2

Eu limpei as lágrimas do meu rosto, peguei minhas coisas e disse:

- Muito obrigada, seu Carlos.

E fui embora.

Eu estava tão feliz antes, mas aquilo acabou com o meu dia. Talvez fosse o que eu merecesse, porque ele não ia me dar algo de graça. Eu tinha que pagar pelo o que ele havia me feito.

Subi para casa com as minhas coisas. Fui tomar um banho e escovar meus dentes, porque eu queria muito tirar aquele gosto ruim da boca. Nem tive coragem de pedir alguma coisa para comer do seu Carlos. Não tinha nada em casa, nada que eu pudesse alcançar, pelo menos.

Depois que eu levei a surra de Lúcia, no dia que ela me disse que eu iria sim para a escola, ela disse que eu ia poder tomar banho com sabonete agora e escovar meus dentes podres com pasta de dente, porque ela não queria que achassem que ela não cuidava bem de mim. Eu não entendia porque ela tinha medo que alguém da escola pensasse que ela não cuidava bem de mim, porque ela nunca se importou com isso. Mas eu não achei ruim, porque agora eu conseguia me sentir mais limpa, mesmo que ela só deixasse eu tomar banho com sabonete uma vez no dia, que era quando eu ia para a aula. Lúcia até me deu umas fitas para amarrar meu cabelo, porque ela disse que não queria que eu andasse com aquela juba enorme e fedida solta.

Fiquei o resto do dia abraçada com tito. Eu nunca conseguia ser feliz um dia inteiro, mas pelo menos eu já era feliz em uma parte do dia. Tive muito medo que Lúcia descobrisse o que seu Carlos tinha feito comigo. Acho que ela não ia gostar de saber. Eu só queria mesmo ficar quieta e dormir. Como eu estava com muita fome, foi isso mesmo que eu fiz. Abracei o tito e dormi com ele em cima do tapete.

Na segunda-feira eu acordei mais cedo do que o normal. Preparei o café que Lúcia gostava de tomar e esperei que ela acordasse. Eu já estava arrumada e estava ansiosa para meu primeiro dia de aula.

Quando a Lúcia acordou eu já fui levar o café dela na xícara enquanto ela ainda estava na cama. Ela sempre gostava de tomar um café bem forte e quente, enquanto assistia televisão. Assim que ela me viu, ela começou a rir.

- Você está muito ridícula. Esse tênis é enorme e faz parecer que você tem um pé de palhaço. E esse prendedor de cabelo? Seu cabelo está horroroso.

Eu fiquei sem graça. Achei que talvez ela pudesse gostar de me ver daquele jeito.

- Como você acertou o meu café para variar, eu vou fazer o favor de prender esse seu cabelo direito.

Lúcia não era delicada e sempre puxava meus cabelos com muita força, mas ela deixou o meu cabelo bem arrumado naquele prendedor que ela havia me dado. Eu até gostava quando ela penteava meu cabelo, porque apesar de que sempre doía muito, era o único momento que ela me tocava sem que fosse para me bater.

A Lúcia era tudo o que eu conhecia como mãe, e eu a amava, mesmo que ela sempre me maltratasse. O único amor que eu conhecia, era o amor que machucava. Pensava que todo carinho e bondade viriam com alguma dose de dor e de tristeza. Com 9 anos de idade eu pensava que apesar de tudo, Lúcia tinha me colocado na escola, ela sempre me dava alguma coisa para comer, mesmo que fosse pouco e ela me deixava brincar com o tito. As vezes ela até cortava meu cabelo. Vai ver era a única forma de amor que ela conhecia. Eu só gostaria que ela conseguisse me amar de um jeito que doesse menos.

Lúcia me levou até a porta da escola e lá eu via algumas mães abraçando seus filhos na hora da entrada. Lúcia nunca me abraçava. Eu nem lembro se um dia eu já havia ganho um abraço.

Encontrei com Davi logo que entrei na escola.

- Você conseguiu! Papai me falou que você havia entrado na escola. Ah, e o que achou das minhas coisas?

- Eu adorei. Seu tênis ainda fica meio grande nos meus pés, mas pelo menos eu vou poder usar por mais tempo. Obrigada!

- De nada, Ana. E você vai ficar em que sala?

- Ah, eu não consegui entrar para a sua turma... Vou começar com os menores que a gente.

Olhei para baixo envergonhada e entendi porque Lúcia sempre me chamava de burra.

- Não tem problema. A gente vai poder se ver no intervalo quando formos comer.

- Eles dão comida aqui?

- Claro que dão. Toda escola dá. A daqui é até gostosa. Não é melhor do que a da minha mãe, mas é muito boa também. Acho que você vai gostar.

Eu era extremamente magra, porque eu quase nunca comia. Frequentemente eu me sentia tonta, mas bebia água até passar a tontura. Pensar que eu poderia comer durante o dia e não só a noite quando a Lúcia chegava, me fez ficar mais feliz ainda.

O sinal tocou e era o aviso de que os alunos deveriam entrar para as suas salas. Davi me deu tchau e foi para a sala dele. Logo em seguida a dona Carmem me encontrou e foi me levar para a minha sala.

Quando eu entrei, ela falou com a professora que se chamava professora Maria Auxiliadora. O nome dela era bem difícil mesmo e eu demorei umas semanas até conseguir escrever da forma certa.

Ela era bem alta e muito magra. Ela era branca, o que fazia com que ela se destacasse lá na escola, porque ela era a única professora branca que tinha lá. Eu sempre achei ela tão bonita e ela sempre estava bem arrumada. Ela usava uma pulseira brilhosa no braço esquerdo e os cabelos dela eram castanho claro e bem lisos. Eu quis por muito tempo ser que nem ela. Ela sim era bonita e eu pensava que talvez ela tivesse uma vida boa porque era mais clarinha do que eu. Na verdade, bem mais clara do que eu.

A professora Maria Auxiliadora me recebeu com um grande sorriso e disse:

- Seja bem-vinda Ana. Espero que você goste das minhas aulas. Você pode se acomodar em uma das carteiras vazias assim que eu te apresentar para a turma, tudo bem?

- Tudo bem, professora Maria.

- Pessoal, atenção aqui, por favor.

A sala era bem barulhenta e as crianças eram muito menores do eu, mas elas obedeceram a professora assim que ela pediu que eles fizessem silêncio.

- Turminha, essa aqui é a Ana, ela vai estar com a gente durante esse ano inteiro. Espero que vocês a recebam bem. - A professora disse em um tom de voz mais elevado para que todos pudessem ouvir. Assim que ela terminou, ela voltou para falar comigo. - Pode ir se sentar aonde você quiser, Ana.

Eu me sentei em uma das carteiras que tinha encostada na parede. Era o lugar mais perto da professora que estava vago. Acho que ninguém sentava lá porque era perto da janela e quando batia o vento, a gente podia sentir um cheiro de lixo, porque tinha uma caçamba de lixo grande perto da janela, do lado de fora, na rua. Mas eu não me incomodava com esse cheiro, porque a minha casa ficava perto de onde as pessoas jogavam lixo e o caminhão que levava, as vezes demorava uns dias para passar lá para retirar. Então eu já estava acostumada com aquele cheiro.

As outras crianças não pareciam querer chegar perto de mim. Eu pensei até que eu pudesse estar fedendo, mas me cheirei e não senti cheiro nenhum. Eles ficavam só me olhando de longe. Acho que era porque todos eram mais novos do que eu e eu era muito maior que todos eles. Eles devem ter estranhado que havia uma garota estudando junto com eles que era bem mais velha do que todos.

A professora começou a dar a aula a eu fiquei encantada em como ela falava bem. Ela falava palavras bonitas que eu nunca tinha ouvido. No primeiro dia de aula ela me perguntou se eu sabia escrever meu nome e meu sobrenome. Eu disse que sabia escrever o meu nome, mas que ainda não sabia escrever tão bem e que minha letra era feia.

- Sua letra não é feia, Ana. Você só precisa praticar, que em breve a sua caligrafia vai mudar. Mas e o seu sobrenome você também sabe escrever?

- O que é sobrenome, professora Maria?

- É como se fosse o nome da sua família. E cada família tem um sobrenome que vai passando de filho para filho, entendeu? Como é o seu? Ana...

- Eu não tenho não, professora. Sou só a Ana mesmo.

- Mas todo mundo tem um sobrenome...

Eu fiquei calada e acho que a professora Maria percebeu que eu havia ficado triste. Depois de alguns minutos me encarando, ela me olhou com um olhar tão bonito e me falou:

- Tudo bem, Ana. Não tem problema. Isso só torna você mais única ainda.

A professora Maria Auxiliadora me deu um beijo na cabeça e voltou para a sua mesinha, que ficava lá na frente do quadro.

Naquele dia, assim que o sinal tocou apontando que era o final da aula. Maria Auxiliadora foi à sala da diretora Carmem.

- Com licença, Carmem, posso entrar?

- Pode sim, Maria. Aconteceu alguma coisa?

- É sobre aquela aluna nova, a Ana.

- Sim, uma menina muito boazinha, não é?

- É sim. Mas gostaria de falar sobre outra coisa.

- O que seria, professora?

- Ela me disse que não tem sobrenome. Não há nada no registro dela?

- Nossa, que estranho. A mãe dela me entregou um documento que tem um sobrenome sim, mas eu confesso que estranhei porque é bem diferente das outras certidões que temos por aqui. Ela disse que a menina nunca havia ido para a aula porque ela tinha dificuldade em lidar com outras crianças e que por isso ela a ensinava em casa.

- Mas ela não sabe nem escrever o nome dela direito e parece saber menos ainda do que todos os alunos que são anos mais novos do que ela.

- Não vou lhe dizer que acreditei no que a mãe dela me disse, mas eu tenho a impressão de que foi uma coisa boa ela ter vindo para a escola. Vamos fazer o possível para ajudar a menina.

A professora Maria Auxiliadora foi embora com o coração apertado. Ela já havia visto muitos casos de alunos negligenciados, mas ela não podia fazer muito a não ser denunciar para o conselho tutelar, mas a verdade era que muitas vezes eles mesmos nada faziam. Era muito raro os casos de crianças que conseguiam ser ajudadas pelo conselho tutelar. E a professora não podia acolher a todos, então, muitas vezes ela se via de mãos atadas. Mas algo lhe dizia que o caso de Ana não seria um caso simples. É claro que as marcas em seus braços, as vezes, podiam ser vistas, mas as pessoas nunca ligavam aqueles roxos à algum tipo de violência que ela pudesse sofrer dentro de casa. Mas assim que a professora Maria descobriu que não era a única que pensava haver algo estranho com aquela menina, ela entendeu que o caso de Ana poderia ser mais um caso de crianças que sofrem o descaso dentro da própria família. A professora só não tinha noção do quanto Ana sofria realmente.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo