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Abandono
Abandono
Por: ABDENAL CARVALHO
Capítulo 1 - Infância

— Rosilda, vem cá depressa, me leve ali para o pátio que desejo ver o pôr do sol, não sabe que faço isso todas as tardes, mulher, porque sempre tenho que ficar implorando para que faça seu trabalho? Afinal, não é para isso que pagamos esse seu enorme salário!

— Sim, patroa, já estou indo, não se irrite, olhe o coração!

— E não me venha com essa ironia toda, sua assanhada, deixe de ficar tagarelando e conduza-me logo nessa droga de cadeira até o pátio!

— Tudo bem, tudo bem! Oh mulherzinha estressada essa!

— Mas vejam só como os empregados modernos tratam seus patrões nos dias de hoje, parece até que somos duas coleguinhas. Tenha mais respeito comigo sua fulaninha de merda!

— A senhora me desculpe, Dona Mercedes, mas eu não sou igual a seus outros serviçais, fui contratada pelo Dr. Gilberto para prestar meus serviços como enfermeira e, portanto, sou livre para me expressar como achar conveniente. E deixe de exagero, não estou lhe desrespeitando!

— Ah, está bem, deixemos isso para lá, agora me faça o favor de me deixar sozinha aqui no meu canto com meus pensamentos...

Sim, de certo que virá... É lindo o pôr do  sol, desde criança eu adoro vê-lo se esconder e nos desejando uma boa noite, mergulhando nas nuvens afogueadas, dando adeus ao dia que passou e saudando a noite que se aproxima. Antes, ele mergulhava nas turvas águas do rio que lambia as areias daquele vilarejo miserável onde cresci. Com seu desaguar contínuo, porém sujo que nem peixe bom se criava nele para pescar, o que seria ótimo para matar a fome daquela gente amaldiçoada que viviam naquelas terras.

Acredito que nada é mais relaxante para uma mente cansada do que admirar a natureza. E eu, nesta altura do campeonato, aprendi a dar valor a estas pequenas coisas, se bem que o termo pequeno é pejorativo, afinal, nada poderia ser mais interessante que apreciar aquilo que existe ao nosso redor, o que nos cerca. Quem me vê sentada nesta cadeira, observando o dormir do sol, sequer pode imaginar o caminho espinhoso que tive de percorrer para chegar até aqui. Fui uma criança amaldiçoada desde o dia que nasci numa região maldita. 

Uma terra condenada pela seca, onde quase nada que se plantava nascia e do pouco que crescia não se colhia o bastante para matar a fome. Meu nascimento ocorreu no verão, num calor dos diabos, se bem quem que no sertão nunca há inverno.  Lá, sentir algumas gotas de água caindo sobre nossos corpos ressequidos era um sonho permanente e algo distante da realidade de uma gente que durante toda sua existência nunca experimentou um só momento de paz e descanso.

Caçula numa família de quatro filhos, onde nossos pais nem sabiam escrever o próprio nome, sempre soube perfeitamente o que significava acordar todos os dias sem ter o que comer ou beber. As vezes saíamos na tapa para ver quem colocava mais feijão ou arroz no prato, a única coisa que aparecia para ferver nas panelas feitas de ferro grosseiro e geralmente pretas pela fumaça expelida da madeira colhida das arvores secas espalhadas pela mata.

Carne só uma vez por outra, quando alguém se dispunha a sair pelo cerrado à procura de bichos para matar, tipo veados, pacas ou cotias. A fome era tanta que a gente comia de tudo, nem lagartos escapavam, os camaleões que o digam, duvido se essa gente da cidade grande seria capaz de encarar tamanha miséria, comendo essa bicharada toda. Porém, para os que nada possuem e precisam fazer de tudo para sobreviver numa terra esquecida por Deus tudo é válido, até comer cobras venenosas ou filé de sapos.

Certa vez meu tio Germano apareceu lá em casa com várias rãs num saco, afirmando que a carne delas era semelhante a um peito de frangos depois de temperada.  Eu quase vomitei ao ver aqueles bichos imundos, duvidei se teria coragem de colocar um só pedaço daquilo na minha boca, mas depois que estava devidamente preparada e cozida, o cheiro era bom de se sentir, e ao provar gostei tanto que repetir o prato três vezes. Na manhã seguinte vi a pele das rãs estiradas no matagal ao lado da casa e quase coloquei as tripas para fora, senti nojo por muitos dias.

Se falasse disso a alguém agora certamente me chamaria de louca, afinal, quem em sã consciência comeria aqueles bichos imundos e ainda acharia a comida deliciosa ao ponto de repetir por mais duas vezes? Todos que tiveram a maldita sorte de nascer naquele fim de mundo, onde o Diabo armou sua tenda, comeriam e lamberiam os beiços. Hoje sou uma mulher de vida abastarda, possuo tudo aquilo que alguém possa desejar.

 Tudo que o dinheiro possa comprar, moro numa mansão cuja extensão é tão ampla que existem locais na minha própria casa que nunca visitei. Posso comer e beber de tudo o que quiser, não tenho falta de nada, mas naquela ocasião as coisas eram bem diferentes e para não morrer de barriga vazia era necessário fazer de tudo um pouco. Morávamos numa casa feita com barro batido e pedras, que presas entre duas varas de madeiras, colhidas das folhas dos cocais de babaçu eram em seguida recheadas com argila.

 O piso não existia de fato, era apenas barro socado e nossos pés viviam pretos da sujeira que nele acumulava, o telhado era feito de caibros feitos dos galhos grossos das arvores e coberto com as enormes folhas da palmeira dos babaçus, visivelmente decorados por telhas de aranhas que existiam aos montões por ali. Sim, a situação naquele barraco era mesmo estarrecedora. Mamãe e papai pareciam já estar acostumados com toda aquela sujeira, bem como todos os demais adultos que conhecíamos.

Já eu, mesmo ainda criança, me enojava daquele lugar escroto. Não parecia ter completado dez anos de idade, era raquítica e não possuía o perfil de uma adolescente, mais parecia uma fedelha.  Apesar da tamanha pobreza que nos cercava minha mãe passava a maior parte de seu tempo sentada diante de uma máquina de costura, fazendo roupas para as mulheres da vizinhança, na maioria um bando de velhas corocas e metidas que nunca admitiam estarem velhas demais para competir com as mais moças na busca de uma beleza que a muito haviam perdido.

 Elas usavam seus vestidos feitos de panos coloridos e com desenhos de grandes flores, pintavam seus beiços de batom vermelho e riam de tudo, mostrando os dentes tortos e apodrecidos no intuito de conquistar os rapazes que rondavam as ruelas da pequena vila onde morávamos. Quem ganhava com isso eram as costureiras como minha mãe e as vendedoras de cosméticos que pegavam os produtos falsificados nas bancas da cidade e empurravam nas tolas do interior.

 Dominadas pelo hábito da falsa beleza. Eu, como dezenas de outras meninas da minha idade e com um cérebro bem pouco desenvolvido, só pensava em brincar nas noites de luar, quando tudo parecia perfeito e até mesmo a miséria era esquecida. Constantemente suja e usando a mesma roupa por incontáveis dias, fedia pra danar, passava dias com o mesmo vestidinho encardido e a calcinha fedorenta que era colocado no meu corpo magrelo. Geralmente isso ocorria no domingo à noite, quando nossos pais nos levavam para assistir à missa na capela.

E perdurava até o próximo final de semana. Era rotina ficar sem tomar um banho sequer, pois ali água era escassa e precisávamos economizar, apesar de ter um rio que passava próximo do vilarejo. Era de águas profundas e éramos proibidos de ir lá mergulhar, pois podíamos nos afogar, como costumava dizer minha avó Tereza, que Deus a tenha no céu, se é que por lá aceitam nordestinos, uma raça que parece ser o sobejo dos diabos. Ela morreu aos noventa e quatro anos de idade, quase um século de existência.

Era uma velha resistente, batalhadora, do tipo que passou grande parte de sua vida desgraçada debaixo dos cocais. Sua trajetória nesse mundo foi quebrando cocos babaçus num machado para vender e fazer dinheiro, com isso sustentava o montão de filhos que gerou ao lado do pobretão de meu avô. É interessante tudo isso, pessoas que vivem nos grandes centros urbanos e em regiões cujos climas são frios e o meio de vida mais promissor, vivem menos de que quem mora no cerrado ou no sertão de sol escaldante, morrendo de fome.

Parece que o ditado popular que diz ser o pobre um vaso feito de barro ruim e que dificilmente quebra, é uma pura verdade. Afinal, não é assim tão fácil que essa gente morre, mesmo sofrendo. A família Barbosa era enorme, composta de pelo menos umas cem pessoas, só de tios e primos lembro-me de ser uma multidão. Durante os festejos de São João, no transcorrer das festas juninas, nós nos reuníamos para dançar quadrilhas, comer cuscuz, bolos de fubá e contar histórias mentirosas pela madrugada.

As moças e rapazes brincavam de “cair no poço”, uma brincadeira onde quem errasse a resposta da pergunta que se fazia tinha que dar um beijo em alguém escolhido a dedo pelos outros participantes. A rapaziada se dava bem, e erravam de propósito só para poder beijar a mulherada, mas que safados. Nós, as meninas e os garotos menores não podíamos participar, ficávamos apenas olhando de longe.

 E os mais assanhados lambiam os beiços com vontade de experimentar o sabor de um beijo. Martim, meu primo, certa noite decidiu me pedir em namoro, eu não tinha ideia do que era aquilo e disse sim. O sapeca me agarrou no escuro e lascou uma lambida na minha boca, ai que coisa mais nojenta, achei horrível. E ainda por cima me agarrou com uma força descomunal, o diabo tinha a minha mesma idade, mas era forte como um touro, pois foi criado trabalhando no cabo da enxada, na roça, ao lado de meu tio Pedro, um verdadeiro carrasco.

Ele era do tipo que tratava os filhos na base do chicote, não dava folga para os nove filhos machos que fez. Talvez por isso era o mais estruturado financeiramente na família. Meu pai e os demais tios eram mais flexíveis no trato com seus filhos e por causa disso nada tinham. Com ele eu aprendi que sem muito esforço nada se conquista na vida, talvez essa visão das coisas foi o que me fez vencer os obstáculos e contratempos que encontrei pelo caminho e me fez chegar até aqui, onde me encontro hoje, quando posso finalmente descansar.

 E ver meu tão sofrido passado apenas como uma lembrança, que mesmo amarga gosto de recordar. Sem dúvida alguma posso afirmar, com a mais absoluta certeza, que somente os mais fortes serão capazes de alcançar a plena realização de seus sonhos, no final de suas jornadas nesta vida, poderão pegar o pote cheio de ouro refinado numa das pontas do arco-íris. Para os fracos ficam reservadas a derrota e o fracasso, que são a recompensa deixada pelo destino aos perdedores. Martim era um garoto musculoso.

 E me tomou em seus braços como um verdadeiro cavalo brabo, amassando-me por inteira, fazendo com que eu me sentisse desejada mesmo que apenas por um segundo, enquanto durou aquele amasso, apesar de ter detestado o beijo de língua que ele me deu.  O que n verdade para mim não passou de uma lambida nojenta naquele instante em seguida me perturbou a mente. Depois que me levou para o escuro e me lambeu a boca voltou à brincadeira com os outros garotos.

Foi como se nada tivesse acontecido. O cínico continuou a se divertir até o dia amanhecer sem que voltasse a falar comigo, como se nada tivesse feito. Já eu, a bobona, mesmo não passando de uma criança fiquei tonta por muitos dias sem conseguir esquecer o amasso atrás de um dos pés de jatobá que existiam por ali. Acho que no fundo acabei me apaixonando pelo primo depois daquele episódio, todas as vezes que nos víamos eu pregava os olhos nele e depois voltava para casa como se estivesse anestesiada.

Passei a pensar nele diariamente, sonhava com aquela noite em eu fui beijada, podia até sentir a força de seu abraço, o aperto forte de suas mãos no meu corpo magricelo, e o esfregar nojento de sua língua sobre minha boca de menina durante aquela lambida horrível. Devo admitir que detestei aquilo, mas no fundo marcou minha infância. Já ele, como fazem todos os homens, sequer voltou a me olhar de maneira especial ou procurou tocar no assunto, aquilo na realidade foi só um impulso do macho que havia dentro dele, nada além disso.

Era triste ver meu pai, um homem já avançado em idade, levantar todas as manhãs ao cantar do galo, ainda com escuro, e ir pro roçado garantir o pão de cada dia na companhia de meus irmãos e outros boias frias. Ainda era muito jovem para compreender totalmente o mundo do qual fui designada pelo destino a pertencer, mas já era possível entender que era uma verdadeira droga tudo aquilo. Vivíamos numa região castigada pela seca e pela fome com a miséria que se alastrava por aquelas terras renegadas por Deus.

Ali, nos cafundós do judas, nem o diabo andava. No final de cada tarde podia ver meu velho retornar cansado do roçado, com sua velha enxada no ombro e um facão pendurado na cintura, igualmente a ele avistava meus manos, todos de pele queimada pelo escaldante sol do sertão, que não perdoa os habitantes que insistem em permanecer nas suas terras.  Mesmo em completo descaso, tanto pelas autoridades que não buscam uma solução para a escassez de água na região.

 Como pelo que existe de mais sagrado no céu, claramente pouco se importando com aquele povo sofrido. De mãos encaliçadas e calcanhares rachados, porém teimosos ao ponto de jamais desistir de um dia mudar sua sorte e ver cair naquela parte do mundo pelo menos umas gotas de chuva para molhar tão grande sequidão, eles insistem em ficar. Não existem nesse país pessoas mais otimistas que os nordestinos, principalmente os sertanejos, nunca desistem de acreditar num milagre repentino que poça de uma hora para outra mudar completamente suas vidas.

É por isso que é possível encontra-los presentes em todas as regiões brasileiras e até no exterior. Essa semente de lutadores, nunca param de caminhar em busca de seus sonhos, seja onde e como for estão sempre tentando ocupar seu merecido lugar entre os que são vistos como vencedores. Eu mesma posso servir de exemplo nesta afirmativa, pois alcancei o pico mais alto que uma mulher de origem medíocre, cujas raízes vieram das partes mais baixas e desprezíveis desta nação, poderia sonhar em conquistar.

Hoje, aos sessenta e oito anos de idade posso parar e olhar para trás, como faço agora, dizer que com fé e determinação todos nós podemos ir mais longe. Qualquer ser humano, homens e mulheres, independentemente de suas origens, podem chegar bem alto em suas existências. Vim do nada, era nada, não passava de uma fagulha sem esperança que nasceu numa terra seca, improdutiva, sem oportunidades e que pela maldade do destino tive que viver momentos de intenso sofrimento, humilhações e dores que marcaram terrivelmente o mais íntimo do meu ser.

Criando feridas até hoje abertas no peito e na alma, com imagens frequentes do terror vivido  na minha mente...Porém, nada disso me impediu de seguir em frente e conquistar meu merecido lugar neste mundo, onde fui plantada e fincada como uma planta frágil que se enraíza na terra e dela tira seu sustento, depois cresce e dá seu fruto em grandes quantidades. Alimentando todos quanto dela quiser tirar seu sustento, dando-lhes sombra com suas folhagens.

No presente onde me encontro, posso olhar para trás e ver no que me transformei, numa arvore de longos galhos, cujos pássaros pousam e cantam, festejando cada novo amanhecer. Construí um império feito de dinheiro e poder, uma família enorme, composta por sete filhos e noras, quatorze netos, e bisnetos que não se pode contar. Tudo fruto de uma vida dedicada a perseguir a realização de meus sonhos, superando obstáculos, passando por cima do orgulho ferido e aceitando em silencio as pisaduras do opressor, mesmo que elas fizessem sangrar meu espírito.

Quem diria que aquela menina suja, tão assanhada de pés no chão iria crescer, chorar lágrimas de crocodilo e depois superar tudo com coragem e otimismo, se tornando quem sou. Isso é uma prova irrefutável de que, quando nascemos com a sina de ser alguém importante nada pode nos impedir. Desde o momento que comecei a entender as coisas e perceber a situação caótica em que me encontrava ao lado de meus familiares, vivendo naquele fim de mundo entre os cocais de babaçu, comendo arroz branco com feijão da colônia que colhíamos na roça depois de meses semeando.

 Concluí que precisava urgentemente encontrar um meio para mudar de vida.  Mas como, se não existiam oportunidades e não passava de uma fedelha? Foi aí que tempos depois o destino decidiu intervir e as portas se abriram, mesmo que de forma horrível e cheia de sofrimentos, mas isso é outra história.  Enquanto o universo conspirava a meu favor, tentando encontrar uma maneira aplausível que me permitisse sair da situação de pobreza em que estive desde que nasci, continuei na vidinha medíocre de sempre.

Durante o dia a rotina era a mesma, acordava bem cedo para ajudar minha mãe a ir na cacimba pegar água limpa, antes que os animais fossem lá beber, para encher os potes de barro espalhados pela casa. Já ouvia falar das tais geladeiras que as pessoas da cidade tinham nas suas cozinhas. Diziam que fazia a água ficar bem gelada. Aliás, esfriava tudo, até comida.

Me perguntava para que esfriar as coisas de comer, eu nunca suportei feijão e arroz frio, tinha que está fervendo no prato. Bem, não compreendia tais coisas, mania de gente metida a besta. Depois de ajudar minha mãe com os serviços da casa eu finalmente estava liberada para brincar com as muitas coleguinhas existentes na pequena vila, a me soltava e só retornava no final da tarde, quando meu pai e os manos estavam de volta do roçado. Adorava os finais de semana, quando todos estavam em casa, as vezes papai nos levava para um riacho distante cinco quilômetros de onde morávamos para tomar banho e pescar.

Eu sempre me saí bem na pesca, usava um anzol preso a linha de uma vara improvisada feita por Jerônimo, meu irmão um ano mais velho que eu. No fim do dia trazia um cambo repleto de peixes e mamãe cozinhava tudo com bastante verduras, a famosa caldeirada, que servia a todos e ficávamos de barrigas cheias. Logo em seguida dava um sono de lascar e corríamos para deitar nas redes feitas de pano grosso e espinhentos na carne, de tanta sujeira ficava áspero. A lavagem de roupas se dava de mês a mês para economizarmos a tão preciosa água.

 Pois, além de ficar longe o lugar de onde se trazia em baldes e latas sobre os ombros, nem sempre os homens da casa estavam disponíveis para a tarefa. Desde bem cedo aprendi a fazer todas as funções domésticas, afinal, era a única mulher da família, depois de mamãe. Mas gostava de ficar com ela na cozinha, ajudando, a gente se dava bem, conversávamos e éramos como duas boas amigas. No interior é assim, as meninas contribuem no trabalho com a mãe e os meninos com o pai, no roçado.

Eu também de vez em quando costumava ir por lá, adorava pegar no cabo da enxada e cavar o chão para plantar. Bacana era a época da colheita, todas as mulheres do vilarejo e as meninas eram levadas à roça para colher as sementes depois de maduras, arroz, feijão, milho... E aproveitávamos para sair por entre a vegetação rasteira do cerrado à procura de frutos, tinha um tal de pajaú que era uma verdadeira delícia. Nasce de uma árvore com folhas alargadas.

 E dá em cachos como uva, porém os grãos são secos e endurecidos por fora, é necessário quebrar para retirar a massa doce de dentro. Eu e as colegas ficávamos fartas de tanto comer o tal fruto, além de muitos outros que por lá encontramos, coisa que o povo da cidade grande nem imaginam que exista. É, na verdade, uma inversão de valores. Enquanto no sertão nada se possui de moderno e tecnológico, nos grandes centros urbanos seus habitantes nada conhecem das pequenas coisas que podemos usufruir.

 Como o tal fruto que passei toda minha infância saboreando e nunca mais voltei a ver, desde que cresci e vim morar nessa selva de pedras. Outra coisa que naquela época não víamos com frequência eram tantas mortes como se vê agora, Deus do céu, mas como a violência tem se alastrado nesse país sem lei., acho que na atualidade não há mais lugar algum onde possamos encontrar paz.  Até nos locais mais distantes a morte faz suas vítimas, creio que mesmo no sertão e no cerrado há quem tire a vida do inocente por dinheiro e ambição.

 Dá até medo voltar a andar por lá. Tenho várias propriedades espalhadas pelos municípios de alguns Estados desse país, principalmente os nordestinos, vão de sítios a fazendas que no passado visitava com frequência ao lado de meu falecido esposo, hoje por não ter mais forças físicas nem disposição deixei tudo entregue aos cuidados dos filhos e dos genros, eles que se virem para administrar, já fiz minha parte. Devo admitir que não tenho do que reclamar, meus bens só se multiplicam dia após dia sob a administração deles.

Sou mesmo uma bem-aventurada, acho que passei a ser vista e lembrada pelos santos lá do alto depois de tantas pancadas levadas a esmos do maldito destino, que mais parecia um carrasco. Desde o momento em que fui separada de meus familiares e levada como escrava à casa de meus senhores, nunca mais tive paz na vida. Ah, nem gosto de relembrar o tanto que sofri e fui martirizada durante tanto tempo, cheguei a pensar que jamais sairia daquele inferno e quase desisti de continuar existindo.

 Até apelei para o suicídio, mas fui impedida pelo dono do chicote. Mas vou deixar para pensar nisso outra hora, hoje quero lembrar apenas de minha infância. Dos bons momentos que vivi ao lado de meus pais e irmãos, apesar da pobreza que nos cercava e da quase que total ausência de água típica do sertão, onde um dia de chuva ou um olho de água encontrado na mata significa um tesouro de valor incomparável. É certo que ali o povo sofre, é esquecido pelas autoridades que pouco lembram de investir recursos naquela região.

 Até parece que não se encontra registrada no mapa brasileiro. Os políticos só visitam quem moram nas terras áridas do sertão durante o período de campanhas, quando andam em busca de votos. Aí sim, os moradores são visitados e convencidos a acreditar nas falsas promessas de melhorias. Aliás, isso acontece em todas as partes desta nação contaminada pela corrupção, os mais pobres são ludibriados pelos poderosos e acabam por ajuda-los a chegar no poder, depois passam a ser as principais vítimas das leis infames que eles mesmos criam.

Tudo em defesa de seus próprios interesses, em prejuízo dos mais carentes. Ainda posso lembrar dos muitos comícios ocorridos lá na vila e dos candidatos que subiam nos grandes palanques para discursar suas mensagens de engano a um povo analfabeto e tolo, que facilmente eram convencidos a votar neles na esperança de tempos melhores, essa de ver o eleitor sendo enganado pelos candidatos é coisa antiga. Na pracinha matriz existia uma capela, onde nos reuníamos aos domingos pela manhã para assistir a missa.

 Ocasião em que o padre falava suas lorotas e abençoava os fiéis com água benta. A meninada demorava pouco dentro do templo, preferiam ficar correndo pela praça, brincando de pira-esconde, sem se preocupar com o amanhã. Essa é a parte mais interessante de ser criança, a mente é livre das preocupações características de gente grande. Hoje posso ver essa inocência estampada nos rostinhos delicados do batalhão de netos que possuo, sequer fazem ideia do caos em que vive esse mundo.

 E é bom que permaneçam assim por bastante tempo. Ao lado da velha casa coberta com palhas de coqueiros, onde nasci, cresci e passei todos os primeiros anos de vida, existia um pé de pequi, uma árvore gigante com troncos enormes, onde a criançada costumava brincar todas as tardes, afinal, ali ninguém ia a escola, pois colégios não tinha na comunidade e tão pouco professores para ensinar ler e escrever. Todos ali eram analfabetos de pai e mãe e pouco se dava valor aos estudos o que certamente me fez muita falta anos depois.

 Quando me encontrei perdida na vida sem eira e nem beira necessitada de um meio para sobreviver. Não é de agora que a falta de conhecimentos nos faz pessoas sem valor. Despreparadas para caminhar firme com as próprias pernas, sem depender exclusivamente de terceiros e se posicionar no mundo como alguém independente e donos de nosso próprio lugar no universo. É terrível andar como um cego que não é capaz de enxergar um palmo além do nariz, pois é assim que podemos comparar quem não sabe escrever sequer o próprio nome.

Houve uma época em que me vi dessa maneira, completamente incapaz de encontrar um caminho que me levasse a um futuro promissor, pelo fato de ser uma mulher analfabeta, sem estudo algum, foi ai que lamentei por não ter ido sentar no banco da escola.  Compreendi, com bastante atraso, o quanto isso teria sido fundamental para mim, pois somente assim se tornaria fácil minha trajetória rumo ao desconhecido, onde tive que saber conviver com o inesperado.

Claro que somente décadas depois me dei conta disso, quando olhei para os lados e já não vi mais a presença dos pais e da família onde costumava ancorar minhas esperanças, minha infância tinha ficado no passado e a inocência jogada no ralo de uma realidade nua e crua. Não foi fácil despertar de repente e perceber que me encontrava sozinha, sem ninguém por perto para estender as mãos e prestar ajuda quando necessário. Acontece que nos tempos de menina ainda era completamente alheia a estas questões e só pensava em brincar.

 Pouco sabia nem me importava com o que poderia a vir ter que encarar no amanhã. Criança é assim, tanto faz o pobre da favela ou o esfomeado do sertão, bem como a ricaça das altas classes sociais, vivem presas a seu mundo de fantasias sem pensar no futuro, só pensam nas suas variadas formas de diversões. Mas, de que valeria ser criança se não fosse assim, ficando livres das terríveis preocupações que tanto martirizam os adultos? Para isso Deus dividiu a vida humana em três fases distintas: Infância, adolescência e a maturidade.

E, pelo menos durante o tempo em que trilhei pelo caminho da inocência fui feliz, apesar dos muitos espinheiros em redor nada me impedia de curtir a pureza daqueles tempos que não voltam, nunca mais. Dona Chica, uma negra das mãos cinzentas que morava num barraco distante umas duas horas da vila era uma mulher assustadora de se ver. Alta, gorda e de olhos avermelhados, aparecia só de vez em quando no meio dos moradores, eu morria de medo ao vê-la, porém, ao mesmo tempo me alegrava porque sempre trazia um caldeirão cheio de mingau.

 E distribuía para todos nós, eu ficava amarela de tanto comer, era um dos momentos mais especiais para toda a garotada. Alguns dos meninos mais peraltas um dia se reuniram e foram bisbilhotar no velho barraco da bruxa, a negra feiosa que tanto me assustava, e me convidaram para ir junto. Sabe como é, apesar de assustada era cheia de curiosidades e aceitei o convite, mas não era boba nem nada e fiquei no fim da fila, recuada para não ser vista nem dá de cara com a feiticeira.

Sim, era dessa maneira que eu, no mais profundo de meu ser pensava, para mim ela fazia bruxarias, pois se não era isso, por qual razão alguém iria escolher morar sozinha nas brenhas do mato? Ou era uma criminosa ou fazia mandingas pro orelhudo, pelo menos ouvia os mais idosos comentar a esse respeito. Naquela tarde de domingo tive a péssima ideia de concordar em ir junto com a meninada incomodar a velha e fiquei terrivelmente aterrorizada ao perceber que a intenção deles era apedrejar o casebre da coitada, achei uma tremenda falta de sensibilidade.

Minha pouca idade não me impediu de refletir com um pouco de justiça, afinal qualquer pessoa sensata entenderia que mesmo sendo uma bruxa ela tinha o direito a viver em paz no seu canto, com seus feitiços. Além disso, a pobre coitada não incomodava a ninguém, sem falar no delicioso mingau que nos dava de vez em quando. Carambolas, e se ela colocava um pouco de bruxaria naquela guloseima? Sabe que nunca parei para pensar nisso? Quando não passamos de uns pirralhos cheios de danação só pensamos em matar a fome e estufar a barriga até rachar.

Bom, naquela ocasião, logo que vi as outras crianças apedrejando o casebre da negra velha eu fiquei com muita pena dela, principalmente ao ouvi-la gritando socorro e ameaças contra eles, a coitada foi pega de surpresa, pois vivia no seu cantinho sossegada por muito tempo, sem que ninguém fosse lá incomodá-la. Estava assustada e enraivecida, queria expulsar os invasores dali, mas não lhe era possível, visto que erma muitos e apareciam de todas as partes, atirando pedras. Me reservei a ficar só de longe, observando.

Hora por outra xingava os danados e pedia que parassem com tamanha barbaridade, porém, sem sucesso. Tudo durou apenas uns minutos, mais o resultado foi desastroso para a vítima da insanidade dos monstrinhos, pois a coitada ficou desesperada com o ataque surpresa. A garotada aprontou e depois fugiram deleitando-se pela afronta feita e me deixaram para trás, completamente desapercebida do fato de que eles já haviam partido e estava sozinha no local.

 Me distrai e fiquei perdida no mato, agora voltar para casa seria complicado pelo fato de pouco conhecer o lugar e o caminho percorrido. Comecei a chamar o nome deles na esperança de que estivessem por perto e pudessem me ouvir, mas era em vão, então comecei a ficar cada vez mais assustada, aumentando gradativamente o som dos meus muitos gritos, sem nenhum resultado. A estrada de chão era um ramal de apenas dois metros de largura.

 pouco usado pelos carroceiros que as vezes carregavam cargas de madeiras para fazer carvão nas suas carvoarias. Imaginem uma menina de apenas dez anos perdida no meio da mata sem ter noção de onde estava e de como retornar para casa? Era desesperador e passei a chorar bastante, pois começava a escurecer e nada de encontrar uma só viva alma que me ajudasse. Foi então que, de repente, senti um forte aperto no meu fino braço e ao olhar quem me segurava amarelei de medo ao ver aquela mão gigante e cinzenta que me apertava com uma força descomunal.

 E me puxava para si. Era ela, a negra velha que me encontrou sem rumo no meio do matagal e decidiu prestar socorro. Porém, ao invés de agradecer o gesto carinhoso da idosa eu me lasquei de pavor e comecei foi a gritar por socorro, até ela se assustou com tamanho escândalo. Acho que a coitada nunca tinha visto uma pirralha tão pequena com uma boca tão grande e capaz de fazer tanto barulho com seus gritos, esgoelei-me até não poder mais.  Ela só contemplava meu desespero sem nada fazer para silenciar meu pranto.

 Somente depois que o susto foi passando me acalmei e a velha resolveu me levar para seu barraco. Segui os passos dela, sendo puxada pelo braço, não tinha outra escolha a não ser obedecer a sua decisão, pois a mesma mantinha meu finíssimo pulso preso à sua enorme mão e me puxava pelo caminho. Depois de um longo caminhar chegamos ao casebre, tudo por ali era estranho e assustador, logo que adentrei o local meus olhos curiosos e perplexos avistaram o busto de um animal agarrado na parede feita de barro e pedras.

Ao lado, mais ou menos uma dezena de retratos de gente que nunca antes vi. Mandou que eu sentasse, apontando para um banco de madeiras, o que fiz de pronto e sem discutir, era duro para danar e doía a bunda por não ter estufa, além disso eu era desvalida de carne nas nádegas, uma moleca magricela por viver comendo feijão com arroz branco no diabo daquele sertão, coberto de uma vasta vegetação de espinheiros que dava até medo contemplar.

Ela nada dizia, ficava o tempo inteiro andando de um lado para o outro, ajeitando uma coisa aqui e outra acolá, mastigando bucha de fumo caseiro, cuspindo de vez em quando nos cantos das paredes, era de dar nojo o hábito nojento da negra de cabelos embranquecidos e que me acolheu. Depois de me acomodar foi até o fogão de lenha e retirou de uma panela enorme um punhado de mingau, colocou num prato de louça e mandou que eu bebesse, usando uma colher de metal tão limpa que brilhava mesmo com a fraca luz de um lampião a gás.

Em seguida deitei numa rede armada num canto qualquer, a pouca claridade foi desfeita, dando lugar a uma total escuridão. Lá fora era possível ouvir a festa dos grilos e o apavorante cantar da coruja, bem como o rugir da onça que as vezes parecia estar bem perto, rondando em redor do barraco. O medo era notório, enquanto a mulher roncava na cama de pau ao lado eu não conseguia pregar os olhos, eles permaneciam arregalados. O sono não chegava e a insônia tomava seu lugar.

 Impedindo-me de adormecer, forçando meus ouvidos a ouvir os passos do inexistente, criados pela ilusão que o pavor da noite causava. Tinha pressa que o sol despontasse e logo surgissem seus raios num novo amanhecer, entretanto as horas pareciam passar lentamente, era como se o ponteiro do relógio do tempo estivesse colado nas engrenagens e quase não se movesse. Fui forçada a contemplar o remexer das folhas secas espalhadas lá fora, durante o soprar dos ventos, e o dançar dos espinheiros durante o passar da brisa faceira nas madrugadas de um permanente verão escaldante e seco.

Finalmente acabou aquela noite e bem cedo a mulher levantou-se, fez um delicioso cuscuz que comemos juntas, acompanhado de café bem quente como eu gostava. Em seguida fui intimada a seguir com ela rumo ao vilarejo, voltei para casa e entregue aos meus pais que foram informados por Dona Chica, o que me rendeu uma dolorida surra com galhos de tamarindo, um negócio que dói para cassete.

 E só apanha dele quem apronta uma peraltice imperdoável. Fiquei vários dias de quarentena depois da surra, a bunda ficou em desgraça, o carrasco na ocasião foi papai que tinha a mão pesada para descer o farrapo nas costas dos desobedientes.  Meus irmãos mais velhos que o digam, dava até pena vê-los debaixo da ira dele. Naquela ocasião a vítima de suas pesadas pancadarias teria sido eu, apesar das intercessões de minha mãe de nada adiantou, o pau comeu e a dor das lapadas foi tanta que cheguei a mijar na calcinha.

 Como sempre preta de sujeira. Minha avó compareceu no dia seguinte em minha casa para repreender a ignorância do filho ao me espancar como se fosse um cabra macho, ela entendia que filha mulher deve ser castigada com menos rigor e que ele havia ultrapassado todos os limites. Acreditem, tive febre de pelo menos trinta graus e sentia meu frágil corpo estalar sob o frio misturado com calor. Gente, eu era só um fiasco de pessoa, magrinha de dá dó. O bom de tudo foi que passei a ser paparicada pela avó e as tias por algumas semanas.

 Até Dona Chica foi me visitar e levou mingau para ajudar a recuperar a saúde, ela afirmava que se bebesse tudinho iria fortalecer a carne e os ossos, até ganharia umas gordurinhas. “Essa pequena tem peso de bode”, dizia a mulher para minha mãe. Desde então foi incluída na nossa alimentação o mingau de milho verde, recomendação feita por vovó que queria ver seus netos mais cheinhos, e nós agradecíamos a negra velha de mãos cinzentas por isso, pois foi dela a insistência para que mamãe cuidasse melhor de nossa saúde.

Nos interiores nordestinos as famílias criavam seus filhos à base de mingaus de milho e cuscuz, tanto no café da manhã como no jantar, pois era um produto de fácil acesso, se plantava até ao redor de suas casas e faziam a colheita depois de poucos meses após a plantação. Mas conosco era diferente, meu pai odiava qualquer comida feita à base de milho e por conta disso proibia o consumo em casa, o que deixou de acontecer desde então.

Em poucos meses minha aparência de caveira mudou de aspecto e mamãe percebeu, isso ajudou com que ela considerasse verdadeira as afirmações de Dona Chica sobre a gororoba de milho contribuir para o bem dos meninos. O terreno onde construímos nossa morada era amplo, cercado por varas cruzadas entre si pela ausência de arame farpado, geralmente usado pelos donos de terra mais abastados. Nele podíamos encontrar várias árvores frutíferas típicas do sertão, que se desenvolviam bem naquela região.

 Um enorme cajueiro, pés de tamarindos cujos frutos eram azedos ao extremo e seus galhos serviam para os pais surrarem seus filhos de vez em quando, além de bacuri, pequi e outras do tipo. Eu gostava de sentar debaixo da jaqueira para admirar sua beleza e contar para ela alguns dos meus segredos de menina, inclusive sobre o beijo que levei de meu primo num momento de descuido. Não sei se aquilo foi ao certo um beijo, acho que levar uma lambida nos beiços de um moleque folgado não pode ser considerado algo do tipo, beijo é sinônimo de amor, paixão, romantismo.

Mas uma língua lambuzando sua boca não tem nada a ver com tais conceitos. De vez em quando também trocava uma palavra com a senhora Faveira, uma arvore que não dava frutos, mas suas flores eram lindas, coloridas e perfumavam tudo ao redor. Eram minhas melhores amigas, a elas eu abria meu coração e revelava as mais cabeludas peraltices, deixava à vista minhas fantasias de menina, até mesmo meus sonhos mais secretos. Como o projeto de um dia crescer e ir morar na cidade grande, vencer na vida.

 E me tornar uma rainha depois de ter casado com um príncipe encantado, em seguida voltar no vilarejo numa carruagem e deixar minhas amigas babando de inveja. Bem, certamente eu sairia dali rumo aos arranhas céus, me tornaria uma mulher de grande influência social e possuiria muito dinheiro após encontrar meu primeiro amor, que não era nenhum príncipe encantado, mas que era rico e poderoso o suficiente para me tirar os grilhões que por muito tempo estiveram presos ao meu pescoço.

 E as correntes que prendiam meus pés e mãos, presenteando-me com a liberdade. Tornou-me uma mulher livre, tanto do desalento das ruas, onde fui transformada numa escrava da prostituição e das drogas, como da situação miserável na qual estive refém por vários anos. Meu sonho de princesa certamente se materializou, andei na carruagem e a glória do poder me alcançou, porém a um custo muito alto que paguei sob muitos infortúnios e sofrimentos. A menina de cabelos assanhados, fedida e de pé no chão, iria crescer e ser largada no mundo como um trapo que se usa e depois é lançado fora.

 Sem ninguém a quem recorrer, a quem desabafar sobre suas infelicidades ou que pudesse lhe oferecer um tipo qualquer de ajuda. Mas isso ainda demoraria a acontecer e enquanto isso me era permitido curtir minhas ilusões de criança, fantasias que somente naquela idade se pode ter. As vezes ficava presa por tanto tempo ao papo com as fiéis amigas que não via as horas passar e só despertava quando ouvia o grito de mamãe, que preocupada andava a minha procura — Menina dos diabos, tú quer levar outra surra de teu pai, é? —

 Dizia ela aos berros, temendo que acontecesse o pior caso papai chegasse do roçado e não me achasse em casa. Era do tipo caladão, grosso, nunca sentou em banco de escola nem recebeu qualquer educação, resolvia tudo aos trancos e barrancos.  Entretanto, debaixo daquela couraça de jacaré existia um homem bondoso, de coração misericordioso na hora de estender as mãos para ajudar seus semelhantes. Lembro, como se fosse hoje, o dia em que meu pai doou um pedaço de terra enorme.

 Que antes usava para a plantação de mandioca com a qual fazíamos farinha, para a construção da capela. Ninguém mais se dispôs a colaborar com o pobre padre que foi enviado da capital para salvar nossas almas, porém não tinha onde recostar a cabeça. Papai recebeu o vigário lá em casa por várias semanas até que a igreja ficasse pronta. E olhem que foram meus irmãos e nosso velho quem a construíram, ninguém ajudou.

Eu mesma dei minha pequena contribuição, levando água na cabaça para matar a sede dos trabalhadores e porções de mingau pela manhã, arroz e feijão a tarde, para saciar a fome dos coitados. Nós, sertanejos, somos pessoas batalhadoras e destemidas, mas não posso negar que entre essa gente de extrema força e dinamismo existam, também, certos preguiçosos que nos envergonham. Uma das características mais negativas do meu povo pode ser vista como a indisposição em dividir o que possui com o próximo, o nordestino é miserável e não sabe repartir seu pão com ninguém.

Mas nem todos são assim, meu pai era o maior exemplo disso. E, se a maioria deste povo sofrido é assim, há uma explicação para tanto. Afinal, quem que depois de nascer e viver a vida inteira sob a amargura da seca e a fome ainda teria disposição para dividir o pouco que tem com os outros? E o pior de tudo é que mesmo após sair de tamanha pobreza e conquistando um espaço na alta sociedade, a maioria só muda por fora, interiormente continuam sendo os mesmos cascas duras de antes.

Comigo só não aconteceu assim porque creio ter herdado um pouco do coração mole de papai. Não consigo fechar as mãos para quem clama por ajuda. Passei a maior parte de minha sofrida existência compartilhando minhas conquistas com meus semelhantes. Certa ocasião fui visitar Dona Chica, a velha que distribuía mingau de milho verde na vila e morava embrenhada na mata, mesmo não entendendo direito a razão de ser impulsionada a isso fui até lá e passei o dia inteirinho tagarelando com a coitada que, pelo visto, se atormentava com tanto blá, blá, blá.

Desde menina sou uma pessoa de língua solta, falo exageradamente e acabo deixando quem estiver por perto de orelhas roxas por tanto me ouvir tagarelar. Mesmo tímida em excesso e alheia a muito papo ela aprendeu a dar atenção para aquela menina magrela e de língua ferina, eu passei a ir na tapera nas brenhas, bem longe de tudo, todos os dias. No início era recebida sem muita cortesia, mas no decorrer do tempo comecei a me sentir como se fosse sua filha.

 Ou melhor dizendo, passei a vê-la como uma segunda avó, mesmo que não tivesse a pele cinzenta como ela. Passamos a conversar, a negra velha aprendeu a abrir mais a boca e finalmente nos comunicávamos melhor, nos tornamos duas amigas, confidentes, contávamos uma a outra, nossos segredos, se é que que uma criança tem algo para esconder de alguém. Os adultos costumam ver essas pequeninas criaturas como seres sem cérebro, incapazes de sentir emoções e guardarem em seus corações sentimentos que precisam ser compreendidos.

Mas é um terrível engano de nossa parte acreditar que elas são insensíveis ao ponto de não terem uma visão acentuada daquilo que enfrentamos em nossa realidade, mesmo não sabendo expressar claramente a forma como conseguem compreender o que vivemos e sentimos, elas sabem e entendem o quanto é difícil a maturidade que, como nós, muito em breve terão que encarar. E isso ficou claro para Dona Chica durante minhas visitas em seu recanto longe de tudo. Ela passou a falar mais e de sua boca ouvir diversas histórias.

 Me contou tudo sobre seu passado, revelou suas tristezas e amarguras, todas as decepções pelas quais passou durante a juventude... Talvez me falasse seus desalentos por pensar que, sendo uma criança, no fundo nada entenderia e serviria apenas como uma simples ouvinte, que não faria perguntas e nada diria daquilo que escutava a mais ninguém. Mas ela, como a maior parte dos adultos, se enganou. Eu guardei no coração e na minha mente de menina todas as suas histórias e com elas aprendi que nem sempre a vida é justa com as pessoas.

Isso me ajudou a superar as futuras decepções no amo que decerto surgiriam durante a longa caminhada que ainda faria rumo a maturidade e em todas as outras áreas de minha existência, sem que aquela mulher fizesse a menor ideia me ajudou a amadurecer imensamente. Antes ela se sentia bem na companhia dos bichos e da solidão, sem a importunação de outras pessoas, mas depois de nossas conversas e de poder contar diariamente com minha presença mudou sua forma de pensar.

Passou a sentir a necessidade de se misturar e isso foi predominante para que eu a convidasse para ir mais vezes no vilarejo, interagir com os outros moradores, então as coisas se inverteram e dessa vez fui eu quem segurou firmemente na sua mão gigante e cinzenta, puxando-a pela vereda de chão, o ramal das carroças, em direção ao lugar onde morávamos para ensiná-la a conviver novamente meio as outras pessoas, como certamente já teria feito antes de se tornar aquele bicho do mato. Desde então vó Chica e eu passamos a ficar juntas, batendo longos papos.

 Tanto no barraco da mata quanto em minha casa na vila, todos os demais moradores ficavam admirados pela enorme transformação ocorrida na vida daquela mulher que até pouco tempo escolheu viver isolada na floresta como uma louca. O mais interessante foi perceber a enorme amizade que passou a existir entre ela e meus pais, que ficavam horas sentados na sala, jogando conversa fora em plena madrugada. Pela primeira vez pudemos ouvi-la contar suas estripulias feitas nos tempos de menina, se parecia um pouco comigo.

 Foi uma garotinha peralta e aprontou diversas traquinagens. Aos poucos deixou de ir na tapera onde morava, abandonou tudo, levando seus cacarecos lá para nossa casa, tornou-se parte de nossa família. Quem remoía de ciúmes era minha avó por parte de mãe, ao ver a ligação que passou a existir entre nós duas e porque passei a lhe dar maior atenção. Parei com as peraltices de guria e, quando não estava ajudando minha mãe nos afazeres domésticos.

 Ficava a maior parte do tempo livre ouvindo as histórias da nossa hóspede, achava interessante tudo o que dela escutava. Era um período em que Deus decidiu olhar com mais misericórdia para o sertão e começou a chover, a felicidade no olhar de cada sertanejo era fácil de se perceber à distância. Nossos rostos queimados pelo intenso sol de um longo e duradouro verão deixava à mostra o tipo medonho de sofrimento que enfrentávamos por ali.

 Bebíamos água de uma cacimba rasa que para não engolir sobejo dos animais tínhamos que recolher o liquido bem antes do amanhecer, ainda pela madrugada. Tomávamos banho duas vezes por semana para economizar, pois só tínhamos dois tambores grandes de plástico para acumular uma pouca quantidade tirada do rio Parnaíba, localizado a mais de dois quilômetros dali, de onde os homens do vilarejo traziam em baldes e latas presas por varas apoiadas nos seus fortes ombros. Nunca fui lá, crianças eram proibidas de ir ao rio.  

Olhava pela janela e admirava o cair da chuva, estava forte e era possível ouvir o chocalhar dos pingos d’agua caindo sobre a palha seca que cobria nossa casa, infelizmente nunca conseguimos um telhado feito por telhas de cerâmica nem mesmo de barro cru, como a maioria dos vizinhos, porque na verdade éramos pobres demais para compra-las. Mas não importava, no meu olhar de criança tudo parecia fantástico, encantador e mágico, para chover no sertão demorava uma eternidade.

 E não podia perder a oportunidade de assistir aquele espetáculo quase que único na minha vida. Os mais velhos corriam para o roçado plantar sementes na esperança de que a lavoura florescesse.  Enquanto isso acriançada corria para o terreiro brincar no lamaceiro, mas daquela vez fui barrada por mamãe que não deixou nenhum dos filhos sob a chuva, alegando que seria gripe na certa. Ela odiava nos ver todos catarrentos, espirrando e depois tremendo de febre. Todo ano em que tínhamos inverno na região era assim.

 E a trabalheira de nos curar sobrava para a coitada. Que não conseguia dormir à noite, cuidando de tanta gente doente. — Dessa vez não! — Gritou ela, quando já estávamos nos assanhando para cair no lamaceiro. Tinha toda razão de não nos permitir tamanha façanha, afinal eu e mais dois outros éramos asmáticos, bastava gripar e vinha junto as crises asmáticas.  O mais chato era que, além de passar a noite em claro, batendo cabeça com os moleques que se danaram na chuva e contraíam doenças.

 Ainda por cima tinha de ficar ouvidos as reclamações chatas do marido, lhe culpando de tudo. Eu via como minha mãe sofria ao exercer aquele papel de esposa submissa e do peso da responsabilidade que lhe era imposta sobre os ombros, tinha que responder por todas as coisas erradas que nós fazíamos, parecia ter um letreiro na testa escrito “culpada”, obrigando-lhe a explicar os motivos que a impediram de evitar nossas traquinagens. Não sei se diante disso acabei aprendendo errado, mas compreendi que ser mãe e esposa era um martírio.

 E por muito tempo reneguei carregar esse fardo, até que finalmente amadureci e conheci quem me fez mudar meus conceitos, entendendo que se há amor verdadeiro o que parece ser um fardo se torna algo bastante leve de se levar sobre os ombros, aliás, até pode nos causar intenso prazer e satisfação. Portanto, naquele ano nada mais nos restava, a mim e o restante de meus irmãos, do que apenas admirar o cair da chuva através da janela feita de tábuas brutas, sem nenhuma arte ou decoração.

 Características típicas de casebres como o nosso. Olhando firmemente em direção ao quintal via a goiabeira, o cajueiro e tantas outras plantas que se embalavam no soprar dos ventos.  Elas banhavam-se debaixo do gotejar da chuva e pareciam felizes por ter a oportunidade de brincar no forte inverno que por milagre caia sobre uma terra geralmente amaldiçoada pela seca nordestina. Me espichava um pouco mais, debruçando meus ossos sobre a base da janela e podia ver a jaqueira lá no fundo.

 Rebolando seus galhos e balançando como podia seus frutos no embalar da ventania que assobiava enquanto corria por entre as arvores. A faveira, com seu caule grosso e colorido, pintado de vermelho e branco, reluzente entre as demais, permanecia firme, parada sobre suas raízes, como se apenas curtisse o momento. De vez em quando o forte trovão acompanhava um veloz relâmpago, me fazendo tremer na base e recuar da janela. Porém, o susto era passageiro e logo metia o focinho de volta para apreciar o cair do temporal.

No sertão é assim, oito ou oitenta. Quando o diabo resolve meter o rabo entre o céu e a terra não cai uma gota de água para molhar e esfriar a terra. Ai já se sabe, são meses de seca braba. No entanto, depois que a intervenção divina decide se compadecer dos miseráveis sertanejos, ordena que se abram as comportas das nuvens e permite cair em grande quantidade as chuvas por toda a extensão dos lugares castigados pela sequidão. Alguns pássaros também pareciam se divertir plainando entre as gotas de água que caiam lá do alto sem cessar, voavam de um lado para o outro.

 Em certos momentos passavam raspando o beiral da casa e retornavam para o meio do terreno, em um vai e vem impressionante, aproveitando para tomar banho e esfriar suas penugens. Enganam-se os que acreditam ser os passarinhos inimigos do tempo frio, eles adoram, mesmo aqueles que vivem nos lugares áridos e adaptados com o calor. Sem dúvida os maiores, como o gavião e a coruja deveriam estar entocados em algum local para fugir da chuva, dizem os mais experientes que evitam banhar suas penas, pois depois custa secar e voar.

O vento soprava forte naquela tarde e o som de seu assobio era claramente sentido ao passar rasteiro pelos fios de meus longos cabelos, eram como o cantar de uma poesia, como notas suaves e delicadas que me faziam adormecer. Amava seu passar gelado pelo meu corpo, aliviando-me daquela quentura terrível dos dias quentes que passaram antes de sua chegada. O dia chegava ao fim e a escuridão lentamente se aproximava, não havia iluminação pelas ruas e dentro de casa usava-se lamparinas para iluminar o ambiente.

Como eram à base de querosene seus pavios fumegantes soltavam uma fumaça preta que se espalhava pelo lugar, grudando nas paredes um sujo preto difícil de limpar. Já existia a luz elétrica no mundo inteiro, mas naquele confim do judas nem se ouvia falar, vivíamos no escuro das noites iluminados por chamas de fogo como se estivéssemos no inferno. Mas para mim, pelo menos durante os tempos de menina.

Tudo era aceito na maior tranquilidade, pois, como diz um adágio popular: “Quem nunca provou não sabe o gosto que tem”. Nasci e estava crescendo sem sequer ter visto uma lâmpada acesa na minha frente, então não poderia saber a diferença entre ela e uma lamparina. Escureceu e papai trancou todos os buracos da casa, ordenando que fossemos dormir, adorava deitar na minha rede e ficar debaixo do cobertor feito de pano grosso. Me desligava de todas as coisas e ficava escutando o tilintar das gotas de chuva caindo sobre o telhado de palha seca.

 Achava aquilo algo fantástico, um simples gesto da natureza que talvez as pessoas da cidade grande não tivessem tempo de perceber e dar valor, mas para mim, uma menina pobre do sertão escasso de chuvas, era impressionante. O quarto onde dormíamos era enorme, apesar da pobreza no sertão não se constrói casinhas, tudo é grande espaçoso, mesmo que sem muito conforto. As redes presas em armadores de ferro ou presas em cordas de embiras faziam filas uma do lado da outra. Meus irmãos dormiam cansados do labutar da roça, Jeronimo.

 O menor deles, era o que roncava mais e me impedia de cair no sono, então aproveitava para sonhar um pouco. Enquanto lá fora chovia sem parar desde cedo, no quarto e enrolada no lençol de pano grosso eu pensava num futuro onde as coisas pudessem ser diferentes para mim e minha família.  Nunca fui egoísta e sempre que criava na mente imagens de uma vida próspera e cheia de conforto incluía nelas todos os meus familiares. Sabia o gosto de cada um deles:

 Jeronimo, o roncador, queria ter um quarto só seu com uma cama bem grande e fofinha para roncar deitado sem parar. Manoel era muito trabalhador, mas um comilão sem medidas, iria matar sua fome com tantas guloseimas que ele nem iria aguentar. Marciano, o mais velho, era extremamente materialista, sovina e mão de vaca. Para ele o que importava era ter muito dinheiro e possuir muitos bens. Quando fosse uma milionária faria dele um homem poderoso. Mamãe não esperava grandes coisas da vida.

 Costumava dizer já ter tudo o que precisava para ser feliz: Um marido, seus filhos e um canto para morar. Era do tipo conformada com quase nada, característica típica das mulheres sertanejas, educadas pelos pais a crescer, casar e servir de capacho para os homens, mas eu não, jamais entraria nessa! De qualquer forma pretendia dar a ela e meu pai uma velhice digna, com bastante conforto e uma reca de empregados para proporcionar aos dois um final tranquilo e farto, onde pudessem comer e beber do bom e do melhor.

 Talvez eu fosse uma menina estranha, diferente das demais que moravam nas proximidades, enquanto a maioria só pensava em brincar de bonecas eu sonhava alto com uma vida longe dali, em se tornar uma mulher rica livre da miséria na qual havia nascido. Não fazia a menor ideia de como isso iria acontecer, nem quando seria possível realizar tal sonho, mas sentia no íntimo que teria um futuro melhor que o presente em que estava até então. Era uma manhã de inverno e bem diferente das demais.

 Porque mesmo durante aquela estação do ano no sertão não costuma chover e o que cerca os habitantes da região é poeira e muita sequidão. Porém, para nossa felicidade parecia que Deus teve finalmente compaixão de nossa terrível situação e liberou um pouco de sua água para umedecer o chão rachado pela intensa seca e molhar as plantas que por um verdadeiro milagre conseguiam sobreviver a tal situação. O clima, que geralmente era tão quente e ardia na pele, amanheceu frio e gostoso de sentir.

Até o ar que respirávamos estava mais suave em nossas narinas e de vez em quando se ouvia alguém expirar, sinal de gripe a caminho e mamãe ficava logo apavorada, não queria ter que passar noites e mais noites cuidando de moleques catarrentos. Vó Chica, que saiu da mata e passou a morar conosco a pedido de meus pais, recomendou que nos fosse dado o tal chá da raiz do fedegoso, uma planta que nascia no mato e que dava umas vargens compridas e finas, para combater a gripe, o que foi aceito e providenciado com urgência.

Depois de preparado o remédio caseiro fomos forçados a beber debaixo de gritos e ameaças, por que o diabo era amargo de matar. Faria qualquer bicho brabo e feroz sair correndo mundo à fora. Quanta maldade, fiquei enraivecida com a negra velha por semanas, mas as intenções dela eram das melhores, só queria ajudar a evitar o pior. Nos via como netos, sua nova família. Depois de refletir melhor eu a perdoei e voltamos a ficar bem. O remédio era mesmo eficiente, apesar de dá umas fugidinhas e me meter debaixo da chuva escondido de papai, não fiquei gripada.

Os manos se davam bem lá no roçado, porque tomavam banho na chuva enquanto trabalhavam e ainda gozavam daquele friozinho delicioso que fazia durante o dia inteiro. O novo clima perdurou por três meses, foi a primeira vez que aquilo aconteceu, geralmente só durava trinta ou quarenta dias. Como o chá do fedegoso funcionou direitinho e não ficamos resfriados, mamãe não nos impediu mais de brincarmos na chuva, isso nos fez perder o medo de beber aquilo só para poder cair no lamaçal.

Chovia dia e noite, as vezes fraco, as vezes forte. Em alguns pontos da estreita rua onde morávamos existiam uns buracos escavados pelos moradores, afim de tirar argila, que transbordaram. E durante nossas peraltices pulávamos dentro deles, brincando de mergulho, também nadávamos em outros pontos semelhantes, onde nasciam até peixes. Neles, a gente pegava um saco de estopa e, segurando cada um de seu lado, passávamos dentro do buraco.

 E retirávamos os cascudos ou traíras que os meninos tratavam para assar num fogo improvisado, feito com cascas de coco babaçu. Disso a gente tinha muito estocado dentro de casa, na verdade todos os moradores faziam isso como forma de fazer fogo nos fogareiros a carvão, quando esse faltava devido estações como aquela, com muitas chuvas. Não posso negar que apesar da vida miserável tenha tido bons momentos durante minha infância e soube aproveitar ao máximo.

Com vó Chica eu e mamãe aprendemos como extrair o óleo da semente da mamona. Servia para passar no cabelo e deixar mais macio na hora de pentear, pegando o grão e amassando num espremedor se obtinha o leite, que era usado para combater vermes. Aí danou-se, porque todos os dias bem cedo a gente tinha que beber aquela gororoba enjoada e não adiantava soluçar, a velha nos obrigava a ingerir a porcaria na marra, com o galho de tamarindo na mão, se não quisesse beber entrava na cipoada.

 Mas, no final valia a pena o martírio pelo bom resultado que nos trazia, afinal de contas estávamos livres para prosseguir na bagunça, o passatempo predileto das outras meninas era o balanço pendurado num dos grossos galhos da ameixeira. Decidi experimentar e passaram a me balançar de forma exagerada, empurravam o balanço para lá e para cá e o diacho acabou se partindo, fui lançada para longe como um troço qualquer e cair por cima do braço que de tão fino se quebrou. Droga, devo concordar que as traquinagens praticadas nos nossos tempos de criança só geram problemas.

E são nossos pais quem pagam o preço com tantas dores de cabeça. Fui levada numa carroça para um posto de saúde distante dez quilômetros que nada tinha de remédios para passar a dor, o enfermeiro com nome de médico entalou meu braço de qualquer jeito, depois de engessar me mandou de volta para casa. Somente assim me aquietei e deixei de causar preocupações para meus pais, foram uns três meses de braço enfaixado e sem sair para canto algum, o inverno se foi e com ele a tempestade de ventos frios.

 A chuva e as gotas de água que causavam o gostoso achocalhar sobre o telhado pararam. De volta estava o tão rigoroso verão de intenso calor, poeira e seca. A rotina se repetia, muito trabalho no roçado debaixo de um sol escaldante que chegava a rachar o chão e pouca colheita. Meu pai saiu à porta, olhou para o morro localizado bem a sua frente, coçou a careca por debaixo do chapéu de palha e respirou bem forte.

 Diante dele estava mais um longo desafio. Daquele momento em diante as coisas começaram a mudar, dias depois um homem apareceu lá em casa todo vestido como um doutor com um documento que nos mandava arrumar os cacarecos e desocupar as terras. Segundo ele o governo havia confiscado aquelas propriedades e todos deveriam desocupá-las de imediato, a não ser que pagássemos o valor dos impostos que durante décadas os antigos donos deixaram de repassar aos cofres públicos.

Bom, para entender isso é preciso saber que no sertão daqueles tempos a coisa funcionava assim: Os grandes proprietários de terras mandavam na região e nada pagavam ao Estado. Em contrapartida, o governo fingia não se importar por temer represálias por parte dos poderosos, mas, quando morriam eles e as futuras gerações dos tais coronéis abandonavam os antigos engenhos de cana de açúcar ou cafezais por terem ido morar na cidade grande, deixando suas terras em completo abandono, o Estado voltava a reclamar seu direito de posse.

Acontecia que, na maioria dos casos, muitas famílias já estavam instaladas nas antigas propriedades, então eram expulsas dali sem aviso prévio e saiam com as malas na cabeça sem rumo nem direção, a esses foi dado o nome de retirantes.  E nós, depois de anos vivendo em paz ali estávamos prestes a nos tornar, também, andarilhos. Ao chegar do roçado e ser informado das novidades papai quase perdeu o juízo, não sabia o que fazer diante de tamanha calamidade, o que faria para nos dar novamente casa e comida?

O que seria de todos nós dali em diante? Não encontrava respostas. Recordo como se fosse hoje o momento em que meu pai permaneceu por várias horas sentado numa cadeira de balanço, no estreito pátio, pensando na vida á procura de respostas que pudesse lhe fazer ver uma saída para o dilema que surgiu repentinamente. De um lado era ele em suas reflexões e do outro o som da máquina de costura.

Era a maneira encontrada por mamãe para lidar com o nervosismo, rompia o silencio gastando as energias, batendo o pé no pedal da máquina de costura antiga, a única herança recebida de vovó Adelaide. Por falar nisso, para completar vó Chica fica doente de repente e nos deixa no momento mais difícil de nossas vidas miseráveis. No sertão não tem dessa de funerária e caixão, pega o defunto depois do velório que dura uma noite inteira, os velhos tomando café preto e grosso igual asfalto.

 Os papudinhos enchem a cara de pinga, a gurizada fica correndo pela rua, brincando de pira esconde, os jovens namoram e o violeiro toca uma música fúnebre. Era uma verdadeira diversão. Ao amanhecer jogam o morto dentro de uma rede e dois homens fortes a levam presas numa vara, posicionada sobre os ombros, rumo ao cemitério clandestino no meio do mato. Aqui e ali alguém dava um gemido, fingindo um choro forçado e, assim, se fazia a despedida dos que partiam. De volta á realidade deparamos com outro grande problema, o despejo.

 Venceu o prazo para darmos o fora da casa em que nasci e morei a vida inteira, foi chegada a hora de sairmos sabe-se lá para onde. Acontece que meus pais e os outros moradores decidiram resistir e permaneceram ali mesmo, esperando para ver no que ia dá, afinal de contas ninguém iria perder tudo o que construiu com tanto sacrifício. E não deu noutra coisa: Os policiais chegaram na manhã seguinte armados até os dentes e colocaram todo mundo para fora de suas propriedades à base de ameaças.

Foram chutados, espancados, humilhados e teve macho brabo que reagiu e levou bala, meu pai foi um dos que puxou o facão e arrancou o braço de uma autoridade, teve como resultado a prisão. Saiu algemado e a pontapés, minha mãe se rasgava aos berros, implorava para que soltassem o marido e foi esbofeteada pelo policial de olhos esbugalhados e orelhas grandes, meus irmãos tentaram intervir e foram esbordoados, enquanto eu e outras crianças nos escondíamos à distância, debaixo de uma palhoça.

Os desgraçados não satisfeitos passaram a incendiar as casas e pela primeira vez eu pude ver como era lindo o fogo se espalhar pelo telhado de palhas secas, ao mesmo tempo que era triste se tornava um espetáculo diante de meu olhar repleto de espanto. Em pouco tempo tudo virou cinzas, só restou nós e nossas mães chorando em completo desespero, perdemos nossas terras, nossos bens e estávamos no meio da rua sem eira nem beira, não esquecendo que todos os homens adultos da vila foram levados em cana ou perderam a vida na luta contra os invasores.

— Prontinho, patroa, seu tempo aqui fora acabou. Hora de retornar para dentro de casa, jantar e dormir

— Lá me vem você com essa tagarelice outra vez, Rosilda, não passou ainda todo o tempo que disse me dá para ficar aqui no pátio, vendo o pôr do sol!

— Já se passaram uma hora desde que lhe trouxe aqui pro pátio, sim, e o sol já se pôs faz décadas, Dona Mercedes, seja mais compreensiva!

— Mais compreensiva...Hum....Sei.

— Vamos, todos lhe aguardam à mesa...

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