A diretora continuava a segurar o meu braço e eu percebi que ela começou a me olhar mais ainda. Foi nesse momento que ela viu umas manchas na minha pele. Eram manchas de picadas de pulga. Eu fiquei com muita vergonha porque ela poderia pensar que eu não tomava banho direito e que eu não era nada higiênica, porque seria a única explicação para eu ter pulgas.
- Ana, você está com várias picadas, precisamos tratar isso. Vocês têm cachorro na casa de vocês? Podem estar com uma infestação.
- A mamãe já cuidou desse assunto, diretora Carmem. Nós temos o tito e acho que como eu brinco muito com ele, as pulgas podem ter me picado em algum momento, mas tá tudo bem, eu nem sinto nada.
- Ana, eu acho que preciso conversar com a sua mãe. Ela trabalha o dia inteiro? Você fica sozinha em casa? Tem alguém que faz essas coisas com você?
- Não, diretora Carmem, não precisa chamar a mamãe. Ela trabalha muito e eu estou bem. Eu vou tomar mais cuidado brincando e vou tomar banho melhor. Não se preocupe e por favor, não chame a mamãe para falar sobre essas coisas, ela fica muito preocupada e é capaz de nem ir mais trabalhar para ficar comigo, e a gente precisa muito do dinheiro que ela recebe no emprego dela. Só tem ela para nos sustentar...!
A diretora ficou um tempo me olhando e parecia analisar a situação. Ela não poderia falar com Lúcia sob nenhuma hipótese.
Eu tive muito medo que mamãe me tirasse da escola. Que a diretora Carmem fosse falar com ela e sentisse que eu estava falando demais e que seria um aborrecimento a mais para ela. Fiquei com medo de apanhar mais do que eu já apanhava. Eu imploraria para a diretora Carmem se fosse preciso para que ela não falasse com mamãe. Mas eu pensei que ela iria falar mesmo assim, porque se ela pensava que havia alguém fazendo maldades comigo, ela teria que falar com minha mãe. Mas por algum motivo, depois de muitos minutos calada, a diretora Carmem me soltou, olhou nos meus olhos e disse:
- Tudo bem, Ana, eu não vou falar com sua mãe porque escolho acreditar no que você me fala, mas eu vou lhe ajudar a tratar dessas pulgas e desses machucados, tudo bem? Vou pegar uma pomada que tem na enfermaria e você vai tomar um remédio de verme, você já tomou?
- Eu nunca tomei nenhum remédio...
- Vamos lá com a enfermeira Nara para que ela possa dar uma olhada em você.
A diretora Carmem me levou até a enfermaria, eu nunca tinha ido lá. Ela passou um tempo conversando com a enfermeira Nara, que era uma mulher bem grande, gorda, que tinha os cabelos enrolados e bem compridos, mas viviam bem amarrados em um coque. Ela tinha o sorriso bonito, mas acho que a maioria das crianças tinham medo dela.
A enfermeira Nara começou a me olhar e nesse momento a diretora Carmem fez o sinal para que eu me aproximasse mais delas.
A enfermeira Nara me olhou por algum tempo. Pediu licença para me tocar e disse:
- Acho que o remédio de verme vai ajudar até para a questão dos piolhos dela, porque ela parece ter também. Você tem quantos anos?
- Acho que tenho 9 anos.
- Como assim você acha?
- Desculpe, eu tenho 9 anos mesmo.
- Certo e você pesa quanto?
- Eu não sei...
- Suba ali na balança e vamos ver.
Eu nunca tinha visto uma balança. Subi nela e apontou que eu pesava 23 quilos.
- Você está realmente bem magra, mais magra do que eu pensei que estaria, porque você é alta. Talvez esteja anêmica também. Venha até aqui que vou medir sua altura.
A enfermeira Nara me levou até uma parede que tinha uns números pequenos escritos em um papel que parecia estar grudado, e ela disse:
- É, ela está bem abaixo do peso. Ela tem 1,40 cm de altura e está com o peso de uma criança de 7 anos de idade. Vamos precisar fazer exames de sangue.
- O que é exame de sangue?
- Você nunca fez um? - a enfermeira perguntou.
- Acho que não.
Nesse momento a diretora e a enfermeira se olharam e eu não consegui o ouvir o que elas diziam, porque elas haviam me deixado sentada na cadeira de frente para a mesinha da enfermeira, e eu achei que deveria ficar lá. Eu nunca me mexia se não me dissessem que eu podia, porque era isso o que Lúcia fazia comigo. Lúcia sempre fez isso comigo desde que eu era muito nova. Sempre que ela me dizia para ficar sentada ou parada em qualquer lugar, mesmo que eu quisesse ir no banheiro, ou sentisse fome, ela dizia que eu devia continuar no lugar que ela mandou. Quando eu me mexia ela me batia.
- Essa garota é negligenciada, você sabe, né, Carmem? - Disse Nara.
- Eu suspeito que sim, mas tenho medo de denunciar e não fazerem nada, ou acontecer o que ocorreu com aquele último aluno que denunciamos, você lembra?
- O menino Mauricio? Lembro sim, coitadinho.
- Pois é, então eu quero agir com precaução por enquanto. A mãe dela não parece ser uma pessoa ruim, mas não posso dizer confirmar nada, porque não a conheço. Mas tenho receio de denunciar novamente e o conselho tutelar fazer a mesma coisa que fez com Mauricio.
- Você nunca mais teve notícias dele?
- Não, nunca mais ninguém ouviu falar dele. Pedi que o Robson, um de nossos funcionários fosse verificar se conseguia informações dele e da família, mas ele disse que não encontrou mais o menino e que a família não quis falar com ele. A única coisa que ele conseguiu foi o que uma vizinha deles disse, que a madrasta de Mauricio disse para ela, em uma das conversas que elas tiveram, que o pai dele havia mandado ele ir morar com a mãe.
- Se for verdade talvez tenha sido melhor para ele, porque até com o braço quebrado ele chegou aqui.
- Verdade, mas infelizmente eu não acredito que tenha acontecido isso. Eu nem gosto de pensar no que pode ter acontecido com aquela criança. Infelizmente não confio mais no conselho tutelar e não quero que a situação de Ana piore. Então vamos tentar ajudá-la da melhor forma que pudermos, até onde pudermos, é claro.
- Tudo bem. Eu vou verificar o cartão vacinal dela, que acredito que ela não tenha e eu posso verificar se conseguimos fazer um exame de sangue nela para confirmar essa anemia. Mas você sabe como vamos ter de fazer isso, Carmem. Você sabe que não temos autoridade para fazer isso sem a autorização dos responsáveis. Então vamos ter que entrar em contato com Alexandre novamente.
Alexandre era um dos médicos que trabalhavam no hospital que Nara havia trabalhado no começo de sua carreira, há muitos anos atrás. Ele fazia parte de um grupo de profissionais da saúde que se disponibilizavam a ajudar crianças carentes e algumas vezes ele ajudava a diretora Carmem quando ela precisava. Ele gostava muito de Nara e havia sido um dos que mais a incentivou. Eles nunca perderam o contato e foi ele quem indicou Nara para aquele colégio. Foi assim que ele conheceu Carmem.
Todos eram mais jovens quando se conheceram e tinham a ideia de que conseguiriam ajudar a todos que precisassem, mas o que eles viram era pior do que eles poderiam imaginar. A quantidade de crianças que eram abusadas fisicamente eram enormes e a justiça falhava na grande maioria das vezes. Eles perceberam que o problema, na maioria dos casos, eram os próprios pais, então eles passaram a tentar ajudar algumas crianças de uma forma que não fosse necessária ter a permissão dos pais.
Mauricio era um aluno que tinha 13 anos de idade e era novo no colégio, pois ele morava com a mãe antes. Pelo menos foi isso o que a madrasta havia falado quando ela foi matriculá-lo. Ela disse que a mãe no menino estava muito doente e não era mais capaz de cuidar do filho, então ele teve de ir morar com eles, por isso ele estava mudando de colégio no meio do ano.Carmem gostou muito de Mauricio desde que o conheceu. Ele era um menino muito educado e muito inteligente. Ele parecia não se encaixar naquele lugar. Não demorou muito para que ele começasse a faltar muitas aulas e quando aparecia, aparecia com vários roxos nos braços e até mesmo no rosto. Carmem sabia que aquilo era violência física. Com o tempo ela conseguiu fazer com
Alguns dias depois da enfermeira Nara e da diretora Carmem disserem que em breve eu iria ser consultada por um médico, ele realmente apareceu.Desde o dia que eu conheci a enfermeira Nara, eu passei a ir todos os dias na sala da enfermaria e ela me dava o que dizia ser vitaminas. Tinha uma que ela dizia que era vitamina C e não sei mais quais outras. E ela me deu um remédio que ela disse que era para me livrar dos vermes. Eu não sabia para o que servia nada, mas eu sempre pensei que fosse para o meu bem. Me sentia feliz, porque eu sentia que ela cuidava de mim.Até que chegou o dia em que eu conheci o doutor Alexandre. Ele já era um senhor quando o conheci. Branco, baixinho, já tinha algumas rugas, mas t
Assim que chegamos na sala, a diretora Carmem se sentou na cadeira dela, que ficava atrás da mesa enorme que ela tinha e me disse que sentasse na cadeira em frente a ela. Geralmente não era lá que eu me sentava. Achei até que eu tivesse feito algo de errado, porque ela estava muito séria. Mas aí ela começou a falar:- Ana, eu já atendi diversos alunos aqui. Conheci muitas crianças e muitas famílias. Já vi muitos casos ruins e difíceis. Eu não estaria ajudando você se eu não percebesse que é o que você realmente quer e se eu não pensasse que você precisa de algum tipo de ajuda. Mas eu vejo que você precisa. Vejo em você uma menina muito inteligente e esperta, que está correndo atr&aacut
No final daquele dia, eu encontrei o Davi na saída da aula.- Oi Ana. A gente quase não tem conseguido brincar esses dias.- É, Davi, porque eu estou estudando todos os dias após a aula.- Você já aprendeu bastante coisa?- Acho que sim. A professora Maria Auxiliadora e a diretora Carmem dizem que eu aprendo muito rápido, e que no final do ano eu farei uma prova para ver se poderei ir para a sua turma no ano que vem.
- Parabéns, Ana. - Disse a professora Maria. - Você acertou todas as questões. Estamos impressionadas com você. Sempre soubemos que você era muito inteligente, mas você nos surpreendeu.- Obrigada, professora Maria.- Eu sabia que você não nos decepcionaria, Ana. Isso foi resultado apenas de seu esforço e agora, ano que vem você irá para a turma dos alunos que tem a sua idade. Gostaria de lhe dar um presente, se você quiser, é claro.- Poxa, obrigada, diretora Carmem.A diretora Carmem me deu um presente que estava embrulhado em um papel tão bonito. Eu fiquei até com pena de rasgar. F
Antes do seu Carlos, as vezes, apareciam alguns homens em casa. Ela também me fazia esperar do lado de fora quando eles visitavam ela.Teve um desses homens, que eu lembro até hoje o nome. Era o João. Ele parecia ser mais jovem que mamãe. Todos os meses, em março, mamãe comprava um bolo de aniversário, mas nunca comia. Mas no ano em que ela era amiga do João, ele levou um bolo para ela e ela comeu. Foi o ano que eu menos apanhei e que ela mais me chamou pelo nome.Eu gostava muito do João. Ele me deu alguns brinquedos e algumas roupas que ele dizia que não eram novas, mas eu gostava mesmo assim.
Hugo recolheu Lúcia das ruas quando ela tinha cerca de 16 anos de idade, mas não foi por pena. Ele recolhia meninas e meninos menores de idade para que eles pudessem vender droga para ele. Ele tinha um barraco no morro onde haviam vários menores de idade e ela os recompensava com comida e abrigo. Lúcia não achou aquilo nada ruim, porque era melhor do que estar na rua e lá era não sofria nenhum tipo de abuso.Lúcia aprendeu a usar o seu corpo para conseguir coisas que queria, mas não era algo que a agrava muito, mas ela não tinha outra fonte de renda. Nunca foi para escola, então seu futuro era muito incerto.
Eu passei a gostar muito de ciência. Era um assunto que eu poderia ficar horas estudando e lendo sobre.- Você está se saindo muito bem nessa matéria, Ana. Quer dizer, você está se saindo muito bem em todas as matérias, mas em ciências você demonstra ser muito hábil. A professora sempre a elogia e diz que você apresenta os melhores trabalhos.- Obrigada, diretora Carmem. Eu gosto muito mesmo. Eu quero ser médica um dia, diretora Carmem e para isso eu preciso estudar muito. A professora Maria disse que é um dos cursos mais difíceis, mas se eu estudar muito eu posso conseguir.- Eu to