que ingeri, duvido que eu teria uma alucinação dessa, penso que foi alguma droga muito forte que Cassie colocou no meu suco, se foi isso ela foi longe demais, quando o efeito disso vai passar? Tenho a impressão que faz algumas horas que eu estou nessa alucinação, se for alucinação eu devo ter perdido a noção de tempo, o que parece ser horas na verdade não passam de segundos.”

E assim ficou com seus pensamentos até ser vencida pelo cansaço, fazia já umas cinco horas que eles estavam caminhando mata adentro, tudo era um breu, na confusão de seus pensamentos, Dorothy se rendeu e praticamente se deixou cair sobre o peito daquele homem e o cavaleiro que até o momento era motivo de medo, por alguns minutos a fez esquecer de tudo o que estava acontecendo. Ela então se aninhou como se estivesse em uma poltrona confortável, sentiu que ele passou seu braço pela sua cintura, era possível sentir sua respiração em seu pescoço, ela conseguiu até mesmo ouvir as batidas do seu coração, batia tão irregular, aquele homem era sem dúvidas o mais forte que Dorothy já tinha visto perto dela, então teve a contraditória sensação de segurança e adormeceu como se, naquele momento, ele não fosse um estranho que a raptou, mas a pessoa que a salvou.

Até que sentiu algo molhado em suas costas, quando viu, sua camisola estava ensopada de sangue, ela começou a gritar.

― Socorro é sangue, eu não posso ver sangue. Ai minha nossa eu estou machucada, nem estou sentindo, deve ser um sonho, quando a gente não sente a dor do ferimento. Mas eu senti a dor dos meus pés. O que está acontecendo?

Foi então que as mãos dele fecharam a boca de Dorothy repreendendo-a.

― Quer que os inimigos nos encontrem com essa gritaria toda? Você não para de falar mulher, sou eu quem está ferido, vamos precisar parar.

Com muita dificuldade desceu do cavalo e ajudou Dorothy a descer, muito abatido a desamarrou e quase sem forças encostou em uma árvore e desmaiou, foi então que ela viu uma oportunidade de fugir, saiu correndo uns sete metros, mas parou e pensou que não tinha coragem de deixar aquele homem ferido para morrer, ele precisava de ajuda, e voltou, afinal, ia fugir pra onde? Nem sabia ao menos o que estava acontecendo.

Voltou, juntou galhos secos e folhas para acender uma fogueira, pegou um graveto e uma pedra e ficou esfregando um no outro, inúmeras tentativas e nenhuma faísca sequer.

― Mais que porcaria! Nos filmes parece tão simples.

Estava muito concentrada e por isso não percebeu que aquele estranho estava atrás dela.

― O que está tentando fazer?

― Ahhhhh, você não estava desmaiado?

Ele pegou a pedra da mão de Dorothy, um outro graveto e, mesmo debilitado em poucas tentativas, fez uma fagulha, assoprou e pronto.

― Preciso de uma lâmina, para esquentar no fogo. - disse Dorothy sem acreditar na facilidade que ele acendeu o fogo.

Ele tirou uma adaga de dentro da roupa e colocou no fogo, então deitou encostado em uma árvore. Enquanto isso, a jovem foi criando coragem para ver o ferimento. Pensando: - “Isso é um sonho, e quando temos consciência de que estamos sonhando isso é um sonho lúcido. Já li sobre isso, eu já vou acordar. Cassie, pode me acordar agora essa é à hora, pode entrar gritando, eu não vou achar ruim. Começou a bater no próprio rosto: - “Vamos acorda, acorda!” - sem se dar conta de que estava dizendo tudo isso em voz alta.

  • Mulher, você ainda está falando?

― A lâmina da sua adaga já está quente, vou estancar seu ferimento.

― Além de falar sem parar também sabe estancar ferimentos?

― Para sua sorte, eu já assisti a vários filmes que representam cenas iguais a esse momento. Espero que não seja igual acender uma fogueira com pedra e graveto, que parece uma coisa, mas na prática é bem mais complexo.

― Acaso é louca, mulher? Eu não entendo nada do que diz.

Num impulso Dorothy foi até sua espada e a pegou, porém toda desajeitada, tentando desembainhar uma espada que era muito pesada quase caiu, no entanto conseguiu se recompor e quando conseguiu segurar a espada, a colocou contra o peito do homem e disse:

― Escrevendo parece fácil, mas lembra quando Dorothy disse que era pateta? Então imagine uma pateta tentando desembainhar uma espada muito pesada, com certeza foi uma cena dantesca, quase caiu sentada.

― Minha nossa  como isso pesa, é o seguinte senhor sei lá de quem se trata, até onde eu sei você está muito ferido e eu estou com sua espada apontada para seu peito, e de posse de sua adaga,  procurando bem sou a única pessoa em mais de cinco horas, portanto sou a pessoa que pode te ajudar, ou pode te matar se continuar me chamando de louca, prostituta, rebelde ou qualquer outro nome pejorativo que venha na sua mente, e outra, não me mande mais calar a boca e tão pouco grite comigo. Fui clara?

Pensando que havia colocado medo no estranho, quando percebeu seu olhar de deboche.

― Pronto senhorita, terminou?

Vincent colocou a espada de lado com a mão com um sorriso nos lábios, em horas foi a primeira vez que ele sorriu, revelando uma beleza que até então estava escondida pela sua expressão carregada, tirou o chapéu deixando a mostra seus cabelos, eram negros e longos que cobriam a sua nuca, tinha barba, e no meio de sua barba uma cicatriz que pegava quase a metade da bochecha, seus olhos eram negros como o cabelo e muito expressivos.

― Peço que aceite as minhas desculpas senhorita, pelo meu comportamento rude, mas suas vestimentas e o local que a encontrei me ajudaram a tomar tal julgamento.

― Aceito suas desculpas. Eu preciso tirar a parte de cima da sua roupa.

Foi muito estranho para Dorothy começar a despi-lo, havia sido uma batalha e tanto, suas roupas estavam muito danificadas, conforme ela foi tirando, também foi sentindo um calor no seu rosto, e ele olhando fixamente, não facilitava, até que...

― Mas que merda! Tem uma flecha enfiada no seu peito.

― Não é no peito é no ombro, eu já quebrei só precisa retirar o que sobrou.

― Mas esse ferimento não está sangrando, e minha cami... combinação está ensopada de sangue.

― Eu tenho um corte acima do quadril.

― Mas que merda! Porque não paramos antes, você pode morrer não que eu vá ficar triste.

― Pela sua preocupação, achei que choraria igual a uma viúva.

― Pare de falar, preciso começar, mas o que aconteceu aqui? ― Dorothy tirou-lhe o cinto, outra situação constrangedora.

― Morda o couro do cinto, vou primeiro estancar o sangue, depois retiro o resto da flecha.

― A senhorita que está no comando agora.

A moça pegou a adaga quente e quando foi colocar no corte, ele lhe segurou a mão e disse:

― Ainda não sei seu nome, senhorita.

― Não sabe por que ao invés de perguntar me amarrou e me ameaçou, mas já que enfim perguntou, é Dorothy Denzel, e o seu?

― Vincent Charlie Reéce Chadd.

― Agora morda, preciso fazer isso logo.

Enquanto estancava o ferimento feito por uma lâmina, Dorothy teve que recuar um pouco as calças dele, foi estranho ver um homem tão forte como ele indefeso naquele momento, ao mesmo tempo gostou de se sentir no controle, já que nunca se sentia no controle de nada, quando encostou a lâmina quente no corte, o corpo dele se contraiu e soltou um gemido silencioso.

E ela só pensava: por que eu não desperto desse pesadelo? Ficou em pé e com muita confiança, tentou arrancar uma tira da camisola para fazer uma atadura, mas quase machucou a mão tentando.

― Mas que porcaria, nos filmes parece mais fácil.

― Venha perto, mais perto de mim, deixe que eu faça isso.

A verdade é que Dorothy ficou paralisada com seu olhar, quando ele olhava parecia que conseguia ver à alma, enquanto ele olhava no fundo dos seus olhos, ela sentia-se nua, ela pensou: “eu acho que era assim que ele vencia as batalhas paralisava seus oponentes com o olhar,” e enquanto isso, em um piscar de olhos ele havia rasgado uma tira da  camisola com uma maestria impressionante, mas ela logo pensou “sim, ele é um soldado, pelas suas cicatrizes está acostumado a rasgar tiras.” Então enrolou no ferimento e foi para o próximo.

― Isso vai servir até um médico poder dar uma olhada nisso. ―  Médico! A senhorita pensa que estamos aonde?

― Na verdade, eu não faço ideia. Preciso tirar essa flecha, tem alguma bebida nas suas coisas?

― Tenho vinho.

― Toma então, vai te ajudar a não sentir toda a dor. Para sua sorte eu vejo muitos filmes e seriados, vai me ajudar muito agora.

― Não entendi nada do que falou senhorita Denzel, mas se for te ajudar a tirar essa flecha do meu ombro, eu concordo com tudo.

Os minutos que se passaram foram de muita tensão, Vincent foi orientando e Dorothy, fazendo conforme ele falava, ela suspirou aliviada e deixou cair um pouco os ombros quando estava estancando o ferimento da flecha, ficou aliviada porque segundo ele, poderia ter muito sangramento se tivesse atingido uma artéria. Depois ela fez uma tipoia com a camisa, imobilizou o seu braço e, terminando desabou em um choro descontrolado.

― Se acalme senhorita, sei que isso é assustador, mas deu tudo certo, não facilitei as coisas, mas te prometo que tens a minha proteção, não vou deixar nada te acontecer, notei que a senhorita é uma boa mulher, quando chegarmos em casa, assim que eu estiver recuperado, eu mesmo a levo em segurança para sua casa. Venha aqui.

Ele colocou a cabeça de Dorothy contra seu peito e passou a mão em seus cabelos.

― Xiii! Se acalme, já passou, logo estaremos seguros.

Perguntou ela entre soluços:

― Isso não é um sonho?

― Lamento dizer senhorita, mas isso tudo é real.

― Parece que eu estou enlouquecendo, não consigo entender.

Ele se levantou com dificuldade e apagou a fogueira, já estava amanhecendo. Ajudou Dorothy a montar no cavalo com muita dificuldade e montou com mais dificuldade ainda ela dessa vez foi atrás, não era mais sua prisioneira agora era sua protegida. Antes de partir, Vincent deu sua capa e a ajudou a se vestir, mas só com seu olhar ele já a aquecia. Cavalgaram mais ou menos uma hora, Vincent foi vencido pelos ferimentos ele desmaiou, Dorothy precisou apoiá-lo.

― Você tem ideia de quanto pesa seu saco de músculos? Até que é bonito e alto, poderia ser pior, ser um velho fora de forma e babão, a Cassie me mandou ver o lado bom de tudo, mas se eu não sei onde estamos, muito menos para onde vamos, ficaremos perdidos.

― Meu cavalo sabe voltar sozinho para casa, senhorita.

― O Senhor estava acordado?

― Como é possível dormir com a senhora tagarelando sem parar?

― Que parte o senhor ouviu?

― A parte que a senhorita me acha bonito, musculoso e forte. ― disse Vincent em tom presunçoso.

― Deve estar delirando por conta dos ferimentos, eu disse que te acho um arrogante.

― Não me lembro de a senhorita ter dito isso.

― Posso repetir.

― Não, prefiro ficar apenas com a parte do musculoso forte e bonito.

― Seu... - antes que ela pudesse terminar o que ia dizer, Vincent a interrompeu.

― Olha lá, estamos chegando.

Ela avistou um castelo com muralhas que parecia uma fortaleza, se tratava de um lugar muito lindo.

― Que lindo esse castelo, é de algum rei?

― Não, pertence a um duque.

― Pelo que eu vi nos livros a respeito dos nobres deve ser um homem de baixa moral, imbecil, que manda pobres diabos iguais a você lutar suas batalhas, enquanto ficam em suas ricas propriedades comendo com a barba cheia de farelos e se deitando com a criadagem dando origem a um grande número de bastardos.

Quando ela escutou um homem gritar:

― Abram os portões, o duque do Vale da Fênix retornou, vamos andem seus molengas vossa alteza parece ferido.

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