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As minhas primeiras semanas de aula foram bem agitadas e muito diferentes do dia a dia que eu tinha antes. Eu acordava cedo todos os dias e fazia o café para Lúcia. As vezes ela acordava de bom humor, não me batia e penteava meu cabelo. Mas na maioria dos dias ela me surrava logo de manhã cedo. Parecia que ela tinha raiva de me ver com a farda da escola. Mas eu não ligava, o que importava era que eu estava indo para o colégio e tudo parecia que passava quando eu estava lá. Eu tinha muita coisa nova aprender e todos os dias eu aprendia mais e mais.

Depois do meu primeiro mês indo para a escola, a Dona Carmem começou a me dar aulas de reforço depois das aulas.

- Você é bem inteligente, Ana. Você aprende tudo muito rápido. Sua letra já melhorou bastante.

- Obrigada, diretora Carmem. Eu preciso me esforçar para poder alcançar os alunos da minha idade e poder entrar na sala do Davi.

- Se você continuar nesse ritmo, ano que vem você já estará com eles. No final do ano a professora Maria Auxiliadora vai lhe passar uma prova e se você passar nela, você estará apta para entrar na sala dos alunos da sua idade. É só você continuar se esforçando.

- Vou sim, dona Carmem. O que é "apta"?

- Significa que você estará pronta para seguir em frente, nesse caso.

- Entendi.

- E você conhece o seu Davi Cavalcante?

- Davi de que?

- Cavalcante. É o sobrenome dele.

- Ah sim. Conheço sim. Ele é meu primeiro e único amigo.

Nesse momento eu pude ver como a diretora Carmem ficou meio triste, mas eu não entendi o porquê. Eu apenas falei a verdade. Logo em seguida ela me falou:

- Eu também sou sua amiga, Ana. Se você precisar de algo, de alguém para conversar sobre qualquer assunto que seja, você pode falar comigo, tudo bem?

Eu ainda não havia ouvido a diretora Carmem falar de forma tão mansa e delicada, mas eu gostei de ouvir aquelas palavras dela.

- Tudo bem, diretora Carmem. Obrigada.

Durantes as aulas da manhã, a minha professora Maria também parecia se dedicar um pouco mais para mim do que para os outros alunos. Eu me sentia muito bem quando estava com ela e com a diretora Carmem. Elas me tratavam tão bem e eu me senti especial pela primeira vez, porque eu só via elas tratando a mim dessa forma. Não que elas tratassem os outros alunos de forma ruim, mas elas pareciam me olhar com mais ternura e sempre tinham muita paciência para me explicar tudo o que eu perguntava, até quando eu perguntava mais de uma vez. Com a Lúcia eu não podia nem perguntar uma vez só, porque já era motivo para ela me chamar de burra e me bater.

- Ana, hoje eu vou lhe emprestar um livro para que você leia algumas páginas e no final da semana eu vou fazer umas perguntas sobre essas páginas que você leu, tudo bem?

- É como se fosse uma prova, professora Maria?

- Isso.

- Ah sim, a diretora Carmem sempre me faz várias perguntas no final de cada aula de reforço. Ela diz que é para saber se eu realmente estou aprendendo algo.

- É exatamente para isso, Ana. E eu tenho certeza que você vai conseguir passar, porque você aprende tudo muito rápido.

Depois de cerca de dois meses eu já conseguia ajudar os outros alunos da minha sala e eles até passaram a conversar comigo. As vezes eu me sentia como se fosse a irmã mais velha deles. Eu sempre quis ter irmãos, mas Lúcia nunca deixava os bebês que ela trazia para casa por muito tempo. E eu só ficava imaginando como seria ter alguém que eu pudesse chamar de irmão. Talvez a vida fosse menos solitária. O mais perto que eu tinha disso era o Davi.

Eu conversava com o Davi todos os dias e nos intervalos nós sempre comíamos juntos. Eu fiquei encantada com a quantidade de comida que tinham todos os dias e a senhora que servia a gente dizia que eu podia pegar duas vezes porque eu era bem magrinha e tinha que engordar mais. Eu repetia duas vezes todos os dias, porque dessa forma eu não sentia tanta fome na parte da noite, quando a Lúcia não queria me dar comida ou me dava muito pouco. Eu já nem pedia tanto por comida.

Na escola tinha de tudo e todos os dias as proteínas eram diferentes. Eu gostei muito de comer o feijão preto, a batata frita, até aquela batata amassada que eles faziam. Eu nunca tinha comido carne e lá na escola eu podia comer. Comia carne, frango e ovo. E tinham alguns dias que tinha até sobremesa. Na maioria das vezes eram frutas, mas as vezes, não eram todas as semanas, mas as vezes tinha um pudim. Era o dia que eu mais gostava. O Davi não gostava muito de pudim, aí ele me dava o dele.

Na hora do intervalo, depois que a gente terminava de comer, eu pedia para o Davi me mostrar os livros dele, porque eu queria ver como eram os livros que ele lia e qual eram os assuntos que ele estudava. Eu não queria perder tempo. Queria estar o mais preparada possível para no ano seguinte eu poder estar na mesma sala que ele.

O Davi me apresentou alguns de seus colegas de turma. Eram Oliver, Tobias e Larissa. Eu não gostei da Larissa quando a conheci, porque ela vivia perto do Davi. Ela falava palavras difíceis e os meninos diziam que ela era a mais inteligente da turma. O cabelo dela era alisado e ela já tinha até peito, coisa que eu demorei muito para ter. Os meninos diziam que ela era a mais bonita do colégio e que todos os meninos olhavam para ela, até os mais velhos. Ela falava comigo, mas eu não suportava falar com ela.

A Larissa também era negra, mas ela era mais clara do que eu. Acho que eu era a mais escura daquela escola inteira. Nunca vi ninguém mais escura do que eu lá. Não que fosse aluno. Tinha um rapaz da limpeza que era da minha cor. Enfim, eu acho que os pais da Larissa tinham um pouco mais de dinheiro, porque o cabelo dela era liso e ela sempre estava bem arrumada, com penteados diferentes quase todos os dias. Ela tinha uma mochila de princesa e ela parecia que sorria o tempo inteiro. Eu não sabia como alguém podia sorrir o tempo todo. Nem eu que estava muito feliz no colégio, conseguia sorrir daquele jeito. O Davi ficava meio bobo perto dela e eu sentia que ele gostava dela.

O Davi era meu melhor amigo. Ele ainda era o meu "único" amigo. Os outros que eu conhecia eram meus colegas de classe e os colegas dele, mas não eram meus amigos de verdade. A professora Maria e a diretora Carmem também diziam que eram minhas amigas, mas elas eram muito mais velhas do que eu. Era só com o Davi que eu me sentia a vontade para brincar e falar do jeito que eu era mesmo, sem precisar me importar se eu falava errado. O Davi nunca tirava onda com a minha cara e nem ria de mim. Ele me ensinava tudo o que eu pedia e eu confiava nele. Eu podia não falar sobre as coisas que mamãe fazia comigo e nem sobre o que o pai dele fez, mas sobre todo o resto eu falava e ele gostava de me escutar. Eu também gostava de escutar ele.

- Por que que você fica todo bobo quando está conversando com a Larissa?

- Ah, não sei, acho ela tão bonita e ela fica puxando assunto comigo, eu fico sem graça.

- Você não fica assim quando está conversando comigo ou com outras meninas.

- Mas é porque nenhuma das meninas é parecida com ela.

- Entendi.

- Mas você é minha melhor amiga, Ana. Eu não ia ficar nunca sem graça perto de você.

- Por que eu sou feia?

- Não, Ana, eu não te acho feia.

Eu não falei aquilo porque queria que ele se sentisse mal, mas foi assim que o Davi ficou depois que eu disse aquilo. Eu disse que eu era feia porque a Lúcia sempre me disse isso, e eu me achava feia mesmo. Mesmo que eu não gostasse da Larissa, não podia dizer que ela era feia, porque ela não era. Ela sempre estava arrumada e cheirosa. Eu nunca andava desse jeito. Mas tudo bem, eu nunca imaginei que algum menino pudesse se interessar por mim. Eu sempre via muitas meninas da minha idade com namoradinhos. Era comum que as meninas começassem a namorar cedo no morro, mas a Lúcia sempre disse que ninguém nunca ia querer nada comigo porque eu era muito feia, então eu já estava contente de poder estar perto do Davi como amiga. Já era mais do que eu imaginava que poderia ter.

Eu passei os primeiros meses do ano sempre estudando o máximo que eu conseguia. Às vezes a professora Maria ou a diretora Carmem me emprestavam livros para que eu pudesse levar para casa para conseguir estudar mais, e mesmo que a Lúcia não me deixasse ligar a luz de casa quando escurecia, eu ia para baixo do poste que tinha mais perto de casa e ficava lendo até começar a me dar sono. Tiveram algumas noites que eu dormi na porta de casa, do lado de fora, porque a Lúcia, às vezes, não me deixava entrar, eu nunca entendi o porquê e nem sei o que ela colocava atrás da porta para que eu não conseguisse entrar.

Nas noites em que Lúcia me deixava do lado de fora, eu nem ousava bater na porta e nem fazer barulho, porque da última vez que eu fiz isso ela me bateu tanto que eu achei que ela tivesse quebrado alguma costela minha, porque eu fiquei sem respirar. Acho que ela não gostava que eu fosse ler, mas eu precisava. Aí ela deixava o meu tapete lá na porta.

Não eram muitas pessoas que conseguiam ver a entrada da nossa casa, mas eu acho que algumas pessoas que me viram sim dormindo lá fora, só que nunca ninguém fez nada. Eu sentia muito frio em algumas noites e acabava me cobrindo com o tapete.

Foi por causa de dormir lá fora que eu acabei pegando pulga e num dia, quando já estavam chegando as férias de meio do ano, a diretora Carmem, em uma das aulas de reforço, viu umas manchas nos meus braços e no meu pescoço.

- Ana, o que são essas marcas no seu braço?

- Que marcas, diretora Carmem?

- Vem um pouco aqui mais perto, por favor.

Eu estava sentada na carteira que ela havia colocado na sala dela, especialmente para que eu pudesse estudar com ela lá. Me levantei e fui andando em sua direção com um pouco de vergonha. Fiquei em pé na frente dela. Ela pegou no meu braço e perguntou:

- Essas marcas aqui, Ana, o que são?

- Ah, não é nada não, diretora Carmem. Eu devo ter me batido enquanto estava brincando com meus amigos na rua de casa.

- Mas e essa marca no seu pescoço? Foi brincando que você se machucou no pescoço também?

- Acho que foi sim, diretora Carmem. Eu nem notei que estava com esses machucados.

Eu realmente não havia notado os machucados. Geralmente eram tantos que eu nem os notava. Eu sabia que não poderia dizer para a diretora o que realmente eram aqueles machucados. Só conseguia pensar que se descobrissem que era Lúcia que me batia, ela só me bateria mais ainda se alguém fosse falar algo com ela.

- Ana, você sabe que você pode me falar o que você quiser, não é?

- Sei sim, diretora Carmem.

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