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Capítulo 2 - Enquanto você dormia

Que cena inacreditável, ele nunca havia perdido o controle assim, não na frente dos funcionários. Mas hoje, depois de uma das piores visitas sem aviso do seu pai, aquela garota tinha que ter entrado daquela forma na sala. Tinha pavor de pessoas incompetentes. Era muito simples, cada um tinha suas funções e obrigações, para o escritório funcionar como um relógio. As coisas não podiam sair dos trilhos. Muito provavelmente, ele havia exagerado ao acusar a mulher de espionagem, mas isso também não era nada incomum, ainda mais na sua área. O pai tinha um dom de tirar ele do sério, depois da aposentadoria havia virado um sumidor de dinheiro. Não havia limites paro o cartão de crédito da esposa jovenzinha. Os negócios iam bem, mas uma bolsa de quintos mil por mês, era um tanto quanto exagerado. A mulher nem fazia questão de dissimular a ganância.

João foi para a janela, tentando desanuviar a cabeça após a cena digna de novela, quando viu o acidente que tinha acabado de acontecer em frente à empresa. Ali de cima não dava para distinguir nada e nem ver ninguém, havia muitas pessoas ao redor. Sentiu um arrepio na espinha, e soube na hora que algo ruim havia acontecido. Desceu rapidamente até o local, deixando a secretária e o Andreas sem entender nada com sua saída. Chegou com a ambulância, e quem estava ali caída coberta de sangue, definitivamente parecendo mais morta do que viva, era moça que havia acabado de descer de seu escritório. E as últimas palavras que ela havia ouvido, foram aquelas odiosas que ele proferiu. Nunca havia visto ninguém morto antes, muito menos morrer na sua frente, não era uma cena que se pudesse esquecer. Andreas chegou e parou ao seu lado. Impactado com a visão, colocou a mão em seu ombro, em um gesto de tentativa de conforto.

-- Abram espaço - disse um paramédico - preciso ter acesso à vítima.

O médico verificou os sinais e olhou para o outro.

-- Ela ainda tem pulso, esta viva, mas é muito grave.

Ao ouvir aquilo, João sentiu o ar voltar aos seus pulmões, ela ainda estava viva, ela ainda tinha uma chance, e ela conseguisse talvez ele também tivesse uma. Ele indicou que a levassem para o melhor hospital da cidade. E não poupou despesas no seu tratamento.

Um mês e meio depois...

João estava em seu escritório, terminando de organizar tudo para sua partida. Quando Andreas entra com uma leve batida na porta.

-- Estou quase terminando de resolver o que é essencial daqui. Mas não se esqueça, vou estar sempre de olho no computador e no celular. Vou fazer alguns turnos de serviço, só não vou conseguir cumprir horário. – Lembrou João.

-- Eu sei, eu sei! Já está tudo certo, quanto ao esquema de trabalho, já definimos bem. E quanto a casa já está tudo pronto?

-- Sim, nem tinha muito que arrumar, nessa situação, o menos é mais como você pode imaginar. Só mandei fazer uns reparos para tornar habitável o lugar. Ela estava há muito tempo vazia pelo que parecia. E na casa dela, já está tudo em ordem?

-- Sim, tudo foi limpo e guardamos um estoque de alimentos na geladeira e nos armários, ela não vai precisar se preocupar com nada por um bom tempo.

-- Aquela casa é terrível, quando eu estive lá fiquei horrorizado. Os móveis parece que ela conseguiu em vários locais de doação diferentes. Absolutamente nenhuma das cadeiras combina com a mesa, o sofá além de pequeno, parece muito desconfortável, e está em péssimo estado. Ela precisa dar um upgrade urgentemente.

-- Nossa, eu não sei se você tem noção do quanto parece soberbo falando assim. Não sei se você já se inteirou da história dela, mas para uma menina órfã, sem família que cresceu em um abrigo, até que eu acho que ela está indo muito bem. As pessoas vivem em realidades diferentes, e principalmente, realidades muito diferentes da sua. E se vai mesmo levar isso tudo adiante, é melhor ir assimilando isso, porque nessa sua brincadeirinha, vai ver e ouvir muitas coisas, que podem ser um choque de realidade.

João passou as mãos na cabeça, como um gesto de reflexão.

-- Eu sei, eu sei. Às vezes eu penso, onde é que eu estou com a cabeça? Mas, ao mesmo tempo, não tem outra coisa que eu possa fazer.

Andreas não pode evitar um leve sorriso.

Sim, imagino. Ainda não acredito que você, o poderoso João Vicente, vai se prestar a isso. Fazer cosplay de pobre do subúrbio, trocar a BMW por um Pálio 2005. Abandonar os melhores restaurantes para comer um PF no bar da esquina.

- Pois pode acreditar, você está olhando para o mais novo morador da Vila Madalena. Um rapaz muito humilde, que ganha pouco, mas honestamente.

- Eu ainda acho isso muito drástico. É uma loucura todo esse esquema que você montou. Eu sei que se sente culpado, mas já fez o suficiente, muito mais que o suficiente, na verdade. Pagou todo o tratamento dela no melhor hospital, os mais capacitados médicos especialistas. Fora a indenização generosíssima, e o salário auxílio-doença, que ela vai receber por bastante tempo. Ela já está bem, João, ela sobreviveu, esta pronta para recomeçar.

João ponderou pensativo, antes de responder, como se passasse um filme em sua cabeça.

- Na hora que eu soube que ela estava viva, senti a maior sensação de alívio da minha vida. Mas ver ela todo aquele tempo em coma, sem saber se ia se recuperar, e o pior, sozinha. Não tinha ninguém ao seu lado, por que ela simplesmente não tem ninguém na vida? E agora ela vai sair do hospital, sem lembrar de tudo que aconteceu no último mês, como consequência do coma. Ela vai continuar sozinha, sem nenhuma rede de apoio. O Tempo que ela ficou em coma, quando eu ia visitá-la, eu podia sentir a sua fragilidade, e, simultaneamente, a força que ela estava fazendo para sobreviver. Sabia que eu era a única pessoa que a visitava? Eu simplesmente não posso deixar isso acontecer, eu quase acabei com a vida daquela garota. Você pode insistir que não, mas o acidente foi, sim, minha culpa. E agora, a única coisa que eu posso fazer que irá fazer alguma diferença na vida dela é ser uma rede de apoio. Isso o meu dinheiro não vai conseguir comprar, isso, eu mesmo tenho que fazer.

- Tah! E o que você planeja ser além do novo vizinho?

João ponderou por um momento e respondeu:

- Vou começar sendo o vizinho, ficando de olho nela, caso precise de algo. E daí quem sabe possa me tornar um amigo. Você sabe que eu sou ótimo em conseguir o que eu quero.

- Sim, mas cuidado para não ser descoberto nesse meio tempo. Eu ainda não acredito na vida que você montou enquanto ela dormia. Se ela descobrir, também vai ser difícil para ela acreditar, e eu realmente não sei como ela reagiria, se descobrisse quem o vizinho realmente é.

- Então, meu amigo, hora de pagar para ver, porque hoje ela vai para casa. Inclusive, achei que você fosse o enviado da empresa que esta prestando assistência a ela. E já está quase atrasado para buscar a Maria do Céu. Anda logo Andreas, e saiba que vai ser sempre um prazer fingir que não te conheço.

Andreas saiu em meio a risadas.

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