Maria Júlia
O silêncio no quarto de hospital era sufocante. O barulho dos monitores cardíacos ecoava ao fundo, misturado ao cheiro característico de medicamentos e desinfetante. Eu sentia o peso da realidade cair sobre mim como uma avalanche, esmagando qualquer esperança que tentasse surgir. "Você perdeu os movimentos das pernas." "Não podemos afirmar se a recuperação será total." "Precisamos de paciência e dedicação." As palavras do médico martelavam minha cabeça, repetindo-se como um eco implacável. Pisquei algumas vezes, sentindo o coração martelar contra o peito, como se tentasse escapar daquela prisão invisível. Tentei me mexer. Nada. Tentei mais uma vez, fechando os olhos com força, implorando silenciosamente para que fosse apenas um erro, um engano. Mas nada mudou. Meus membros inferiores estavam completamente dormentes, alheios à minha vontade. O desespero subiu pela minha garganta, queimando como fogo. — Isso é um pesadelo, né? — Minha voz saiu fraca, quase um sussurro. O Dr. Henrique, parado ao lado da cama, manteve o olhar firme e profissional. Ele parecia preparado para aquela reação, como se já tivesse ouvido essas palavras dezenas de vezes antes. — Maria Lúcia, eu sei que é difícil aceitar, mas precisamos conversar sobre o próximo passo. Seu corpo passou por um trauma severo, e ainda não temos todas as respostas. Cada caso é único. Algumas pessoas recuperam os movimentos, outras apenas parcialmente, e algumas não recuperam. Mas nosso foco, a partir de agora, deve ser a fisioterapia. Quanto antes começarmos, maiores serão as chances de recuperação. Meu coração acelerou ainda mais. — E se eu nunca mais andar? Dessa vez, o médico hesitou por um segundo antes de responder. — Não posso te prometer nada. O que posso dizer é que nosso objetivo é tentar recuperar o máximo de mobilidade possível. O corpo humano tem uma capacidade incrível de adaptação, e o primeiro passo é não perder a esperança. Respirei fundo, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam transbordar. Minha vida inteira, minha rotina, meus sonhos… tudo parecia ter sido arrancado de mim em um único instante. Senti a mão quente de Ronaldo apertando a minha. — Maria Lúcia, não importa o que aconteça, eu estou aqui. Vamos passar por isso juntos. Você me salvou, amor. Agora sou eu quem vai cuidar de você. Olhei para ele, buscando conforto em suas palavras. Ele parecia sincero. Seus olhos estavam vermelhos, fundos, carregados de emoções que eu não conseguia decifrar completamente. — Ronaldo… eu não sei como fazer isso. Eu não sei viver assim. Ele levou a minha mão até os lábios e a beijou com delicadeza. — Você não está sozinha. Eu prometo que vamos enfrentar tudo juntos. O Dr. Henrique observava a cena com paciência antes de continuar. — Maria Lúcia, além da fisioterapia, precisamos conversar sobre a adaptação ao seu novo momento. A casa de vocês é acessível para alguém com mobilidade reduzida? Ronaldo passou a mão pelo rosto, parecendo cansado. — Não… não exatamente. Nosso apartamento tem elevador, mas dentro de casa temos escadas… o banheiro é pequeno, a cama é alta… Senti um aperto no peito. Minha própria casa, onde eu sempre me senti segura, agora se tornava um obstáculo. O médico assentiu. — Isso precisa ser resolvido. A adaptação do ambiente será fundamental para sua qualidade de vida. Rampas, portas mais largas, barras de apoio no banheiro… todas essas mudanças serão necessárias para que você tenha mais independência. Respirei fundo. — Eu não quero depender de ninguém para tudo. Ronaldo se adiantou, segurando meu rosto entre as mãos. — Você não vai depender. Nós vamos dar um jeito. Vamos adaptar tudo. Eu já vou começar a ver isso agora mesmo. Percebi o tom de urgência na voz dele. Ronaldo queria estar ali por mim, queria me ajudar, mas será que ele estava pronto para essa responsabilidade? O médico olhou para os dois antes de continuar. — Além da adaptação da casa, Maria Lúcia, vamos precisar iniciar um programa de reabilitação intensivo. Você fará fisioterapia todos os dias. Precisamos fortalecer os músculos que ainda estão ativos e trabalhar sua nova forma de locomoção. Mordi o lábio inferior, sentindo a insegurança crescer dentro de mim. — Isso quer dizer que eu vou precisar de uma cadeira de rodas? O médico assentiu. — Sim. E também de um profissional que te acompanhe nesse período de transição. Sei que pode parecer assustador agora, mas muitas pessoas passam por isso e conseguem ter vidas completamente independentes. O primeiro passo é aceitar que algumas mudanças precisarão acontecer. Olhei para Ronaldo novamente. — E você? Você acha que consegue lidar com isso? Ronaldo não hesitou. — Sim. Eu juro que sim. Ele respirou fundo antes de continuar. — Maria Lúcia, você se jogou na frente de um carro por mim. Você arriscou sua vida para me salvar. Quem faz isso? Quem ama tanto assim? O que você fez… ninguém faria. Eu nunca vou te abandonar. Eu nunca vou deixar você passar por isso sozinha. Eu queria acreditar. Queria confiar em cada palavra. Mas, no fundo, um medo começou a crescer dentro de mim. O que aconteceria quando a rotina ficasse mais difícil? Quando os dias se tornassem exaustivos? Quando as dificuldades surgissem? Ele ainda estaria ali? Eu não sabia. E esse era o meu maior medo.O hospital parecia cada vez mais distante à medida que o carro avançava pela estrada. O céu estava nublado, e o vento frio batia contra o vidro do carro. O cheiro familiar de casa parecia ser o único alívio para Maria Júlia, mas, à medida que se aproximavam de seu apartamento, ela sabia que a vida como conhecia não seria mais a mesma.O elevador do prédio foi uma bênção. Ronaldo pressionou o botão com uma expressão tensa, mas Maria Júlia percebeu que ele tentava manter a calma por ela. O som da porta do elevador se fechando ecoou pelo corredor silencioso, e a sensação de estar indo para casa não trazia o conforto que ela imaginara.— Aqui estamos. — Ronaldo disse, tentando dar um sorriso reconfortante enquanto observava o rosto de Maria Júlia, pálido e cansado.Maria Júlia olhou para o apartamento imenso que os aguardava. Ela nunca imaginou que esse lugar, que tanto representava conforto e segurança, agora fosse o cenário de sua maior luta. Ela estava na cadeira de rodas, mas sabia qu
A noite estava mais fria do que o normal. O silêncio no apartamento parecia mais pesado à medida que a escuridão se espalhava. Maria Júlia se sentia exausta. Não só fisicamente, mas emocionalmente também. Cada movimento, cada ajuste na cadeira de rodas, parecia um lembrete cruel de sua nova realidade.Ronaldo, sempre atencioso, tinha sido o pilar sobre o qual ela se apoiava. Ele a ajudava com tudo. Desde o momento em que saíram do hospital, ele fez questão de garantir que ela estivesse confortável, mesmo que estivesse se perdendo um pouco em seu próprio desespero.Agora, ali, na cama do quarto, Maria Júlia sentia seu corpo relaxar com o remédio para a dor. Ela sabia que estava cansada demais para reagir, para enfrentar mais uma noite de medos e incertezas. Seus olhos estavam pesados, e ela sabia que logo cairia no sono, mas, antes disso, sentiu Ronaldo ajeitando o travesseiro atrás de sua cabeça, ajeitando o cobertor sobre suas pernas, tentando suavizar os desconfortos de sua nova vid
A primeira semana após o acidente passou em um borrão de emoções conflitantes. A dor física que Maria Júlia sentia não era a única que a consumia. Sua mente estava cheia de incertezas, e o vazio que crescia entre ela e Ronaldo parecia maior a cada dia. Ele a olhava com carinho, mas algo estava diferente. O que antes era uma atenção constante se transformou em gestos rápidos e distraídos, como se ele estivesse sempre pensando em algo mais importante.Era difícil para ela expressar isso, porque ele ainda estava ali. Ainda cuidava dela de uma forma que tentava ser reconfortante. Mas as pequenas mudanças estavam começando a se acumular, e Maria Júlia não podia mais ignorá-las.Nos primeiros dias, ele estava sempre ao seu lado, ajudando-a com a cadeira de rodas, certificando-se de que ela estava confortável. Mas, com o passar do tempo, ele começou a se afastar mais e mais. Ele voltava ao trabalho, tentava retomar a rotina, mas Maria Júlia podia sentir que a conexão entre eles estava se des
Maria Júlia estava sentada na cama, o telefone em suas mãos, hesitando. Sua mente estava cheia de pensamentos desconexos e sua angústia parecia insuportável. O que estava acontecendo com ela? Com o relacionamento dela e Ronaldo? A distância entre eles só aumentava, e a dúvida que se enraizava em seu coração não a deixava em paz. Ela olhou para a tela do celular, respirou fundo e pressionou o número de Mariana, sua irmã mais nova, com quem ela sempre podia contar.O telefone tocou algumas vezes antes de Mariana atender com sua voz animada, algo que Maria Júlia quase não reconheceu naquele momento.— Oi, mana! Como você tá? — Mariana parecia animada, mas Maria Júlia sabia que sua irmã não fazia ideia do turbilhão emocional que a consumia.— Mariana... — Maria Júlia se forçou a falar, mas sua voz falhou um pouco, e ela precisou de um segundo para se recompor. — Eu... eu preciso conversar com você.Mariana percebeu a mudança de tom e a preocupação na voz de Maria Júlia. Instantaneamente,
Mariana saiu do carro e caminhou até o prédio da irmã com passos firmes. Ela havia dito que viria no dia seguinte, mas a inquietação não a deixou dormir. Algo dentro dela gritava que Maria Júlia precisava dela agora.Quando chegou à portaria, não anunciou sua chegada. O porteiro já a conhecia e não questionou quando ela passou direto, subindo pelo elevador até o apartamento de Maria Júlia e Ronaldo.Ao chegar à porta, Mariana notou que ela estava apenas encostada. Seu coração acelerou, uma sensação estranha se espalhou por seu corpo. Com cuidado, ela empurrou a porta e entrou silenciosamente. Foi então que ouviu um barulho vindo do quarto. Risadas. Sussurros.Seus olhos se estreitaram, e ela caminhou em direção ao som, sentindo o sangue ferver em suas veias.Quando empurrou a porta do quarto, a cena que viu a deixou incrédula.Ronaldo estava na cama, sem camisa, e sobre ele estava Juliana, a melhor amiga de Maria Júlia. Eles riam, trocando carícias como se nada mais no mundo existisse
Juliana Sempre fui uma mulher ambiciosa. Desde nova, eu soube que se eu não corresse atrás, ninguém faria nada por mim. Eu não nasci rica, não tive oportunidades, e tudo que consegui até hoje foi porque soube me adaptar. Quando comecei a trabalhar como secretária do Ronaldo, vi nele um homem poderoso, respeitado e, principalmente, um homem que poderia me abrir portas. Mas, no início, não passava disso. Eu o respeitava, e ele me tratava apenas como sua funcionária. Só que com o tempo... as coisas mudaram. Notei quando ele começou a me olhar diferente. No começo, fingi que não percebia, mas lá no fundo, eu sabia que aquilo poderia ser a minha chance de sair do buraco em que eu estava. Foi sutil. Primeiro, pequenas conversas no final do expediente. Depois, saídas inofensivas para um happy hour depois do trabalho. Ele me contava sobre o estresse de ser casado, sobre como Maria Júlia era grudenta, sobre como ele
Ronaldo Meu nome é Ronaldo Albuquerque. Tenho 42 anos e sou CEO da Albuquerque Empreendimentos, uma das maiores incorporadoras do país. Sou um homem de negócios, um estrategista nato, e tudo que tenho hoje não veio por acaso. Dinheiro, poder, influência... Eu conquistei tudo isso. Ou melhor, quase tudo. Porque, no começo, não fui eu que construiu esse império do zero. O capital inicial veio de outra pessoa. Maria Júlia. Minha esposa — ou melhor, minha ex-esposa. No início, eu realmente gostava dela. Maria Júlia era uma mulher bonita, educada, vinha de uma família rica e tinha tudo para ser a esposa perfeita. Quando nos casamos, eu estava apenas começando a construir minha empresa, e o dinheiro dela foi essencial para impulsionar meus negócios. Ela nunca se importou com isso. Era ingênua, achava que estávamos construindo uma vida juntos, que éramos um casal feliz.<
Mariana O caminho para casa foi silencioso. Maria Júlia estava destruída. Eu dirigia com os dedos apertando o volante, meu coração cheio de raiva. Como aquele desgraçado teve coragem de fazer isso com minha irmã? Como Juliana, a melhor amiga dela, conseguiu trair assim? Quando estacionei em frente à minha casa, olhei para o lado e vi Maria Júlia com o rosto molhado de lágrimas, os olhos vazios. — Vamos entrar, Maju — falei suavemente, tentando não transparecer toda a raiva que fervia dentro de mim. Ela assentiu sem dizer nada. Mal conseguia se mexer com a cadeira de rodas, e isso me destruiu por dentro. Ajudei-a a subir o pequeno degrau da entrada, empurrando a cadeira para dentro de casa. — Você precisa tomar um banho. Vai se sentir melhor. Ela não respondeu, apenas me olhou como se não tivesse forças nem para conte