Henrique
— POSSO entrar? — pergunta Marcone segurando a porta entreaberta da minha sala.
— Claro — confirmo fechando a janela do Excel e voltando minha atenção para ele.
— Nós mal conversamos desde que você voltou de viagem, cara — elucida indo até o mini-bar, servindo-se de uma dose de uísque.
— Por que você sempre vem pra cá quando quer beber? — indago erguendo minhas sobrancelhas para ele.
— Porque alguém precisa beber essa belezinha, meu amigo — explica ao levar o copo aos lábios, caminhando até a minha mesa e sentando-se de frente para mim. — Então, alguma novidade? — pergunta, curioso.
— Sim, pedi o divórcio e vou ser pai — comunico. Marcone tosse, quase esgasgando-se com a bebida, e olha para mim completamente perplexo.
— Que merda é essa, Henrique? Isso lá é brincadeira que se faça? — questiona, irritado, passando a manga do palitó sobre os lábios.
— Eu não estou brinc
CristinaOBSERVO as paredes inertes esperando que a minha mente reviva uma lembrança de algo que me faça sorrir, mas não há nada. Nada que me faça recordar um momento meu com Henrique vivido aqui. Nada nesta casa me lembra dele. É como se ele nunca realmente tivesse feito parte desse lugar.Tento forçar um choro mas as lágrimas não vêm. Parece que até elas cansaram-se de mim. Ponho sobre a pia o prato de comida quase intocado. Meu estômago dá voltas e mais voltas, vazio, assim também como o meu coração. Lanço meu olhar por toda a cozinha, com suas cores neutras, totalmente limpa. Acordei às cinco da manhã, não tenho certeza se dormir, e levantei às pressas, limpando cada centímetro da casa como se isso fosse fazer com que eu me sentisse melhor, e de certo modo fez. Recordei-me de um dos poucos momentos da minha vida em que me impus; do quão persistente eu fui para convencer Henrique a comprar essa casa. Espaçosa o suficiente para criar os filhos que nunca
CristinaAINDA é confuso para mim percorrer este trajeto, sentir os ombros apressados passarem por mim, ouvir os irritantes sons das buzinas, o peso dos livros nas minhas mãos e a sensação térmica do ambiente sob os meus pés, mesmo estando fazendo-o há quase duas semanas.Às vezes digo para mim mesma que eu voltaria à faculdade a qualquer momento, mas, talvez, se não fosse pela intromissão de Henrique e Marcone, eu teria adiado meu regresso por muito mais tempo.De certo modo é como se eu tivesse voltado a ter dezenove anos de idade. Só que agora com o cabelo sobre os ombros e não nos quadris, e principalmente, não sendo mais uma jovem prestes a subir ao altar, mas sim uma mulher separada.A princípio imaginei que me sentiria completamente fora de habitat. Naquela manhã, três dias após a visita de Marcone, pesquisei na internet o número da faculdade e liguei para lá. Inacreditavelmente foi um processo bem simples. A prova em questão que precisei faze
CamilaVOLTAS, voltas e mais voltas. Tomo uma inspiração profunda e tento controlar a ânsia de vômito que sobe pela minha garganta. Apoio minhas mãos sobre o tapete e fico de pé, desfazendo a balasana. Nem mesmo a prática de Yoga está ajudando a passar a minha irritação.Às nove da manhã de uma quinta-feira eu normalmente estaria participando de uma reunião da imobiliária dos meus pais, conferindo o estoque de bebidas da Casa ou ensaiando a coreografia de alguma música na barra de pole dance. Porém não é essa a rotina que tenho seguido nos últimos dias.Paro o meu corpo em frente à televisão desligada da sala e levanto minha blusa branca de algodão; o short de moletom cinza abraçando os meus quadris. Minha barriga ainda não está perceptível. Se não fosse pelos enjoos matinais e pelo meu sono além do normal eu nem me lembraria que estou grávida. E claro, o excesso de zelo das pessoas ao redor como se eu de uma hora para outra tivesse me transformado numa porce
CamilaEU nunca fui uma mulher muito paciente. Se eu quero uma coisa, ela tem que estar disponível para mim no momento em que eu a quero. Talvez por essa razão eu tenha recusado os pedidos de namoro que recebi durante toda a minha vida. É muito difícil adaptar-se à rotina de alguém quando normalmente os outros é que precisam se moldar aos seus horários e costumes. Porém nos momentos em que os outros costumam perder a paciência, eu consigo manter o controle sobre mim. Como por exemplo agora. Depois de quase quarenta minutos sem parecer sair do lugar, os veículos que me cercam buzinam incessantemente e alguns motoristas xingam as motocicletas que ultrapassam os carros. O caos congestionado que é o trânsito em toda grande metrópole. Normalmente uso esse tempo de inércia para escutar as músicas que gosto ou o audiobook de algum livro. Mas hoje eu só consigo pensar no resultado do exame de sexagem fetal, e claro, ouvir pela primeira vez os batimentos cardíacos do meu bebê.
Henrique— VOCÊ pode parar de fazer este batuque insuportável? — peço para Marcone, fixando meus olhos por alguns instantes em seus dedos sobre o painel do carro.— Pedindo assim com tanto carinho... — ironiza, levando seus dedos para a coxa.— Posso saber por que você não quis vir com o seu próprio carro? — pergunto ao acelerar o veículo logo que o sinal verde é aberto.— Simples, meu amigo, para preservar o meio ambiente — responde com seu sorriso cínico. — Se estamos indo para o mesmo lugar por que eu gastaria a minha gasolina à toa? Além disso, podemos conversar durante o trajeto. Você não me explicou o que exatamente pretende fazer com relação a Priscila.— Por enquanto nada — replico. — Ela já entendeu que se voltar a perturbar Camila será demitida do escritório. Nem que para isso eu a processe por assédio — falo seriamente. — Priscila é uma boa advogada e sabe a credibilidade que tem em nosso escritório. Ela não é id
CamilaHENRIQUE leva sua mão esquerda à base da minha coluna, conduzindo-nos em meio às tendas e mesas ornamentadas por toalhas de renda rosa chá. A cor das toalhas nos transmite uma sensação acolhedora junto ao sol do fim da tarde.A cada três meses o orfanato organiza um evento a fim de celebrar os novos benfeitores, apresentar as ações educacionais em que o dinheiro é investido e também conscientizar a sociedade sobre a importância da adoção.É estranho para mim estar em um evento como esse e não ser recepcionada por Ester, com seu sorriso frouxo e os bracinhos ligeiros em volta da minha cintura.Quando Íris me ligou há cinco dias atrás convidando-me para o evento, ela me informou antes mesmo que eu a perguntasse que Ester e seus novos pais não compareceriam. Eles achavam que trazê-la aqui poderia atrapalhar o seu processo de adaptação, já que ela sentia saudade do convívio com as outras crianças.Passeio os meus olhos pelas crianças que
Cristina— NÃO chore, Cristina, não chore — repito mentalmente e sigo com passos acelerados para o interior do orfanato.A vida parece que gosta de brincar comigo. Quando penso que as coisas estão indo bem, ela me desfere socos dos quais eu nem sei dizer de onde vieram. Eu deveria ter ouvido a minha consciência. Deveria ter recusado o pedido que Pérola me fez para acompanhá-la ao evento. Eu nem deveria ter atendido ao maldito celular. Ela disse que não queria um clima estranho entre nós, que me vira crescer e que estar separada de Henrique não nos impedia de continuarmos próximas. Eu fui idiota e acreditei em suas palavras, mas a primeira coisa que ela fez assim que me sentei ao seu lado foi criticar-me por ter cortado o cabelo. Em seguida iniciou suas tentativas de me convencer a não assinar o divórcio e buscar alguma forma de reconquistar a Henrique. Porém seus lábios se calaram no momento em que viu Henrique e Camila chegarem. E ver a barriga saliente de Cami
CristinaMEU pai sempre me disse que eu era muito idealista. Eu gosto de acreditar no lado bom das pessoas e ajudar aos outros mesmo sem ter como. Eu nunca soube se ele considerava isso em mim como algo bom ou ruim.Quando eu optei pelo curso de Serviço Social o meu pai não me disse nada, mas a minha mãe... Ela me criticou por estudar algo que envolvia um contato próximo com todo tipo de gente, como ela mesma dizia. Se eu queria um ensino superior, por que não fazia algo mais leve? Era o que ela me questionava. Porém o contato com diferentes pessoas, conhecer e ajudar de alguma forma para tentar melhorar as suas realidades são o que me fazem gostar tanto da área.O meu único problema é o cansaço e as dores de cabeça que a faculdade tem me trazido. Já havia me esquecido o quão frustrante o meio acadêmico pode ser, ainda que você ame o seu curso. Eu vou começar o estágio supervisionado nas próximas semanas. Algo que eu quero muito, mas também tenho um cer