Que cena inacreditável, ele nunca havia perdido o controle assim, não na frente dos funcionários. Mas hoje, depois de uma das piores visitas sem aviso do seu pai, aquela garota tinha que ter entrado daquela forma na sala. Tinha pavor de pessoas incompetentes. Era muito simples, cada um tinha suas funções e obrigações, para o escritório funcionar como um relógio. As coisas não podiam sair dos trilhos. Muito provavelmente, ele havia exagerado ao acusar a mulher de espionagem, mas isso também não era nada incomum, ainda mais na sua área. O pai tinha um dom de tirar ele do sério, depois da aposentadoria havia virado um sumidor de dinheiro. Não havia limites paro o cartão de crédito da esposa jovenzinha. Os negócios iam bem, mas uma bolsa de quintos mil por mês, era um tanto quanto exagerado. A mulher nem fazia questão de dissimular a ganância.
João foi para a janela, tentando desanuviar a cabeça após a cena digna de novela, quando viu o acidente que tinha acabado de acontecer em frente à empresa. Ali de cima não dava para distinguir nada e nem ver ninguém, havia muitas pessoas ao redor. Sentiu um arrepio na espinha, e soube na hora que algo ruim havia acontecido. Desceu rapidamente até o local, deixando a secretária e o Andreas sem entender nada com sua saída. Chegou com a ambulância, e quem estava ali caída coberta de sangue, definitivamente parecendo mais morta do que viva, era moça que havia acabado de descer de seu escritório. E as últimas palavras que ela havia ouvido, foram aquelas odiosas que ele proferiu. Nunca havia visto ninguém morto antes, muito menos morrer na sua frente, não era uma cena que se pudesse esquecer. Andreas chegou e parou ao seu lado. Impactado com a visão, colocou a mão em seu ombro, em um gesto de tentativa de conforto.
-- Abram espaço - disse um paramédico - preciso ter acesso à vítima.
O médico verificou os sinais e olhou para o outro.
-- Ela ainda tem pulso, esta viva, mas é muito grave.
Ao ouvir aquilo, João sentiu o ar voltar aos seus pulmões, ela ainda estava viva, ela ainda tinha uma chance, e ela conseguisse talvez ele também tivesse uma. Ele indicou que a levassem para o melhor hospital da cidade. E não poupou despesas no seu tratamento.
Um mês e meio depois...
João estava em seu escritório, terminando de organizar tudo para sua partida. Quando Andreas entra com uma leve batida na porta.
-- Estou quase terminando de resolver o que é essencial daqui. Mas não se esqueça, vou estar sempre de olho no computador e no celular. Vou fazer alguns turnos de serviço, só não vou conseguir cumprir horário. – Lembrou João.
-- Eu sei, eu sei! Já está tudo certo, quanto ao esquema de trabalho, já definimos bem. E quanto a casa já está tudo pronto?
-- Sim, nem tinha muito que arrumar, nessa situação, o menos é mais como você pode imaginar. Só mandei fazer uns reparos para tornar habitável o lugar. Ela estava há muito tempo vazia pelo que parecia. E na casa dela, já está tudo em ordem?
-- Sim, tudo foi limpo e guardamos um estoque de alimentos na geladeira e nos armários, ela não vai precisar se preocupar com nada por um bom tempo.
-- Aquela casa é terrível, quando eu estive lá fiquei horrorizado. Os móveis parece que ela conseguiu em vários locais de doação diferentes. Absolutamente nenhuma das cadeiras combina com a mesa, o sofá além de pequeno, parece muito desconfortável, e está em péssimo estado. Ela precisa dar um upgrade urgentemente.
-- Nossa, eu não sei se você tem noção do quanto parece soberbo falando assim. Não sei se você já se inteirou da história dela, mas para uma menina órfã, sem família que cresceu em um abrigo, até que eu acho que ela está indo muito bem. As pessoas vivem em realidades diferentes, e principalmente, realidades muito diferentes da sua. E se vai mesmo levar isso tudo adiante, é melhor ir assimilando isso, porque nessa sua brincadeirinha, vai ver e ouvir muitas coisas, que podem ser um choque de realidade.
João passou as mãos na cabeça, como um gesto de reflexão.
-- Eu sei, eu sei. Às vezes eu penso, onde é que eu estou com a cabeça? Mas, ao mesmo tempo, não tem outra coisa que eu possa fazer.
Andreas não pode evitar um leve sorriso.
Sim, imagino. Ainda não acredito que você, o poderoso João Vicente, vai se prestar a isso. Fazer cosplay de pobre do subúrbio, trocar a BMW por um Pálio 2005. Abandonar os melhores restaurantes para comer um PF no bar da esquina.
- Pois pode acreditar, você está olhando para o mais novo morador da Vila Madalena. Um rapaz muito humilde, que ganha pouco, mas honestamente.
- Eu ainda acho isso muito drástico. É uma loucura todo esse esquema que você montou. Eu sei que se sente culpado, mas já fez o suficiente, muito mais que o suficiente, na verdade. Pagou todo o tratamento dela no melhor hospital, os mais capacitados médicos especialistas. Fora a indenização generosíssima, e o salário auxílio-doença, que ela vai receber por bastante tempo. Ela já está bem, João, ela sobreviveu, esta pronta para recomeçar.
João ponderou pensativo, antes de responder, como se passasse um filme em sua cabeça.
- Na hora que eu soube que ela estava viva, senti a maior sensação de alívio da minha vida. Mas ver ela todo aquele tempo em coma, sem saber se ia se recuperar, e o pior, sozinha. Não tinha ninguém ao seu lado, por que ela simplesmente não tem ninguém na vida? E agora ela vai sair do hospital, sem lembrar de tudo que aconteceu no último mês, como consequência do coma. Ela vai continuar sozinha, sem nenhuma rede de apoio. O Tempo que ela ficou em coma, quando eu ia visitá-la, eu podia sentir a sua fragilidade, e, simultaneamente, a força que ela estava fazendo para sobreviver. Sabia que eu era a única pessoa que a visitava? Eu simplesmente não posso deixar isso acontecer, eu quase acabei com a vida daquela garota. Você pode insistir que não, mas o acidente foi, sim, minha culpa. E agora, a única coisa que eu posso fazer que irá fazer alguma diferença na vida dela é ser uma rede de apoio. Isso o meu dinheiro não vai conseguir comprar, isso, eu mesmo tenho que fazer.
- Tah! E o que você planeja ser além do novo vizinho?
João ponderou por um momento e respondeu:
- Vou começar sendo o vizinho, ficando de olho nela, caso precise de algo. E daí quem sabe possa me tornar um amigo. Você sabe que eu sou ótimo em conseguir o que eu quero.
- Sim, mas cuidado para não ser descoberto nesse meio tempo. Eu ainda não acredito na vida que você montou enquanto ela dormia. Se ela descobrir, também vai ser difícil para ela acreditar, e eu realmente não sei como ela reagiria, se descobrisse quem o vizinho realmente é.
- Então, meu amigo, hora de pagar para ver, porque hoje ela vai para casa. Inclusive, achei que você fosse o enviado da empresa que esta prestando assistência a ela. E já está quase atrasado para buscar a Maria do Céu. Anda logo Andreas, e saiba que vai ser sempre um prazer fingir que não te conheço.
Andreas saiu em meio a risadas.
Maria do Céu acordou em um luxuoso quarto de hospital, sem saber onde estava, e como havia ido parar ali. Não se lembrava do acidente e nem de nada do último mês que o antecedeu. Dormiu e acordou várias vezes, sem saber quantos dias haviam se passado. Quando conseguiu se manter acordada, percebeu haver uma enfermeira no quarto, trocando a medicação.- Onde eu estou? O que aconteceu?- Olá, você sofreu um acidente, o médico vai saber te explicar melhor o acontecido, ele já vem em seguida. - Assim que a enfermeira saiu do quarto, Maria não teve outra alternativa a não ser esperar.- Olá dona Maria do Céu, finalmente voltou para gente. Você sabe por que esta aqui?- Não. A enfermeira falou que foi um acidente, mas de que tipo?- Acidente de carro, quando você estava saindo do trabalho. Você ficou em coma por um mês e faz uns três dias que esta assim, dormindo e acordando.- Então foi muito grave?- Sim, mas agora está tudo bem, dentro de alguns dias, creio que poderá ir para casa. - Sent
João pegou o telefone discou o número do Andreas. Que atende depois de alguns toques.- Finalmente atendeu.- Eu estava trabalhando, lembra como é?- Engraçado você, eu estou morrendo de tédio por aqui.- Ué, e como vão às coisas com a vizinha?- Não vão! Já fazem três dias que ela voltou pra casa e só vi ela uma vez. Não sei o que essa mulher tanto faz dentro de casa. Não consigo nem uma brecha para me aproximar.- Já tentou bater na porta?- Pra dizer o que? Também não posso soar muito forçado. Ela vai pedir uma medida protetiva desse jeito. Pior que nem grama as casas tem, sei lá eu pensei que eu podia cortar a minha e me oferecer para cortar a dela.Andrea soltou uma gargalhada no outro lado da linha.- Por acaso você sabe cortar grama João Vicente?- Não! Mas meu amigo, hoje em dia não existe nada que você não aprenda no youtube.- Eu ainda acho que seria muito trabalho.- De qualquer forma, não faz diferença, não tem grama nenhuma pra cortar.- Então porque você não sai, dá uma
Retornaram no meio da tarde, completamente exaustos das compras. Céu achou um lindo sofá retrátil e reclinável dos sonhos de qualquer um. Era de três lugares, mas cabia tranquilamente umas cinco pessoas sentadas próximas. Sorte que como a casa era antiga, a sua sala era bem ampla. João fez questão de sentar e até mesmo deitar em todos os modelos que viram, inclusive tecendo comentários sobre os dois terem que ficar confortáveis, para longos períodos nele. Céu não sabia mais como esconder o constrangimento, não havia como saber se todos os vendedores também estavam achando os comentários dele sugestivos, dando a entender intensos momentos românticos, ou era só culpa na sua consciência mesmo, por estar talvez, pensando mais que o desejável no assunto. Não era uma pessoa fria, mas sempre se considerou muito prática. Sexo era para ser bom, mas nem sempre era. Como não conseguia se aproximar emocionalmente das pessoas, nunca sentiu grandes atrações, a não ser pelos homens dos livros que li
João acordou com o barulho de notificações de mensagens no celular. Foi conferir e eram de Andreas. Ele o chamava para encontrá-lo às dez horas em uma cafeteria de luxo que os dois costumavam frequentar desde a faculdade. Haveria uma reunião importante com um cliente em potencial de uma grande conta e os detalhes precisavam ser acertados. A mensagem terminava com um: "Deixa de mania e usa o carro, vai acontecer mais cedo ou mais tarde."João tomou um banho, colocou uma roupa e se dirigiu ao café. Deu uma olhada para casa ao lado e constatou estar toda fechada, ela ainda deveria estar dormindo. Era perturbador pensar em como os seus pensamentos iam cada vez mais naquela direção, em como ela estava, o que estaria fazendo. Depois do acidente, ela passou a fazer uma parte sólida de seus pensamentos, mas desde que a conheceu melhor, eles estavam ficando cada vez mais intensos. Refletiu sobre isso por todo o caminho até a cafeteria, e ao chegar lá, Andreas já estava esperando por ele.-- Ve
João bateu à porta e Céu não demorou a abri-la.- Entre. — Disse ela- e foi correndo na direção da cozinha. Ele a seguiu com o embrulho que ela nem havia notado e o vinho na mão.- Desculpe, fiquei com medo que a carne virasse carvão.Nossa, pelo visto as chances deles terem que pedir comida eram grandes.Ele caminhou em direção a ela e entregou o vinho.- Olha, eu trouxe um vinho, eu não sei se você bebe, a gente não chegou a falar sobre isso. Bem, pensando agora, eu também não sei se você pode beber, se ainda está tomando algum remédio. Talvez tenha sido uma ideia ruim.- Relaxa, ta tudo bem. Eu terminei o tratamento no hospital mesmo. E, eu bebo, sim, socialmente, mas com bastante frequência.Ele achou graça no comentário e sorriu. Ela olhou para o embrulho que ele ainda carregava.- Ah, e eu estava andando pelo centro, vi isso e achei a sua cara. É um presente pela repaginação da casa.- Hum, muito obrigada. – Ela abriu o embrulho, e arregalou os olhos ao ver o quadro.- Meu Deus!
Sem entender exatamente como uma simples conversa havia se tornado uma discussão. Céu foi apagar as luzes e escovar os dentes para se deitar. Já em sua cama, seguia confusa sobre o que acontecera. Não tinha a intenção de chegar tão longe. Talvez realmente o tenha ofendido falando sobre o seu gosto para mulheres. Tinha que ser justa, não o conhecia bem, não sabia nada sobre esse aspecto de sua vida. Havia feito um julgamento apenas baseada no que via. Ele era um homem muito atraente, interessante e charmoso, por isso julgou que ele fosse superficial. Uma atitude bem preconceituosa de sua parte.A verdade é que ele nunca deu motivos para que ela o julgasse assim, muito pelo contrário, só tinha coisas boas a dizer de sua pessoa, não media esforços para ajudá-la. Talvez ela o tenha atacado por estar insegura, com alguma crise de autoestima. Quando ele sugeriu que ela era uma mulher como outra qualquer, ficou na defensiva para deixar claro que ela não ousaria se colocar como uma opção, poi
Seguiram em direção ao interior, rumo ao destino do passeio.-- Porque você não bota uma música, é um longo caminho até lá. - Céu pediu.Ele ligou o rádio e começou a tocar uma música no estilo eletrônico que estava bem na moda no momento. Quando escutaram as três próximas e eram do mesmo estilo, ela não aguentou e comentou.-- Na sua playlist só tem esse tipo de música?-- Acho que sim, por que você não gosta?-- Na verdade, eu detesto.-- Nossa, achei que você fosse uma pessoa muito eclética em relação a tudo.-- Quase tudo. Desde que eu me lembro eu odeio música eletrônica. Na minha cabeça não faz sentido nenhum. Não consigo me sentir tocada por toda essa mistura de ritmos e batidas.-- Eu nunca pensei muito sobre isso. Só gosto do ritmo. E é o que geralmente toca nos lugares que eu vou.-- E que lugares são esses?- Ele havia falado demais.-- Vários. - Respondeu simplesmente, parecendo não querer dar segmento ao assunto.-- Mas apesar de algumas preferências, para livros e filmes
João Vicente procurava sentir a água fria passar pelo seu corpo e pensar em algo que não tivesse nada a ver com ela, com o fato dela ser maravilhosa e o detalhe que os dois estavam totalmente sozinhos. Pensou na empresa, em todos os seus problemas, no pai, na mulher do pai e pronto, foi o suficiente para o carinha lá de baixo se acalmar. Ele conseguiu finalmente sair de onde estava e ir nadar com ela. Aquilo não podia estar acontecendo, todo sentido daquele plano idiota era ajudar ela, e não levá-la para cama. Uma mulher sozinha, fragilizada e sem memória. Que tipo de cretino ele seria se tentasse tirar vantagem disso? Isso era abominável até para o seu antigo eu, que não ligava muito para as outras pessoas. Percebeu que daquele momento em diante, ia ser difícil se controlar perto dela. Alguma coisa havia terminado de despertar, não conseguiria apagar da mente aquele corpo e a mulher extremamente interessante que ela era.Nadaram por um bom tempo, até que decidiram sair para comer alg