Camila
VOLTAS, voltas e mais voltas. Tomo uma inspiração profunda e tento controlar a ânsia de vômito que sobe pela minha garganta. Apoio minhas mãos sobre o tapete e fico de pé, desfazendo a balasana. Nem mesmo a prática de Yoga está ajudando a passar a minha irritação.
Às nove da manhã de uma quinta-feira eu normalmente estaria participando de uma reunião da imobiliária dos meus pais, conferindo o estoque de bebidas da Casa ou ensaiando a coreografia de alguma música na barra de pole dance. Porém não é essa a rotina que tenho seguido nos últimos dias. Paro o meu corpo em frente à televisão desligada da sala e levanto minha blusa branca de algodão; o short de moletom cinza abraçando os meus quadris. Minha barriga ainda não está perceptível. Se não fosse pelos enjoos matinais e pelo meu sono além do normal eu nem me lembraria que estou grávida. E claro, o excesso de zelo das pessoas ao redor como se eu de uma hora para outra tivesse me transformado numa porceCamilaEU nunca fui uma mulher muito paciente. Se eu quero uma coisa, ela tem que estar disponível para mim no momento em que eu a quero. Talvez por essa razão eu tenha recusado os pedidos de namoro que recebi durante toda a minha vida. É muito difícil adaptar-se à rotina de alguém quando normalmente os outros é que precisam se moldar aos seus horários e costumes. Porém nos momentos em que os outros costumam perder a paciência, eu consigo manter o controle sobre mim. Como por exemplo agora. Depois de quase quarenta minutos sem parecer sair do lugar, os veículos que me cercam buzinam incessantemente e alguns motoristas xingam as motocicletas que ultrapassam os carros. O caos congestionado que é o trânsito em toda grande metrópole. Normalmente uso esse tempo de inércia para escutar as músicas que gosto ou o audiobook de algum livro. Mas hoje eu só consigo pensar no resultado do exame de sexagem fetal, e claro, ouvir pela primeira vez os batimentos cardíacos do meu bebê.
Henrique— VOCÊ pode parar de fazer este batuque insuportável? — peço para Marcone, fixando meus olhos por alguns instantes em seus dedos sobre o painel do carro.— Pedindo assim com tanto carinho... — ironiza, levando seus dedos para a coxa.— Posso saber por que você não quis vir com o seu próprio carro? — pergunto ao acelerar o veículo logo que o sinal verde é aberto.— Simples, meu amigo, para preservar o meio ambiente — responde com seu sorriso cínico. — Se estamos indo para o mesmo lugar por que eu gastaria a minha gasolina à toa? Além disso, podemos conversar durante o trajeto. Você não me explicou o que exatamente pretende fazer com relação a Priscila.— Por enquanto nada — replico. — Ela já entendeu que se voltar a perturbar Camila será demitida do escritório. Nem que para isso eu a processe por assédio — falo seriamente. — Priscila é uma boa advogada e sabe a credibilidade que tem em nosso escritório. Ela não é id
CamilaHENRIQUE leva sua mão esquerda à base da minha coluna, conduzindo-nos em meio às tendas e mesas ornamentadas por toalhas de renda rosa chá. A cor das toalhas nos transmite uma sensação acolhedora junto ao sol do fim da tarde.A cada três meses o orfanato organiza um evento a fim de celebrar os novos benfeitores, apresentar as ações educacionais em que o dinheiro é investido e também conscientizar a sociedade sobre a importância da adoção.É estranho para mim estar em um evento como esse e não ser recepcionada por Ester, com seu sorriso frouxo e os bracinhos ligeiros em volta da minha cintura.Quando Íris me ligou há cinco dias atrás convidando-me para o evento, ela me informou antes mesmo que eu a perguntasse que Ester e seus novos pais não compareceriam. Eles achavam que trazê-la aqui poderia atrapalhar o seu processo de adaptação, já que ela sentia saudade do convívio com as outras crianças.Passeio os meus olhos pelas crianças que
Cristina— NÃO chore, Cristina, não chore — repito mentalmente e sigo com passos acelerados para o interior do orfanato.A vida parece que gosta de brincar comigo. Quando penso que as coisas estão indo bem, ela me desfere socos dos quais eu nem sei dizer de onde vieram. Eu deveria ter ouvido a minha consciência. Deveria ter recusado o pedido que Pérola me fez para acompanhá-la ao evento. Eu nem deveria ter atendido ao maldito celular. Ela disse que não queria um clima estranho entre nós, que me vira crescer e que estar separada de Henrique não nos impedia de continuarmos próximas. Eu fui idiota e acreditei em suas palavras, mas a primeira coisa que ela fez assim que me sentei ao seu lado foi criticar-me por ter cortado o cabelo. Em seguida iniciou suas tentativas de me convencer a não assinar o divórcio e buscar alguma forma de reconquistar a Henrique. Porém seus lábios se calaram no momento em que viu Henrique e Camila chegarem. E ver a barriga saliente de Cami
CristinaMEU pai sempre me disse que eu era muito idealista. Eu gosto de acreditar no lado bom das pessoas e ajudar aos outros mesmo sem ter como. Eu nunca soube se ele considerava isso em mim como algo bom ou ruim.Quando eu optei pelo curso de Serviço Social o meu pai não me disse nada, mas a minha mãe... Ela me criticou por estudar algo que envolvia um contato próximo com todo tipo de gente, como ela mesma dizia. Se eu queria um ensino superior, por que não fazia algo mais leve? Era o que ela me questionava. Porém o contato com diferentes pessoas, conhecer e ajudar de alguma forma para tentar melhorar as suas realidades são o que me fazem gostar tanto da área.O meu único problema é o cansaço e as dores de cabeça que a faculdade tem me trazido. Já havia me esquecido o quão frustrante o meio acadêmico pode ser, ainda que você ame o seu curso. Eu vou começar o estágio supervisionado nas próximas semanas. Algo que eu quero muito, mas também tenho um cer
Cristina— O que Deus uniu o homem não separa — dissera o padre olhando fixamente para mim e Henrique. — Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva — Henrique voltou seu olhar confuso para mim e aproximou hesitantemente seus lábios dos meus. Os aplausos que dominaram a igreja abafaram a pergunta esperançosa que saíra da minha boca assim que o rosto de Henrique afastara-se do meu:— Nós vamos ser felizes? — Seus olhos verdes refletiram a dúvida que o parecia perturbar desde o instante em que me recebera no altar pelas mãos do meu pai. Talvez eu também estivesse insegura com relação a isso, mas preferi acreditar que tudo ficaria bem. Ele separou seus lábios, respirou forte, e proferiu a mentira que nos manteve juntos durante os últimos nove anos: — Sim, nós vamos ser felizes.— Agora vocês estão legalmente divorciados — anuncia Priscila com seu olhar presunçoso ao receber o documento com minha assinatura. Simples assim, um papel com
CamilaFICAR com a mão sobre a minha barriga por alguns minutos tem se tornado o meu ritual ao acordar. Ainda não consigo senti-la se mexer dentro de mim, acabei de entrar na 16ª semana de gestação. Mas estar com a mão sobre o meu útero me traz uma sensação de paz, realidade.Eu ainda me assusto algumas vezes quando passo em frente ao espelho. Esta barriga crescente é realmente minha? É um tanto quanto louco perceber as transformações físicas no meu corpo. É como se a cada dia em que acordo eu me tornasse uma mulher diferente.Ponho meus pés para fora da cama, observo pelo vidro da janela os primeiros raios de sol do novo dia e caminho até o banheiro. Antes, sábado era o dia em que eu me permitia dormir até mais tarde. Agora, mesmo que eu não queira, acordo muito cedo. É também o único dia da semana em que desperto antes de Henrique. Entretanto, quando abri os meus olhos, ele não estava ao meu lado.Desde que assinou o divórcio, sinto que ele e
CamilaLEMBRO-me de quando eu era criança e a tia Malu me contava com o seu jeito debochado sobre os seus namorados e dos motivos que a faziam não levar seus relacionamentos com eles adiante. Um era muito ciumento, o outro era bagunçeiro demais e alguns não sabiam saborear a flor, dizia me dando seu olhar cúmplice. Recordo-me que uma vez a perguntei se ela algum dia pensou em se casar, e ela me respondera com toda seriedade que ainda não tinha conhecido ninguém que a fizesse gostar mais de abraços do que de beijos e que estivesse ao seu lado ainda que ela não pedisse. Dissera-me também que eu não devia me casar se eu não encontrasse alguém que pudesse fazer essas coisas por mim.Eu cresci observando as mulheres ao meu redor. Perdi as contas de quantos casais mal olhavam nos olhos um do outro, e eu jurei para mim mesma que eu não teria um relacionamento desse tipo para a minha vida. No fim, casar para mim não era nada menos que um rótulo social.Hoje, minha visão qu